Novembro Azul é o mês em que se fala sobre a importância da Saúde do Homem, sobretudo, na conscientização da prevenção do câncer de próstata. Entretanto, o azul de novembro pode também ser um espaço oportuno para refletirmos as masculinidades e os impactos delas na sociedade.
Enquanto pensava sobre isso preparava o almoço, que também seria minha janta, ao mesmo tempo em que estendia a roupa que acabava de bater na máquina. Limpei alguns respingos de xixi na borda do vaso sanitário, que eu mesmo derramei ao acordar pela manhã – a ereção matinal realmente torna um desafio mirar corretamente. Depois disso tudo, ainda ia para a clínica, e no dia seguinte teria que recolher a roupa, fazer compra, etc. Será eu um homem especial? Um adulto funcional?
Ambas as perguntas podem trazer respostas ampliadas, mas que convergem em uma resposta final: o homem não é especial por realizar atividades domésticas, ele é só um adulto funcional.
Digo isso, pois se pensarmos no contexto em que vivemos, um homem – ainda mais cis e hétero – que contribui com as atividades domésticas ou mora muito bem sozinho, ele é visto com um holofote de destaque, que pode colocá-lo em um local especial por exercitar habilidades comuns aos seres humanos em sociedade, que outros homens não exercitam. Ainda podem questionar a orientação sexual dele, como se a orientação sexual não-hétero fosse determinante de desconstrução comportamental.
Pensar no masculino, como concebem os estudos de gênero, é algo sempre a ser visto no plural. Há muitos recortes de ser homem, e as culturas pelo mundo demonstram isso. O que vamos entendendo é que ser homem implica em reiterar que se é um, sempre de acordo com os dispositivos culturais elegidos como masculinos em determinada sociedade é a performance de gênero, como diria Judith Butler.
O que se observa é que há culturas em que divisão de gênero – isso é, ser homem e ser mulher – atravessa puramente uma questão laboral. Em estudos de sociologia e antropologia em determinadas culturas nativas se observa que quem carrega o cesto é quem será chamado de mulher e quem carrega o arco e flecha será o homem, e isso nem sempre acompanha uma ideia de genitália. Ainda, há culturas nativas em que homens e mulheres (no sentido dado pela biologia) cumprem os mesmos papéis no trabalho. E em outras se observam homens ocupando atividades como cozinhar e preparar cestos enquanto mulheres plantam e caçam.
Essa divisão de trabalho que estabelece a reiteração dos gêneros binários nos leva ao encontro de estudos feministas marxistas, pois não há como refletirmos essa relação sem nos apoiarmos neste pano de fundo. Saliento, porém, que não me aprofundarei necessariamente nesses estudos.
Quando pensamos sobre o homem ser um adulto funcional evoco a imagem do homem ocidental, isso é, nós. Sendo assim, é preciso realizarmos alguns resgates históricos importantes.
Para esta reflexão é necessário também, ainda mais em território brasileiro, realizarmos um recorte colonialista e escravocrata. Ou seja, é preciso considerar questões de gênero, raça e classe.
Vamos até a Europa do século XVIII em que a Revolução Industrial dava seus primeiros passos e a migração dos camponeses para as cidades afetaram profundamente a maneira como homens e mulheres se relacionavam com as atividades do dia a dia.
Como a maioria da mão de obra das fábricas eram homens, as mulheres passaram a ocupar cada vez mais as funções, ou melhor uma dupla função: a casa e o trabalho. Nessa ideia, entre a burguesia ascendente, a mulher é elegida como a rainha do lar, aquela que podia governar suas empregadas e bordar o dia inteiro enquanto o homem, seu marido e proprietário, podia decidir as leis e as convenções do coletivo.
Isso diz muito como nos relacionamos com o trabalho doméstico hoje. Por muito tempo o trabalho doméstico que as mulheres proletárias realizavam, não foi considerado importante na produção de excedente no capitalismo. Sendo que, muitos homens proletários só poderiam produzir força de trabalho, pois alguém invisibilizado – as mulheres – realizavam a manutenção da reprodução social: cozinhavam, cuidavam dos filhos, limpavam, higienizavam, etc. Isso também diz muito sobre como olhamos para o trabalho doméstico hoje, e ainda, aliado ao colonialismo e a cultura escravocrata, consideramos que essas funções são menores, não dignas de serem chamadas de trabalho. Porém, basta uma greve, que o mundo patriarcal entra em colapso.
Portanto, a mulher em suas atividades domésticas não é reconhecida como uma trabalhadora pelo seu marido. Isso fica explícito nas mulheres que possui baixa renda e dividem a economia da casa em trabalhos extra. O que se observa é que, no final de uma jornada semanal de trabalho ela ainda tem que dar conta do serviço da casa, sendo que muitas vezes o seu marido e outros filhos homens simplesmente chegam e tiram o sapato e assistem televisão.
Quando imagino está cena – que já vi muito na casa da “família tradicional brasileira” – não consigo parar de associar essa imagem ao menino que larga sua mochila e sapatos no corredor e corre para o sofá ver desenho e a mãe traz a sua mamadeira. Mas a diferença substancial desta imagem é que essa criança-menino se tornará em muito breve o adulto que faz a mesma lógica, substituindo apenas o leite com a cerveja e o desenho com o futebol. Ao dizer isso não estou moralizando essa prática, saudável, mas problemática quando negamos à mulher esse direito também.
Assim como as primeiras grandes guerras mundiais na sociedade industrial fez com que massivamente mulheres ocupassem o mercado de trabalho e isso mudasse algumas perspectivas, bem como o direito ao voto e tantas outras conquistas via luta coletiva, as mudanças sociais que assistimos hoje exigem cada vez mais uma postura funcional e adulta do homem na participação da reprodução social.
Acontece, porém, que os poucos homens que vêm fazendo isso vão se sentindo especiais, esperando medalhas e honrarias por fazerem nada mais que a obrigação. E por outro lado há mulheres aplaudindo esses homens, quase como avatares do Rodrigo Hilbert. E isso fica explicito nas frases “ele é um ótimo pai, até ajuda a trocar fralda”, “ele é um ótimo marido, até ajuda a lavar a louça”. O “ele até ajuda” demonstra uma sociedade em que ainda não consegue conceber o homem como um ser que precisa desmamar urgentemente de privilégios que desnivelam a luta por direitos e espaços de poder.
Como psicólogo penso que esse é um processo geracional a ser conquistado, e que caberá as famílias também consolidarem esse projeto de sociedade em que ninguém é especial por cuidar da sua casa, de si e da sua família. Mas uma sociedade em que produz adultos funcionais, independente de gênero, é uma sociedade especial se comparada aos exemplos de opressão em que vivemos.
É preciso também uma educação familiar e da escola na produção de meninos para homens funcionais, demonstrando que isso não abala suas/nossas identidades de gênero, pelo contrário, isso apenas engloba outras possibilidades e aquisição de habilidades que os/nos humaniza.
Por Sérgio Lourenço
para sua coluna Queer-se.
Foto de Andrea Piacquadio no Pexels
Uma resposta
O Homem Moderno como que vem sendo o que elas tinham como “discurso” de si: “cuidam dos afazeres da casa, trabalham fora” e algumas vezes, mesmo sendo solteiros, nos aparece um marido querendo que a gente o chame de “nosso” , sob alegação de serem Bissexual 🙂