Machismo, masculinidade e silenciamento

Na semana passada, eu trouxe um texto numa vibração mais alegre, mas é aquele ditado que a Internet popularizou: “Onde há gays não há sossego”. Não quando o preconceito transborda e ameaça nossas conquistas, mesmo aquelas que já parecem consolidadas. Talvez isso seja efeito da noção que temos de vida individualista e meritocrática, na qual ganhos pessoais sejam o ápice do nosso motivo de existir. E de fato, não são. Ganhamos mais ainda quando os ganhos são coletivos. E isso se mostra em casos como o que eu passo a analisar.

Há alguns dias, eu fiz um post numa rede social, irreverência misturada com coisa séria. Eu decidi comentar que eu acho bonito o treinador do time para que eu torço. Falo de Eduardo Barroca, técnico do Atlético Clube Goianiense. Ele é um homem grande, seria do tipo bear, simpaticíssimo e sorridente. No entanto, heterossexual, até onde me consta. Até aí tudo bem. Estamos todos habituados com o fato de que nem sempre homens heterossexuais recebem bem elogios de homens gays. E de certa forma, sabemos que esse meio futebolístico é muito restrito, muito machista. Infelizmente podemos esperar esse comportamento de todos os envolvidos. Quem não é agressivo, é conivente, embora a conduta de jogadores e torcedores seja a pior: a mais homofóbica, machista e agressiva de todas.

Barroca (Foto: Divulgação/Atlético-GO)

Por isso a minha irreverência. A minha intenção é mostra que podemos ter um queer eye para as coisas. E isso tem que ser normalizado. Não podemos, não devemos nunca aceitar esses limites impostos, essas riscas de giz que separam os homens gays dos heterossexuais. A minha postagem não avança sobre a pessoa para duvidar da sexualidade dela. Eu não uso esse recurso antigo, à moda de Seu Peru ou mesmo de Clodovil. Duvidar da sexualidade alheia é um antigo recurso de muitos gays que tinham espaço na mídia, estereotipados e subservientes ao seu papel inferior de nem mulher, nem homem, falando de um entrelugar definido pela heterossexualidade. Pouco ou nada levados a sério, seus discursos tentavam se espremer, entre a liberdade de criticar e a necessidade de mostrar ao mundo que poderiam existir sem escândalo ou choque além do que o divertimento alheio pedia. Só que essa época passou. Não existe mais.

O futebol é uma espécie de relicário da masculinidade intocada do homem inseguro. A prova disso é a inexistência aparente de jogadores que tenham se assumido gays. Se eles existem, não falam sobre isso, um silenciamento mais forte do que o que existe nas Forças Armadas ou em meios religiosos. A intolerância é tanta que os próprios times de futebol têm feito alguns esforços para diminuir a homofobia agressiva de suas torcidas, marcada principalmente por violência verbal, que gera indignação. A pressão maior, no entanto, pode vir de patrocinadores que não querem ver suas marcas associadas a esse tipo de preconceito irracional. No entanto continua a existir. As coisas não mudam, apesar de já haver “torcidas LGBT”. O futebol é, de fato, patrimônio imaterial dos brasileiros. O gosto pelo esporte não é coisa de “homem”, somente. Mas nesse caso, o acirramento desse tipo de preconceito, numa época em que há um maior esclarecimento, é uma prática de resistência contra a presença LGBTQIA+ num meio que é considerado reduto de práticas masculinas arraigadas, eivadas de machismo e preconceito.

Gays têm de ter liberdade de falar. Falar que um homem seja bonito não é errado. Isso, por si só, não se configura como assédio. Não é comportamento imoral ou indecente. Homens não deveriam temer ser elogiados. Nós, gays, não queremos assediar ninguém, esse não é o nosso interesse coletivo. O que queremos é o que todos querem. Poder falar, viver normalmente e ter a mesma liberdade que os outros têm. Depois de dizer que eu achava um treinador de futebol bonito, uma grande maioria de gays veio concordar, discordar, mas celebrar aquela coisa dita. Percebi que meu post tinha virado uma espécie de espaço em que muitos puderam confessar isso. Claro que todos podem falar, e até falam de artistas famosos, de deuses da beleza masculina ocidental, como Henry Cavill, o ator que vive o Super-Homem. Mas a pessoa que eu citei não era isso tudo de famosa. Nem era extremamente popular, é um cidadão brasileiro, trabalhador. Um senhor desses que encontramos no supermercado com sua família, ou que vemos num local público se divertindo.

Barroca. Foto: Divulgação/Botafogo

Por um instante, chamar o Barroca de bonito, bear, urso, foi uma espécie de alívio. Cômico e libertador. A maioria das pessoas que comentavam, faziam-no com bom humor, o que atesta mais uma vez a minha teoria de que aquilo ali servia para esse propósito, um instante de existência, numa heterotopia gay, em que todo mundo tem a rara liberdade de dizer que acha outro homem bonito. Sem precisar achar mais que isso, sem aprofundar o desejo, sem precisar se comprometer com o que disse. Mas apenas dizer com a naturalidade a que não temos direito no dia a dia, acossados pelo silenciamento que a normalidade heterossexista cisgênera nos impõe a todos os LGBTQIA+.

