Eu me orgulho de ser quem eu sou. Não que eu ache que o que eu sou seja tão bom a ponto de ser melhor que os outros. Ao contrário. Eu quero fazer diferente. Reconhecer quem eu sou e, de certa forma, colocar-me à disposição de quem precisar de ajuda, porque ser o que eu sou, ao longo de minha história, não tem sido fácil. Algo eu tenho para colaborar em diversas frentes de luta pelo respeito, autonomia e liberdade de ser. Por isso eu me reconheço como homem, gay e cisgênero.
Obviamente há pessoas existindo e sobrevivendo em condições muito diferentes e até mais difíceis que a minha. Por exemplo: pessoas trans. Eu ouso dizer que mulheres trans estejam em situação mais difícil que homens. Aliás, todo e qualquer homem cis ou trans tem alguma vantagem nas coisas, ainda que pequena, devido à sua passabilidade. Essa palavra indica uma coisa meio cruel, mas estrategicamente vantajosa para quem é oprimido. É a capacidade que uma pessoa tem de ser lida, compreendida como parte de um grupo identitário que não é seu. É o caso de gays e lésbicas que podem ser entendidos como heterossexuais. Ou como mulheres ou homens trans que são identificados perfeitamente como homens ou mulheres, ou de certas pessoas não serem entendidas como negras, mesmo que tenham relações e identidade racial negra. A passabilidade tem relação direta de conformação com alguns dos principais problemas que a diversidade enfrenta: o gênero binário, as diferenças sociais, racismo, privilégios masculinos, entre outros.
A partir disso é que temos que admitir que homens, gays, cisgêneros, por meio da passabilidade, têm adquirido poder sobre outros indivíduos que fazem parte do espectro LGBTQIAP+. Quando lemos sobre a história da diversidade sexual no mundo ocidental e suas periferias colonizadas por europeus, vemos que claramente se trata de uma história de HOMENS. Mesmo que, ultimamente, tenha-se retirado uma espécie de véu que encobria travestis, drag queens, mulheres trans e lésbicas nessas histórias, parece que ainda são protagonizadas por homens gays.
O mundo gay é masculino e tóxico, eu descobri isso horrorizado, aos meus vinte e poucos anos. Gays padronizados, bears, afeminados, drag queens, bichas pão-com-ovo, bichas poc-poc, todos e todas se organizavam numa espécie de cadeia alimentar em que o mais masculino, o mais macho de todos, o mais branco, magro, limpo e elitista estava no topo. Eu me via pardo, escuro, preto, fora de forma, com pouco dinheiro para roupas e diversão, sem hábitos considerados aceitáveis para estar no meio dos gays dos quais eu achava fazer parte. Mas ainda assim havia quem estivesse em situação considerada por esse sistema classificatório pior ainda.
Não que ser pior por não ser homem e cisgênero realmente afetasse a vida das afeminadas, trans impedindo-as de serem felizes, ao contrário, mesmo estando à margem de algo que as oprimia, elas faziam seu próprio caminho, em seu universo. Eu vi isso aos 26 anos sentado no banco de um ônibus urbano, cabisbaixo e humilhado, sentindo-me mal por não ser bem-sucedido na vida e estar num confortável carro. Ao meu lado duas gays afeminadas, cheias de bijouterias, calçando salto, cabelos frisadíssimos, indo para a boate perto dali. Riam, gargalhavam, até, dançando a última coreografia da moda, da cintura para cima, enquanto eu pensava mal delas, que homem as quereria daquele jeito?
De fato, havia quem as quisesse. E elas não estavam se importando com minha opinião ali, naquela hora. Ninguém que me visse acharia que eu era gay, porque eu usava roupas, cabelo que me faziam ser lido como um homem médio, jovem. Mas elas, não. As gays eram afeminadas, e por isso, transgressoras, e por isso, estavam fora de um circuito de aceitabilidade do qual eu fazia parte. Minha passabilidade, naquele momento, era um motivo para que eu, conscientemente, achasse que eu era melhor que elas. Claro que hoje não penso assim, mas quantos de nós se preocupa, de fato, em questionar se oprime enquanto é oprimido nesse mundo?
