Lilith

Glifo astrológico de Lilith

A presença das mulheres na música anglófona norte-americana e europeia, no final do século XX aconteceu de maneira intensa e gradual, a partir dos anos de 1970. Isso foi o resultado de um processo longo de luta e conquista de espaços pelas mulheres. Na música, a presença feminina sempre foi limitada a gêneros e atuações específicas até então. O século XX trouxe a figura da mulher cantora e compositora, marcadamente nos Estados Unidos da América e países da Europa. Eram sempre grandes intérpretes, como a francesa Edith Piaf, ou a diva da black music estadunidense Billie Holiday, cantora e compositora. A figura delas mesmas como grandes mulheres, desafiadoras da ordem estabelecida, fizeram com que mulheres sonhassem e realizassem na música. Apareceram, desde então, vocalistas e instrumentistas pelo mundo todo, inspiradas por pioneiras: mulheres à frente de um palco, com carreiras no rádio e na televisão.

Nos anos subsequentes, a profusão de tendências musicais levou ao nascimento de uma música feminina ou feita com a participação feminina mais constante. Bandas com componentes mulheres ou vocalistas mulheres passaram a aparecer sob a égide dos sonhos de liberdade da década de 1960. Surgem, então, na América do Norte, nomes como Aretha Franklin, Joni Mitchell, Carole King, Diana Ross e Janis Joplin. Cada uma delas em tendências específicas da música, mostrando talento, protagonismo e o ponto de vista da mulher nas composições cantadas por elas. Na Europa, a inglesa Kate Bush cria uma tendência dentro da música feminina que seria o embrião do baroque pop do século seguinte e de outras tendências: a cantora e compositora autoral, com músicas intimistas e profundas, em performances únicas e marcadas por individualidade.

CDS #573 – Wuthering Heights (Kate Bush) | baconfrito

Kate Bush, nome importantíssimo da música britânica e da música feminina anglófona. Sua influência sobre as mulheres que cantam em inglês ou mesmo em outras línguas é imensa mesmo hoje em dia. Essa imagem é o fotograma do clipe de Wuthering Heights, uma das canções mais importantes dos últimos tempos, reconhecida no mundo inteiro. Em 1978, ela lançou esse vídeo coreografado que virou mania, antecedendo a microdança dos vídeos do TikTok em 38 anos. Foto: Divulgação.

O impacto dessas mulheres moldou o surto de liberdade criativa dentro e fora do mainstream nos anos de 1980. As mulheres inundaram o pop e se marcaram como os grandes nomes desse tempo. Surgem grandes artistas de uma suposta arte menor, a música pop radiofônica e que passava na televisão. Madonna, Cyndi Lauper, Kyle Minogue são nomes de grande sucesso que encheram nossos ouvidos dos trinados femininos em letras provocantes. Madonna empreende uma cruzada pelo corpo, pela liberdade, pela posse de sua própria sexualidade e sensualidade. Cyndi Lauper mostra um lampejo de criatividade e contestação dos padrões de feminilidade aceitáveis, com um visual pós-punk, colorido e muito à frente de seu tempo. Kyle Minogue ajuda a unir Austrália e Reino Unido na produção de música pop de qualidade, ao mesmo tempo que radiofônica e bem sucedida. O mundo da música pop não é o único. Tendências como o jazz, o country e até mesmo a música da América Latina traz grandes mulheres como vocalistas.

Madonna | Tudo Sobre | Estadão

Madonna, ícone dos anos de 1980 e 1990. Sua atuação parte da música pop para todas as formas de arte midiática de sua época. Madonna é engajada na causa feminina e prega, na sua obra, sexualidade livre, liberdade do uso do corpo e independência em relação a papéis femininos tradicionais. Foto: Divulgação do seu álbum Madame X.

Na segunda metade do século XX, as mulheres latinas, a princípio, como a peruana Yma Sumac, são vistas como exóticas, étnicas e diferentes no mundo europeu e norte-americano. Mas a música mexicana, argentina e brasileira mostra nomes de artistas contestadoras, fortes, como a brasileira Nara Leão, que cria tendências que depois se tornam o estilo MPB, o mais marcante e significativo da música urbana e burguesa do Brasil. Por outro lado, na Europa, a música latina cantada em italiano, francês e espanhol mostra grandes nomes, grandes vocalistas, uma tendência que entra na década final do século XX, que se apresenta como um momento de extrema criatividade e presença das mulheres em todos os estilos musicais.

