Esses dias eu pude ver Goianésia como há muito tempo eu não via. Deixei a cidade ainda com o sol alto, pois eu me dirigia à Santa Rita, onde eu daria uma aula, a convite de uma amiga. Aproveitei o momento para fotografar um belíssimo pôr do sol, apesar de atento à estrada sinuosa e frequentada por máquinas agrícolas e caminhões. Na volta, a escuridão de uma noite sem luar. Eu enxergava apenas alguns metros da estrada, iluminada pelos meus faróis, além, claro, das luzes de freio de um carro apressadinho que me ultrapassou quando eu andava a cem quilômetros por hora numa estrada cheia de curvas à noite. Olha que audácia. Mas tudo bem. Para muitos moradores daqui essa estrada é caminho de casa. Como fora para mim outrora, em 2003, quando eu trabalhei por nove meses na Usina Goianésia. Não andava toda essa extensão entre as duas cidades, apenas a metade do caminho. Mas era comum, em alguns dias, depois de um serão, a gente ver a cidade já se iluminando, depois de uma das curvas da ladeira que desce a montanha.
Foi exatamente isso que eu vi, de súbito. Um mar de luzes de duas cores: brancas e amareladas. Aqui e ali um vermelho de uma torre, ou seria um semáforo? Não sei. Mas era lindo. Durou um átimo, logo a curvatura da estrada escondeu a paisagem, que surgiu ainda bela à minha frente, depois de uma reta, e depois sumiu. Por que ali não havia um mirante? Por que não construíam ali uma estrutura para que pudéssemos ir à montanha tirar fotos de Goianésia? Embora eu tenha passado muito rápido, pude perceber que não era um lugar tão seguro para se estacionar o carro e tirar uma foto, uma pena. Mas nem tudo nesse mundo precisa ficar guardado na memória eletrônica de um aparelho ou numa nuvem digital. Meus olhos jamais se esquecerão do mar de luzes, mesmo sabendo que se trata de uma cidade pequena, mesmo sabendo que a urbe possui poucos quilômetros de raio. Não se trata de uma visão de Goiânia do Morro do Além, nem mesmo da visão de Brasília e suas bordas intermináveis, vistas da Torre de Televisão, com seu halo alaranjado, mostrando luzes de casas e ruas a dezenas de quilômetros dali.
Assim como o pôr do sol, o nascer também tem sua beleza marcada pela escala de cores causada pelos raios de sol no ar cheio de poeira e fumaça do cerrado goiano. Amanhecer em Santa Isabel de Goiás, cidade próxima a Goianésia. Foto do autor.
É uma colmeia pequena de luzes, uma pequena cidade, incrustada num vale meio sem-graça, mas aos meus olhos, foram instantes magníficos. Falta tanta coisa bonita em Goianésia. Falta um rio caudaloso para nos irrigar, e isso até nos traz a sorte de não termos inundações. Faltam paisagens extraordinárias, bairros muito bonitos, prédios históricos monumentais, lugares bons de se ir durante o dia ou durante à noite. Nossos morrinhos são tão sem-graça. O único que eu gosto mesmo é o Morro da Ema, aqui pertinho de casa. Desde criança eu o olho, sonhando. Num passado recente, em meio a momentos de contemplação inútil, eu imaginei idiotamente que um dia, o morro se tornaria numa ave ancestral, colossal, titânica, e iria se levantar do solo, sacudir o cerrado que cresceu sobre suas penas, jogar ao chão, sobre casas, ruas e veículos, as antenas de celular e Internet espetadas em suas costas. A sua cabeça, ocupada pela caixa d’água do bairro, se levantaria derramando milhares de litros na terra, derrubando casas e varrendo o solo em direção à baixada do bairro Nossa Senhora da Penha. A ave magistral sairia correndo e piando estridentemente numa velocidade assombrosa, numa destruição apocalíptica. Foi horrível imaginar a nossa bela cidade arrasada por uma fera primordial, como num filme B japonês, desses que são regravados e viram blockbusters no cinema norte-americano. Mas foi inevitável para a minha imaginação contaminada pelo cinema.
A respeito disso, eu li um texto, uma vez, dizendo que a recorrência de filmes em que a cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, é destruída por inimigos naturais, feras fantásticas, seres extraterrestres ou inimigos terroristas tem a ver com o medo de um real apocalipse, causado pelas iminências de conflitos entre esse país e seus inimigos reais. Talvez eu tenha um inimigo real, talvez tenhamos um inimigo desses e estamos lidando com o medo causado por nossas incertezas naturais: o calor que beira os quarenta graus o ano inteiro, quando não passa disso, a estiagem. Talvez eu esteja com medo da destruição de nossa natureza, de nosso cerrado. Um dia, talvez, amanheçamos numa cidade cem porcento cercada de pastos pegando fogo e lavouras de cana, numa terra estéril e envenenada, com crianças doentes e adultos cancerosos, lamentando a chuva de veneno trazida pelos aviões agrícolas. Talvez um dia tenhamos de roubar ração dos coxos dos confinamentos para comermos, enquanto vemos os bois gordos que jamais usaremos em nossa alimentação, todos vendidos a peso de ouro para burgueses estadunidenses ou sheiks árabes. Não sabemos onde essa economia excludente nos levará, que fim levará nosso vale bonito, não sei como eu verei, nas próximas e curtas décadas que me restam de vida, essa cidade iluminada, ao descer a serra, vindo de Santa Rita. Talvez um dia eu veja tudo apagado. Talvez eu não veja, talvez eu não possa mais.
Mas, por enquanto, alegra-me essa imagem, que não registrei em fotos, não publiquei nos meus stories, não fiz postagens nas redes sociais: guardei na minha mente, para não esquecer. A última vez que eu havia visto isso foi há doze anos. Desde então, Goianésia só cresce. Parafraseando João Batista: Convém que ela cresça e eu diminua…
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Foto da capa por Alex Mendes: Pôr do sol em Santa Rita do Novo Destino, Goiás. Cidade próxima a Goianésia. A viagem nessa estrada motivou a escrita da crônica. Na foto, a luz solar difusa foi fotografada através do filtro da película INSULFILM™ da janela do carro.