E esse silenciamento é claro. Uma vez que não está tão fácil nos matar, agredir, violentar, reprimir como antes, agora tentam sabotar as nossas falas, nossas vozes, nosso jeito de ser, vestir, as músicas que ouvimos, as coisas que preferimos. É o caso da resistência ás performances e à música de Pabllo Vittar, que tem toda a sua verdade como artista questionada insistentemente, pelo simples fato de ser drag queen. A maioria de nossos artistas LGBTQIA+ que têm destaque estão, na verdade, em segundo plano na música brasileira, capitaneadas sempre por figuras de sexualidade mais padronizada, ou pelo menos menos chocante.

Por mais que se diga que o tempo trará mais aceitação, isso não vale muito porque já temos esperado muito. Aceitação é um caso urgente. Não temos que temer dizer que um técnico de futebol ou jogador sejam bonitos. Ou que determinado homem chame a atenção. E essa ousadia que muitos já têm não deve ser interpretada mal. Barroca não é o único técnico bonito. Temos outros. É o caso de Alberto Valentim, que tem porte de modelo. Ou mesmo de Renato Gaúcho, que posou nu há 22 anos atrás para uma revista feminina, mostrando um traseiro invejável. Não teríamos necessidades de nos preocuparmos com esse tipo de tabu, uma vez que esportistas homens e mulheres quebraram, há décadas essa barreira de moralismo desnecessário. Os esportistas são pessoas para quem olhamos quando queremos ver beleza. Sempre foram. Sempre serão.

Renato Gaúcho veste camisa retro do gol de barriga, feito no título de 1995, pelo Fluminense. Foto: Divulgação/Facebook/Fluminense. Renato Gaúcho, atualmente, é técnico do Clube de Regatas Flamengo.
Alberto Valentim. Foto: Celso Pupo/Fotoarena/Lance!

É um retrocesso que há vinte, vinte e cinco anos, tínhamos esportistas e atores posando para uma revista abertamente gay. E hoje, temos um moralismo que nos silencia. Artistas, futebolistas, pessoas públicas não podem ouvir da boca de outros homens que eles sejam bonitos ou atraentes sem que isso gere desconforto. Não que eles mesmos demonstrem preconceito o tempo todo. Quando eles não demonstram, por simpatia ou desprezo, alguém o faz. O problema é a polícia do bom comportamento que não suporta a expressão do desejo gay.

Hoje, numa dessas postagens em que eu ousei dizer que um homem não gay é bonito, alguém veio tentar me silenciar. outro gay. Como dissemos no primeiro parágrafo: Há ssossego? Não há. Pelo jeito, não. Fui acusado, eu e tantos outros, de “biscoitar para hétero”, e que depois a pessoa diz algo homofóbico e as gays ficam com raiva. Olha. Eu não biscoito para heterossexual, nem para homossexual porque nem sempre eu não sei se tenho ídolos específicos assim. Eu costumo mostrar minha admiração de muitos modos. Mas eu quero e vou para sempre me sentir na liberdade de dizer o que eu quiser, enquanto eu viver numa democracia. Eu acho justo que todos nós, gays, digamos que achamos homens bonitos. Na frente de homens, de crianças, de mulheres, pessoas mais jovens ou mais velhas. Todos precisamos encarar isso com naturalidade. Ser gay é normal, no sentido de que faz parte da diversidade humana. Não temos que aceitar críticas vindo de lado nenhum. Principalmente do famoso e destruidor “fogo amigo”.

Essa crítica é duplamente perniciosa. Primeiro porque ao dizer que estamos dando atenção indevida a heterossexuais, ela joga com nosso orgulho gay. Sugere que estamos dando valor a quem não é do nosso grupo. Isso é complicado. Nosso ajuntamento em grupos deve acontecer para lutarmos por coisas comuns, protegermo-nos. Mas isso não deve impedir de nos reconhecermos num grupo maior, não deve nos fazer esquecer que somos parte de outros grupos sociais e devemos estar pelo menos abertos a algum tipo de aproximação. Por exemplo, não podemos deixar de sonhar com, de desejar um mundo em que algumas coisas a nosso respeito sejam consideradas toleráveis. Em segundo lugar, essa crítica mostra os gays como provocadores da homofobia que os vitima. É o mesmo padrão de discurso de quem culpa a mulher por apanhar do marido. Vamos ficar nervosinhos quando houver homofobia.

Vamos sim. Nervosíssimos. E não será culpa nossa. Nem de gays que querem continuar nessa postura moralista à la Clodovil Hernandes. O nobre costureiro e deputado morreu defendendo uma existência gay externa de aparências e frivolidades. Enquanto isso, a vida emocional, afetiva, sexual seria muito privada. Muito mesmo. Escondida de todos. Ele não era visto em encontros, com um namorado, de mãos dadas. Ele tinha vergonha disso, a ponto de não desejar, a ponto de recomendar que as pessoas não fossem dessa forma.

