Aviso a/o benévolo leitor/a. É um homem branco, cis, heterossexual (não heteronormativo) que está escrevendo sobre mulheres e o feminino. Desde 2019, estou oficialmente debruçado em pesquisar as masculinidades no contemporâneo. No caminho, me deparei com a questão de gênero, como os estudos sobre o patriarcado e, inevitavelmente, olhar para homens, levou-me a olhar para o seu oposto complementar: a mulher e o feminino. Corro o risco de deixar aqui um registro reducionista e talvez superficial. A questão pode ser olhada de várias perspectivas e todas elas, quando isoladas, são insuficientes. Estou consciente que o atual debate sobre gênero é muito maior, mais denso e complexo. Há também o “lugar de fala” e a “interseccionalidade” e a postura legítima do não binarismo. Conceitos fundamentais que me aproprio na pesquisa, mas não nesse texto. Corro o risco e aceito as críticas. Em tempos de redes sociais, afagar a pluralidade é impraticável.
Os resultados das pesquisas arqueológicas evidenciaram que, na pré-história, a sociedade se organizava em torno de um sistema matriarcal. Entre as estátuas de argila encontradas – a mais conhecida é a Vênus de Willendorf, esculpida entre 28 e 25 mil anos antes de Cristo – identificada pela pensadora Riane Eisler, em seu livro “O Cálice e a Espada”, como o culto à deusa mãe-terra (Grande Mãe) evidenciando que, para essas culturas, era o feminino, não o masculino, o centro da ordem social.
Engana-se, entretanto, quem ainda imagina que, no sistema matriarcal, as mulheres exerciam o poder sobre os homens. Eisler desconstrói esse equivoco, argumentando que, no sistema matriarcal, as relações de poder eram horizontais, baseadas na parceria e na solidariedade. Nas sociedades matriarcais, predominam também relações de respeito e adoração à natureza com quem, naturalmente, as mulheres sempre foram associadas, já que é através delas que ocorre a criação, a encarnação. Na concepção matriarcal, o homem seria apenas o “semeador anônimo”, uma vez que gerar a vida é um dom da mulher. Uma sobrevivência atual desse paradigma é o culto à Pachamama, a divindade dos povos originários dos Andes centrais. A Pachamama está relacionada com a terra, a fertilidade, a mãe, o feminino. Para Eisler, no sistema matriarcal, predomina a “biologia do amor” e não o poder.
O crescimento populacional e a disputa por território teriam levado os homens a guerrearem entre si. A luta feroz pela sobrevivência pode ter colocado humanos contra humanos, exigindo que desenvolvessem capacidades estratégicas e usassem ao máximo sua força e resistência físicas, em substituição aos princípios de solidariedade e respeito à vida, vigentes até então. A mudança de paradigmas pode ter conduzido à domesticação das próprias mulheres que, com a perda de seu poder, tornaram-se dependentes da força masculina para protegê-las e à sua prole. No panteão das deusas femininas, começaram a surgir os deuses guerreiros. Era o início do patriarcado.
O patriarcado, também chamado pelo sociólogo Bourdieu de dominação masculina, é capaz de descrever um sistema social governado pela força ou pela ameaça de força. Dessa forma é sinônimo de opressão das mulheres. Nesse sentido, é um sistema social em que homens adultos mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. No domínio da família, o pai mantém a autoridade sobre as mulheres e as crianças. O sistema patriarcal prevalece nas sociedades contemporâneas.
No século XX, em decorrência do advento da era industrial e da eclosão das duas guerras mundiais, as mulheres ingressaram no mercado de trabalho e foram, gradativamente, ocupando espaços sociais, reconfigurando modelos de relação de gênero e ordem familiar. Na década de 1960, as revoluções feminista, sexual e de comportamento reposicionaram o lugar da mulher nos espaços públicos e privados.
