Gostaria de fazer uma pausa para olharmos o outro lado da margem da sexualidade, pois quando somos LGBTQIA+ é comum que tendemos a dissecar mais a nossa sexualidade do que a dos outros: os heterossexuais.
A heterossexualidade vem sempre acompanhada de uma lógica universal, ancorada no sujeito cisgênero, geralmente branco cujo representante da espécie é o homem, o macho dotado de pênis, e o “segundo sexo”, a mulher. Sendo assim, esse modelo de heterossexualidade que estou me referindo se baseia em uma estrutura normativa e por isso mesmo é heteronormativa e compulsória.
Por compulsória quero dizer que ela atende a uma ordem daquilo que é obrigatório, cujo efeito de compelir e instruir assegura a manutenção de uma única lógica de poder: a do masculino sobre o feminino, do homem sobre a mulher… Em última instância, como aponta a episteme feminista, a heterossexualidade é um instrumento do patriarcado que submete a mulher ao homem. Por essa razão, desconstruir essa estrutura normativa é um passo essencial para o verdadeiro empoderamento da diversidade sexual e de gênero, já que pessoas LGBTQIA+ também interpretam essa peça.
Thomas W. Laqueur (historiador e sexólogo norte americano) nos conta que até século XVIII a mulher não existia como um sujeito singular. Calma! Você não leu errado, as mulheres existiam sim, mas não eram reconhecidas como tal. Sua anatomia não era singular, mas uma hierarquizada, como se fosse um homem invertido para dentro, em que o canal vaginal era um pênis que encruou e que não se desenvolveu em sua plenitude, e por isso desvalorizado frente a um homem dotado de pênis. Essa ideia surgiu de Claúdio Galeno na Antiga Roma e perdurou até a Modernidade.
Com os avanços da medicina no século XVIII a mulher (cisgênero) passou a ser reconhecida em sua anatomia, contudo, o ideário burguês elegeu a mulher como a Rainha do Lar, e muito embora mulheres empobrecidas ocupassem as linhas de produção nas recém-sociedades industriais, ela ainda era subalternizada.
A lógica burguesa instaurou o casamento como sua instituição, a mulher é então propriedade do homem, do mesmo jeito que o patrão é dono dos meios de produção. A mulher era a fábrica e os filhos seus proletários.
A medicina da época, preocupada em construir uma sociedade limpa e amparada nos valores do positivismo, preocupa-se em varrer, com a psiquiatria e o aparato policial, sodomitas e prostitutas para a margem, os manicômios ou as cadeias, elegendo como instituição, o casamento, a família (Papai, Mamãe e filhos) que asseguraria o bem estar e a saúde social. É então que as outras sexualidades, até então pertencentes ao interesse da filosofia moral e a religião passa a ser preocupação da ciência médica e biológica.
Em 1869, Karl Kertbeny (um homem gay) cunha o termo heterossexual e homossexual, na ideia essencialista de dizer que havia pessoas que nasciam homossexuais (e tudo bem!) e que havia pessoas que nasciam heterossexuais. Karl Kertbeny pertencia a um grupo vanguardista na Alemanha do século XIX que pretendia a libertação do homem homossexual (chamados de Uranistas) dos grilhões moralistas e patológicos. Porém, o neologismo de Kertbeny foi tomado de empréstimo pelo sexólogo (ciência pioneira na época) Kraft-Ebing que para atender a medicina moral tornou a heterossexualidade como sinônima de saudável e normal, em contrapartida, tornou o homossexual o doente e anormal.
Todos esses recortes inauguram a heterossexualidade na modernidade como um conceito social para garantir a mulher como propriedade de um homem apoiada erroneamente na ideia da reprodução.
Reprodução não tem relação alguma com heterossexualidade! O encontro do espermatozoide e do óvulo pode acontecer com instrumentos de um laboratório. O evolucionismo nos ensina que a reprodução sexuada é apenas uma forma que a natureza encontrou para perpetuar a espécie e garantir uma genética diversa e forte. Namoro, casamento paquera, beijo na calçada, beijo de novela, andar de mãos dadas na rua, ir ao cinema, dar flores… Todo o resto é cultural. Isso não quer dizer que não haja o elemento do instinto no caráter reprodutivo das espécies. Mas será que quando um homem cisgênero pede para fazer sexo anal com sua namorada eles estão agindo assim por instinto? Será que o sexo oral é um aparato biológico? Métodos contraceptivos usados pelas mulheres para não engravidarem? Será que o verdadeiro ato sexual heterossexual é só “papai” e “mamãe”? Não.
Toda essa breve introdução histórica é para compreendermos que o homem cisgênero branco heterossexual burguês (preferencialmente cristão) é posto no centro da galáxia que ele inventou e a mulher, e todo o resto, são apêndices dele ao seu serviço. É nisso que a heterossexualidade compulsória se baseia. Podemos até mesmo encontrar esse mito fundador na Gênesis da Bíblia que é o grande tecido que assegura essa relação: “E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem formou uma mulher; e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne; esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada.” (GÊNESIS, 2:18-24)
Portanto, qual é o resultado das somas desses catetos com a hipotenusa? Mulheres que são criadas para atenderem em todas as instâncias ao homem, não tendo sua sexualidade como um instrumento de sua própria potencialidade, mas exclusivamente a serviço do prazer masculino e da reprodução de sua prole. Ao colocar isso, não estou de nenhum modo condenando o modelo heterossexual de família, nem muito menos destituindo mulheres de escolherem para si o matrimônio com um homem como um sonho, a maternidade, enfim…
Na verdade, ao trazer e levantar essa reflexão é no sentido de perguntar as mulheres e homens, e no fim a todos nós, será esse o único modelo de felicidade e realização a ser seguido? Não! Há outras possibilidades que foram historicamente silenciadas. E é aí que as LGBT entram e desestruturam o único modelo organizador baseado na uniformidade, não na diversidade.
A heterossexualidade compulsória é um instrumento de ignorância, pois na medida em que ela apenas reconhece e produz saberes apenas sobre si significa que ela está deliberadamente ignorando outras sexualidades, e ainda mais, ela está ignorando as potencialidades de si mesma.
Portanto, é possível pensar em uma heterossexualidade livre? É, e é exatamente isso que o feminismo e indiretamente o movimento LGBTQIA+ está fazendo. Quando o feminismo propõe a igualdade entre os gêneros se constrói possibilidades de encontros mais baseados na relação do que no poder entre homens e mulheres heterossexuais. Quando a mulher descobre o seu prazer sexual ela conhece seu corpo, reconhecem seus paradigmas e o que lhe agrada, e com isso cada vez mais elas não se sujeitam a estupros matrimoniais, ela não é mais um vaso receptivo que aguarda o seu varão, ela agora é um sujeito que goza. Isso implica que o homem heterossexual também se descubra se emancipe, se reveja…
Para ver mais textos de Sérgio Lourenço, confira sua coluna Queer-se.
Imagem de Oberholster Venita por Pixabay
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