Talvez seja esse o motivo para que, ao longo do tempo, certos privilégios tenham se acumulado entre gays cisgêneros e masculinizados. Talvez isso tenha ajudado o machismo passar pela membrana que separa os normais dos diversos, dos diferentes e se instalar no comportamento desses homens, gerar padrões de julgamentos e hierarquias muito parecidas com aquilo que há entre homens e mulheres heterossexuais. Talvez por isso a história da diversidade ainda seja uma história das múltiplas masculinidades dentro da homossexualidade. Talvez por isso lésbicas, mulheres trans e outros estejam comprimidos pelos direitos e vitórias e pelas derrotas. Até hoje, esse momento em que eu escrevo esse texto, às vinte e três horas e onze minutos do dia primeiro de outubro de dois mil e vinte, o termo gay abarca toda uma série de comportamentos e identidades, mesmo aquelas que escapam à masculinidade, isso dentro do imaginário popular, mas tão na superfície do discurso que não dá para ignorar. Até hoje, as pessoas têm dificuldade de ver através dos gays. Lésbicas têm pouca visibilidade em alguns lugares, a ponto de parecer que não existam.
Por isso eu estou aqui, se pudesse, me despiria do privilégio de ser quem sou em prol do outro. Deveria haver um modo de eu retirar de mim todo esse pejo, essa espécie de catarse coletiva de múltiplas culpabilidades, aliás, isso deveria sair de cima de cada homem gay cisgênero do mundo, onde ser assim faz sentido social e culturalmente. Talvez isso amenizasse um pouco a crise em que vivemos. Hoje, nesse dia em que eu escrevo o texto, homens gays estão nas redes sociais organizando tribunais para julgarem o gênero neutro, como se isso precisasse da liderança cisgênera para acontecer. Isso mesmo. O mundo da diversidade, na cabeça de muitos gays, mesmo os que não estão no topo da cadeia alimentar, é um mundo presidido por homens, e o que quer que aconteça precisa de sanção ou veto deles.
Precisamos melhorar nisso, o muito que já caminhamos não justifica esses empecilhos que eu tenho percebido nos meios sociais onde eu convivo. Cresçamos em prol de um mundo melhor. Não estou falando no sentido espiritual, que geralmente estagna o desenvolvimento mental e físico em prol de um mundo do porvir, mas no sentido humano. Cresçamos em prol de um mundo menos masculino e menos tóxico, sem relações desgastadas e degradantes.
O Poder Que Queremos tem de vir de uma luta coletiva focada, sem desperdício de munição com fogo amigo.
Para ver mais artigos de Alex Mendes, acesse a coluna O Poder Que Queremos
Foto de cottonbro no Pexels
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Uma resposta
Penso que gênero e sexualidade são áreas distintas! Já estive em mesa com dois homens: um amigo e um garcon! Três cisgeneros, mais o garcon “hetero”/marido; eu homo e meu “amigo” bissexual (pus entre aspas, por termos romance/relação fluída)! O garcon perguntou a mim se havia penetracao, aonde eu disse, ter perguntado a mim não foi por acaso. Aonde ele disse, que eu estava relaxado, atencioso e, nem sempre homens conversam assim entre si. Ai comentei que eu havia sido penetrado a pouco, com hormônios se acomodando e recebendo certo feedback de complementação dele: socialmente velada paquera e fisiológico dele também aguçado (ereção) e até ele corou e confirmou! Meu amigo ponderou que o garcon acompanhado da esposa deve ser que ela sinta ciúmes dele em relação a mulheres que nem sempre tem feminilidade por mais cisgenera possa parecer! Ai a conversa desenvolveu justamente para aquelas construções sociais: do cisgenero buscar limitar o momento com outro, se evitar penetracao se mantém hetero. O chamado conflito de gênero em que muitos que buscam serem penetrados, pensam que tem que se depilar, deixar de ter voz grossa, ter seios. Nada disso: a feminilidade que se tenha, o bem educado assim chamado, que desperta atração ereção noutro cisgenero! Porque não dizer feronomios despertado por cisgeneros de mesmo genero! Estava perto do restaurante fechar, praticamente últimos clientes, daí a conversa!