Acusar os gays de provocarem a ira de heterossexuais com seu comportamento é a nova forma que moralistas, gays ou não, têm de nos reduzirem a esse perímetro sufocante de existência, numa privacidade que os serve mais do que a nós mesmos. Numa época em que a humanidade vive uma liberdade sexual e de ser a si mesmo imensas, isso é um paradoxo. Isso é a institucionalização do mimimi de quem quer voltar as pessoas para o armário. Aceitar isso não é opção. Não à censura violenta que não poupa nem formas respeitosas de expressão!

Enquanto a nossa cultura tenta resistir à homossexualidade, arraigando-se a masculinidade doentia em formas concretas de existência, cabe a nós resistir a elas. Esses dias eu ouvi de um homem que gostava da barbearia onde ia porque ali homens podiam ser homens. O ambiente é todo chic, com mesa de sinuca, tv rolando futebol ou esportes “masculinos”, tem bar anexo. Eu sei como é isso. Um dia desses eu entrei numa dessas porque não havia onde cortar cabelo, já que meu cabeleireiro predileto passou a atender somente com hora marcada para maior segurança de si e dos outros. Passei uns três quartos de hora ouvindo “machices” a respeito de política, comportamento, mulheres e sobre eles mesmos. O barbeiro ao meu lado usava um tonel de óleo lubrificante como mesa para apoiar os produtos para cabelo que vendia, enquanto outros clientes bebiam num espaço adequado.

Isso é ridículo achar que é preciso que um homem entre num ambiente como esse para poder finalmente ser livre, coçar o saco, cuspir no chão e arrotar alto. Isso é uma falácia. Todos os ambientes em que vivemos são amigáveis a homens. Todos nós somos, em certa medida, condescendentes com seus comportamentos machistas. Eles se sentem confortáveis para serem como são em qualquer lugar. Nossa presença não inibe. Irrita. Não ameaça, mas mostra que o mundo que eles conhecem não é mais dividido como eles gostavam.

Minha proposta é que colonizemos espaços exclusivos de masculinidade tóxica. Assumamos nossos gostos por coisas que gostamos sem nos preocuparmos com aquilo que os homens cisgêneros e heterossexuais pensam. Uma linha de existência exclusiva para gays, com seus produtos culturais, com modos de ser e espaços exclusivos não é conveniente o tempo todo. Isso só faz sentido se for para a nossa diversão ou proteção. Caso o contrário, é coisa que vai nos segregar, campos de concentração com cercas invisíveis, seus prazeres seriam compensações baratas pela nossa existência sofrível. Precisamos reforçar as membranas que nos protegem, romper aquelas que nos segregam. Se há algum lugar em que estamos que nos incomoda, mesmo que aparentemente seja o melhor para nós, esse lugar foi inventado para nos sufocar. Rompamos as bolhas que criaram para nós.

A decisão de formarmos grupos e isolarmos nosso comportamento é nossa, não das pessoas ao nosso redor, essa decisão tem que servir a nós, não a eles.

Falemos o que quisermos. Ouçamos as músicas que quisermos. Música de gay é a que o gay quer ouvir, assunto de gay é aquele que ele quiser participar. Lugar de gay é aquele em que ele quiser estar.

Há dez anos atrás, eu jamais acharia que eu estaria em 2021 escrevendo sobre isso. Mas é o que acontece. Vamos fazer aquela revolução de Gandhi, Desobedecer. Só que dessa vez, não vamos em silêncio, não. Vamos falando, gritando, assoviando, batendo nas coisas, chamando a atenção e mostrando para o mundo que a gente existe e não vai se esconder.

Nunca mais.

Nota: apesar de minhas críticas falando sobre homofobia no futebol, algo amplamente discutido pela mídia brasileira, não houve nenhuma atitude preconceituosa aparente ou concreta, recentemente, por parte dos treinadores citados, nem mesmo por parte de Renato Gaúcho, célebre por suas alfinetadas machistas ou sua opção política conservadora. Muitos jogadores e treinadores têm seguidores e fãs gays, há torcidas LGBT no país e um coletivo que as congrega, que visa combater homofobia no futebol. Esse texto analisa, principalmente, um evento particular de preconceito interno, a partir de dados da realidade circundante e falas registradas de pessoas que participaram de uma conversa pela Internet.

Capa: Imagem de emoticon: 95C por Pixabay

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

Respostas de 6

  1. Aproveitando o.seu post, quero expressar que achei lindo a Marta do futebol oferecendo o gol a sua mulher. uma ação tbm de coragem….
    Ainda vivemos num mundo nojento que a sociedade se diz não ter preconceitos, porém as ações São contrarias a suas falas….

    1. De fato é uma grande ousadia maravilhosa da parte dela. Como eu disse, o futebol é um espaço de machismo e exclusão. Obrigado pela leitura. Honradíssimo, inclusive.

  2. Texto impecável como sempre, e devemos sempre questionar sobre o machismo no esporte!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *