Segunda feira tivemos a notícia do falecimento do diretor William Friedkin, conhecido principalmente por dirigir “Operação França”, mas com certeza seu filme mais reconhecido é a obra prima do terror “O Exorcista” que dispensa qualquer tipo de apresentação. Quando soube de seu falecimento pensei que seria uma boa oportunidade para ver um de seus filmes que nunca havia visto, “Parceiros da Noite”, um filme que conta a história de um policial que se infiltra na cena gay leather BDSM em busca de um assassino.
Nos dias que se passaram eu estava passeando pelo twitter e vi surgir uma discussão em nosso nobre meio LGBTQIA+, Heartstopper não corresponde à realidade e é uma série higienizada. A briga evoluiu para algo que navega sobre gays pudicas e gays que só pensam em sexo. Decidi então que essa seria a melhor hora para começar a ler os quadrinhos, já que tenho alguma dificuldade de ficar em frente a uma televisão por muito tempo vendo algo que não é muito minha praia.
O que fiz? Isso mesmo, li o primeiro volume de Heartstopper a tarde e a noite aproveitei um tempinho que tinha e vi “Parceiros da Noite”. Quando terminei o filme acabei vendo que essas duas obras conversam diretamente com esse debate no twitter e vou explicar os motivos.
Primeiro preciso falar sobre elas e vou evitar os spoilers para os que não gostam e pretendem um dia ler o quadrinho ou ver o filme. Então vamos lá.
Heartstopper é uma história em quadrinhos escrita e ilustrada por Alice Oseman. A série com 4 volumes já publicados e um quinto que está previsto para sair esse ano segundo o Wikipedia. A história gira em torno do adolescente Charlie Spring, que ao ser tirado do armário de forma forçada passa a sofrer bullying e ser isolado, mas pouco a pouco volta a reatar contato com as pessoas. Uma dessas pessoas é Nick Nelson (Alice formada pela escola Stan Lee de nomes), um jogador de rugby que passa a ter aulas em parceria com Charlie e nisso nasce uma amizade entre os dois.
O quadrinho apresenta sua história de forma leve. Existem partes que são partes mais densas, como o assédio e a perseguição com um dos personagens, mas a autora opta por não nos mostrar algo violento, quando está para ocorrer algo sempre salva o dia, então não temos nessa obra gráficos muito densos ou pesados. Hesartstopper é um romance com personagens LGBTQIA+ nos moldes de comédias românticas que temos por aí desde que a Meg Ryan nos abençoou com elas.
Parceiros da Noite, ou Cruising no original, é um filme de 1980 dirigido por Friedkin e que tem Al Pacino no papel de Steve, um policial que almeja uma promoção para detetive, e que vê na oportunidade de uma missão essa chance. A missão? Ele terá de se infiltrar em meio a comunidade BDSM Gay em busca de um assassino de homossexuais. Devido ao seu físico similar ao das vítimas, ele passa a rodar por esses bares e locais de ponto de encontro gay em busca de informações sobre quem seria esse perigoso assassino.
Cruising, até por sua temática, é um filme que visualmente nos apresenta os locais de encontro de maneira muito nua (Bem nua) e crua. Homens de jockstrap, transando na frente de todo mundo, encaradas longas e desconfortável, fetiches e até mesmo uma cena de fisting podem ser vistas em meio as tomadas desse filme. Mas não se enganem, isso não é algo que é colocado de graça ali, porque ver essas coisas vai pouco a pouco afetando o personagem de Al Pacino, que mergulha fundo nesse mundo em busca do assassino.
Um outro ponto que é interessante no filme é como ele é, e muito, uma crítica forte e sem pudores a como a polícia lida com minorias. Em vários momentos o filme fala sobre como a polícia é violenta e que não tem o menor interesse quando se trata de crimes contra a comunidade LGBT, isso quando não são os membros dela que estão violentando os membros da comunidade.
Bom, como dito são obras completamente diferentes em sua essência e história, mas que exemplificam bem esse debate no twitter que apesar de ser feito de forma extremamente rasa ainda assim pode ter um fruto interessante nele. Cruising é um filme que não nos poupas de cenas de sexo mostrando o quão sexual a comunidade era na época e continua sendo, mas digo para vocês, isso é não só válido como também importante.
Se pensarmos nas censuras sofridas pelo movimento, a parte do toque, o sexual é sempre uma das que mais são combatidas. Não podemos dar as mãos, não podemos beijar em público porque o que as crianças pensarão, enquanto isso os héteros fazem e acontecem desde que o mundo é mundo e a censura não é nem de longe a mesma, pelo contrário. Ou seja, é sim importante que saibamos que esse modelo higienizado que a comunidade conservadora tanto hétero quanto LGBTQIA+ quer porque quer nos colocar dentro não nos representa nem de longe. Não sejamos assimilados para agradar quem não quer nos agradar, estamos aqui e queremos ser respeitados em nossa totalidade, desfilando de jockstrap na parada ou vivendo nossa sexualidade ao máximo.
Em compensação saibamos diferenciar as coisas também. Não é que a obra Heartstopper seja APENAS perigosa para a comunidade, não podemos negar que ela é higienizada até porque o gênero romance em obras assim é sempre higienizado, mas creio que em certos momentos os LGBTQIA+ tenham seus momentos de uma coisa um pouco mais fofinho e carinhoso e que não seja tão voltado para o sexo. Quando nos reduzimos totalmente ao higienizado ou o sexual não podemos dizer que vivemos um todo, então acredito que o negócio é não renegar nenhuma parte de você.