Nara Leão – Wikipédia, a enciclopédia livre

Nara Leão é um exemplo de protagonismo feminino na música brasileira. Ajudou a criar o movimento da Bossa Nova, no final da década de 1950, mas o questionou em prol da necessidade artística e pessoal de expressar melhor a brasilidade e fazer eco ao contexto social da sua época, em suas canções e atuações. Nara Leão é conhecida pelo seu ativismo, poder questionador e lucidez, mesmo sendo oriunda de uma classe burguesa e conformada, inclusive com os desmandos da Ditadura Militar. Suas inquietações musicais e pesquisas trouxeram à luz a MPB, junto com outros cantores e compositores da época, um estilo musical contemporâneo, questionador e enraizado na cultura popular do país.

Essa década é muito importante porque permite a jovens cantoras, aspirantes ao sucesso, pegarem carona na indústria musical e conquistarem espaços antes dominados por homens. Assim, a partir de 1990, aparecem nomes revolucionários, calcados nas lições dadas pelas cantoras das décadas anteriores. Tori Amos, Alanis Morissette, Sarah McLachlan, Fiona Apple, Paula Cole, representando a música branca, misturam o pop, rock, folk e country numa tendência chamada de “Lilith”, em referência ao famoso “Lilith Fair”, um festival de celebração à música feminina, contando com mulheres brancas, negras e de outras etnias, idealizado e organizado por Sarah McLachlan nessa década. Posteriormente, essa denominação passou a toda manifestação musical feminina dentro do universo do pop, folk , rock e country. Essa denominação “Lilith”, tornou-se uma label do Spotify recentemente, podendo ser usada para encontrar e ouvir música do tipo. Clique aqui para ouvir uma playlist do gênero no Spotify, login requerido.

Sarah McLachlan soars in angelic and intimate Houston performance - CultureMap Houston

Sarah McLachlan: cantora, compositora, instrumentista e idealizadora do festival Lilith Fair (1997, 1998, 1999 e 2010). Esse festival congregou nomes femininos, para criar um movimento coeso de música norte-americana e europeia, voltado aos valores e demandas das mulheres e à criação de espaços para as mulheres na indústria da música. Foto: Divulgação.

A música negra, desde os anos de 1960 tem mostrado a presença feminina em nomes de grande reconhecimento, como Etta James, Ella Fitzgerald, Aretha Frnnklin, Nina Simone, Roberta Flack, Diana Ross entre outras. Nos anos de 1980: Janet Jackson, Tina Turner, Whitney Houston e outros nomes continuaram a tradição de oferecer ao público grandes vozes e performances marcantes. Na década de 1990, Mariah Carey domina o cenário como a cantora de origem afroamericana mais bem-sucedida: seu alcance vocal absurdo e seu carisma fizeram-na uma grande vencedora de inúmeros prêmios. Os anos subsequentes trouxeram o furacão Beyoncé e todas as vozes femininas do Rhythm and Blues para o cenário pop. Dos anos 2000 para cá, o número de mulheres negras e brancas que fazem grande sucesso aumentam vertiginosamente: Rihanna, Janelle Monáe, Cardi B, Nicki Minaj são exemplos de cantoras afroamericanas de sucesso.

Janelle Monáe brilha em mais uma de seu novo álbum; ouça "I Like That"

Figura icônica da música negra atual, Janelle Monáe é uma pessoa LGBTQIA+ extremamente politizada e questionadora de parâmetros tidos por normais de comportamento, sexualidade e expressão de gênero. Foto: Divulgação.

Por um lado, a etiqueta “Lilith” não cabe a todas, porque nem todas tematizam a existência feminina, seus problemas e contradições. Ou seja,  “Lilith” não é um estilo musical, mas uma tendência de militância pela mulher, seus direitos e demandas, dentro da música. Há grandes intérpretes do presente e do passado que não são exatamente contadas como parte de um movimento explícito de protagonismo feminino na música. No entanto, o trabalho de mulheres como Dionne Warwick, Barbra Streisand, Dolly Parton, Bette Middler, Carly Simon, Céline Dion, entre outras abriram caminho para a presença da mulher no cotidiano da música comercial. Ao seu modo, cada uma pôde marcar sua presença e desafiar a ordem do momento, questionando a forma como as mulheres costumam ser vistas pelos homens, quando ocupam espaços parecidos com os deles.