Em 1949, a pensadora francesa Simone de Beauvoir publicou uma obra que consta na lista dos cem livros que mais influenciaram a humanidade, O Segundo Sexo. O livro analisa a situação da mulher na sociedade bem como a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política. O Segundo Sexo viria a ser considerado uma marca fundamental no pensamento feminista do século XX, abrindo caminhos para a teorização em torno das desigualdades construídas em função das diferenças entre os sexos. Foi a partir da frase, fundamentada na filosofia existencialista, “Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”, que teóricas feministas iriam refletir sobre o estabelecimento da diferença entre sexo e gênero, desafiando e questionando a noção de que a biologia é determinante para os papéis atribuídos às mulheres e de que existe uma essência feminina. O Segundo Sexo foi o marco da onda feminista que desafiou o patriarcado e o lugar de submissão ao qual a mulher foi colocada.
Na onda do movimento feminista, muitas mulheres ingressaram em ambientes que foram construídos segundo as leis do patriarcado: a competição, virilidade e supremacia. O preço que muitas mulheres pagaram, em troca do ingresso nessa arena, foi renunciar à sua alma feminina, pois se não seguissem as leis patriarcais, ocupariam espaços de subalternidade. Mesmo assim, a remuneração é menor e apenas 3% das mulheres, no Brasil, ocupam cargos de liderança. Ganhando menos, disputando espaço com uma tradição patriarcal consolidada, muitas mulheres em cargos de liderança aderem ao modelo agônico do patriarcado.
Foi a percepção de que as mulheres estavam perdendo a sua alma, em troca de quase nada, que a pensadora estadunidense Clarissa Pinkola Estés publicou Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem, que consta na lista dos mais vendidos. Por meio da interpretação de lendas e histórias antigas, Clarissa procura identificar o arquétipo da mulher selvagem ou a essência da alma feminina, sua psique instintiva mais profunda, propondo o resgate desse arquétipo longínquo como forma de atingir a verdadeira libertação. Para a autora, correr com os lobos significa encontrar o brilho próprio, vivendo ativamente com a natureza selvagem de uma maneira própria. A leitura do livro exalta o sagrado feminino, a conexão da mulher consigo mesma, com seu corpo e com a natureza.
A leitura da obra de Clarissa Pinkola despertou-me uma consciência mais arcaica que está relatada em outra obra – que considero reveladora sobre a nossa condição – Feminino € Masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças de autoria de Rose Marie Muraro e Leonardo Boff. Os autores nos provocam com uma questão urgente: “como seriam os novos homens e mulheres trazidos pelas transformações das relações familiares?”
Muraro e Boff lembram que no patamar mais profundo das relações de gênero, no inconsciente cultural há o ideal andrógino ou hermafrodita do ser humano que reflete a aspiração de superar os dualismos binários, neuróticos em sua essência. O mito da androginia assevera que homens e mulheres teriam sido criados pelo corte de um ser complexo bissexual que ameaçava os deuses. E desse corte em diante, homens e mulheres estariam, para sempre, procurando um ao outro e, por isso, deixariam os deuses governarem o mundo em paz.
A utopia inconsciente mais profunda seria restaurar a perdida unidade primeva, em que vida e morte estariam em completa harmonia. Assim, a grande busca da humanidade seria não só a reunificação entre os sexos, mas também a reunificação dos sexos dentro de cada um de nós.
O andrógino é aquele que não reprime as características que, convencionalmente, pertencem ao sexo oposto, como por exemplo, a sensibilidade e a perda do medo do afeto no homem e a inteligência criativa na mulher. Só é andrógino aquele que é capaz de reunificar os opostos dentro de si: o masculino e o feminino, a atividade e a passividade, mente e corpo. Eros e o Tanatos reunificados em cada um de nós.
Imagem: Vênus de Willendorf (fonte: Wikipedia)
Uma resposta
Muito bom! Temática fundamental na contemporaneidade pautada pela ampliação das identidades de gênero.