No fim o que eu digo é: Desfrute de uma obra como Heartstopper, mas tenha o senso crítico de saber que aquilo tem sim uma parte higienizada de relações para não ter tantos problemas com uma parte das alas conservadoras, mas também se lembre que se o tesão falar e você tiver a oportunidade de se entregar aos seus fetiches de forma segura, não existe porque renegar isso porque é natural e satisfatório.
Respostas de 3
Li seu texto e fiquei pensando se deveria responder ou não, mas acho que é um debate válido. Pelo que entendi, na sua perspectiva Heartstopper é uma série higienizada, ou até mesmo, nas suas palavras, perigosa para a comunidade, porque não aborda de forma explícita o sexo ou temas mais pesados, correto? Me parece que sua análise desconsidera que se trata de uma história sobre adolescentes de 15 anos e que é voltada para o público adolescente. Tratar esses temas com leveza não se trata necessariamente de uma “higienização para agradar o público conservador”, mas sim uma forma de mostrar ao público jovem que, apesar de todas as adversidades, a comunidade LGBTQIA+ não se resume à marginalização e violência, e tampouco ao sexo. Sexo e sexualidade são coisas bastante distintas (ainda que a comunidade gay comumente trate como a mesma coisa), e Heartstopper trata justamente do processo da descoberta da sexualidade durante a adolescência, das angústias que se passa ao entender a atração por alguém do mesmo gênero ao mesmo tempo que se enfrenta os anseios naturais da adolescência. Falar que isso é perigoso por ser tratado de uma forma leve e por mostrar que, apesar de ser um caminho difícil, é possível encontrar a aceitação dos outros e de si mesmo, e até mesmo vivenciar uma experiência romântica, me parece um ponto de vista bastante simplista e que reforça o estigma imposto pela sociedade de que a comunidade gay se resume a sexo e não é digna de experiências amorosas mais profundas. Seu texto bem pontua que o sexo faz parte da comunidade e não deve ser motivo de vergonha, mas falar que uma série com personagens tão jovens, que estão descobrindo a vida e seu lugar no mundo, é perigosa, me soa bastante problemático. Isso parece reforçar a ideia de que ser LGBTQIA+ significa estar fadado ao sofrimento e que a comunidade gay, especificamente, se resume a sexo, ainda que o final do seu texto diga o contrário. Abordar a temática de forma leve não implica necessariamente em pudor, e sim em respeitar o processo de descoberta e entendimento de cada um, especialmente em um momento de tantas descobertas. É importante que as gerações mais novas tenham referências como essa para entender que não há nada errado em ser LGBTQIA+ e que não estamos fadados a dor e sofrimento. Também é importante que entendam que a descoberta da sexualidade é um processo, como a história bem retrata em seus volumes seguintes (além de abordar temas mais densos como saúde mental e distúrbios alimentares), e cada pessoa enfrenta esse processo de uma forma diferente. Mostrar isso de forma leve e otimista, que respeite o tempo de cada um, não deveria ser enxergado como problemático, e sim como algo positivo, uma forma de mostrar àqueles que estão se descobrindo LGBTQIA+ que é possível ser feliz sem ter que esconder uma parte tão importante de si.
O grande lance de Heartstopper é que o gênero em si, o romance mais voltado para a comédia, é higienizado. O tema pode ser leve? Vamos ser sinceros, não no mundo em que vivemos. É gostosinho de ver uma história em que as dificuldades são tão fáceis de superar ou são super restritas, eu mesmo achei Heartstopper super boa de ler exatamente porque as coisas são bem leves, mas peguemos o exemplo de Sex Education que eu acredito ser um pouco mais real, e ainda assim acredito que tenha uma leveza ao falar dos temas. Higienizar acaba sendo isso, você deixa tudo muito palatável e eu acredito que como entretenimento é MUITO válido, mas quando a gente abraça isso como sendo a experiência que queremos para os que virão depois sendo que isso vai ser a experiência de uma minoria (Espero um dia ser sim da maioria, inclusive) é higienizar, e acredito que devemos estar a par de que tanto o adolescente com ideias românticas tiradas de filmes quanto o cheio de hormônios querendo transar até com uma árvore serão válidas e que estaremos de braços e cabeça aberta para ambas, sem descartar nenhuma quando for dar suporte.
Na minha opinião/ótica a Sexualidade sempre foi amplamente fluída! Sendo um pouco mais atento: quem tem mais de 50 anos ouvia palavras como: amante (a), concubina, adultério (sempre hetero)! Mas a AIDS/HIV e Varíola dos Macacos, alegam comumente ocorrer, com maior incidência, em relações homossexuais ou homoafetivas! Mas nunca percebi existir aquele hetero que por unanimidade: marido e amante de mulher! Tive intimidades com colegas mas próximos e/ou amigos! Quando dois irmãos e a noiva de um deles, buscaram saber – veladamente – minha sexualidade e presumi-la hetera, eu namorava homem, ambos cisgeneros, ele bi e eu homo (década de 90) era assim que a gente “se percebia”, hoje nos dariam a oportunidade de nosso relacionamento ser “definido”: “homem que transa com homem”! Para quem também diz que penetrado já “muda o jeito”, percebi que na conversa familiar passei como “virgem” 🙂