Há uma novidade contemporânea: a figura da diva do pop, cantoras ligadas ao cenário musical centrado no mercado estadunidense e europeu, que exporta tendências para o mundo inteiro. Nesse âmbito, nomes de há trinta anos, como Madonna, convivem com estrelas recém-lançadas, como Billie Eilixh, de 2016, vencedora de muitos prêmios. Assim, nomes como Katy Perry, Lady Gaga, Fergie, Britney Spears, Christina Aguilera, Rihanna, Lana Del Rey, Beyoncé, Shakira, por exemplo,  circulam num meio de extrema adoração e intenso consumo de seus produtos musicais e de mídia, em geral. Nesse grupo, das divas, pode haver tanto um afastamento das reais questões femininas, quanto a genuína adoção do tema nas canções e outros produtos de mídia. As mulheres do pop geralmente aderem à luta pela diversidade, são sensíveis a causas como o racismo, a liberdade sexual, militam pela democracia, demonstrando engajamento num suposto “lado certo da história”, que faz sucesso com o público, assim como também mostra as artistas de um modo contemporâneo e lúcido. Isso justifica o sucesso dessas cantoras junto ao segmento LGBTQIA+, assim como a grande penetrabilidade de seus produtos artísticos em outros segmentos da arte midiática, como na televisão e no cinema.

Estrelado por Lady Gaga, 'House of Gucci' divulga pôsteres oficiais | CNN Brasil

Lady Gaga é uma figura-síntese dentro do universo cultural contemporâneo. É uma diva da música pop, mas atua no cinema e na televisão, tendo sido premiada com Globo de Ouro e Óscar (canção). Caminha na esteira de outras artistas mais experientes, como Madonna, mas diversifica as suas atividades para além do pop tido como descartável. Ela é uma artista de meios multissemióticos e plurais, levanta e defende bandeiras e é o ícone de uma geração pouco intelectual, medianamente politizada, mas intensamente conectada. Foto: Divulgação da série House Of Gucci, em que ela atua.

Na música ou fora delas, as mulheres são uma força da natureza, poderosas, criativas e verdadeiras, mesmo quando estão ligadas ao mainstream da produção de cultura midiática. As mulheres são responsáveis pela grande novidade do mundo pop atual, ainda que os homens tenham seu lugar garantido, seu espaço consolidado. A música feminina é muito importante, e nesse contexto, o segmento “Lilith”, ligado ao festival dos anos de 1990 e à Sarah McLachlan é o melhor representante de um movimento que tinha duas frentes de ataque: abrir espaço para a voz feminina, suas contestações e pontos de vista e, ao mesmo tempo, consolidar a presença de mulheres a longo prazo em gêneros musicais de grande aceitação pelo público. O Lilith Fair acontceu pela América do Norte, Estados Unidos e Canadá, em 1997, 1998 e 1999, tendo uma reedição comemorativa em 2010. O festival contou com a presença de muitas mulheres, importantes, questionadoras e donas de si. Por isso a escolha de seu nome para caracterizar a música feminina em inglês, não por um estilo específico, mas por seu caráter questionador. Assista a um VT do festival original de 1997, com muitas presenças femininas estelares:

Mesmo que intérpretes e compositoras femininas não tenham sido conhecidas por carregar uma bandeira de contestação, elas são importantes porque a sua própria existência questionava os lugares tradicionais que a mulher “deveria” ocupar numa época difícil da história contemporânea. Isso era duplamente difícil para as mulheres negras, vítimas da sobreposição do racismo e do machismo em suas vidas.

Lilith Estátua babilônica em terracota, a 2 000 a.C. – 1 500 a.C. Imagem de domínio público, do acervo da Wikipedia.

Enfim, a força da mulher na música é uma prova de seu imenso valor, de seu pioneirismo e da luta contra a opressão que ainda insiste em nosso tempo. As mulheres ensinam uma grande lição a todos nós, por sua resiliência e resistência, em momentos certos, mesmo quando são constituídas como sujeitos em sociedades que as submetem por muitos motivos, entre eles, pela necessidade da gestão da reprodução, em função do capitalismo e da cultura de valores judaico-cristãos, como é o caso do ocidente e das suas periferias (Brasil, por exemplo).  Mesmo a música europeia e norte americana, muitas vezes imposta, muitas vezes a inundar nossos ouvidos pelo cinema, televisão pela Internet, tem na música feminina essa demonstração de força e lucidez. O arquétipo de Lilith, retirado da mitologia judaica, mostra essa mulher da música estrangeira em inglês, que é a mesma mulher brasileira, contemporânea: independente, igual ao homem e, por isso, destituída de privilégios e tendo de lutar pela igualdade e equainimidade. Lilith pagou o preço por ser igual a Adão, por isso foi rejeitada por ele e o abandonou. Mulheres, todo o dia, pagam um preço por serem elas mesmas, por ousarem ser protagonistas de suas histórias.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

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