Gazpacho

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— ¿Qué tiene este gazpacho?
Tomate, pepino, pimiento, cebolla, uma puntita de ajo, aceite, sal, vinagre, pan duro y água. El secreto está en mezclarlo bien. A Iván le encanta como lo mezclo yo…

Desde minha adolescência, repito essas linhas de Mujeres al borde de un ataque de nervios, clássica comédia de Almodóvar, de 1988. Filme cult e muito citado, fez-me uma vez comprar os ingredientes e fazer a tal sopa fria espanhola e degustá-la. Fiz isso me imaginando na pele de Pepa, superando o seu amor deletério por Iván, ao mesmo tempo em que estava a receita de gaspacho como se fosse um feitiço lançado no ar a fazer com que quase todos os personagens em cena dormissem um sono profundo. Sua fala era mágica. Pepa parecia uma feiticeira, conjurando um poderoso encantamento, com olhar forte, fala cadenciada, olhando a todos consumirem a sopa cheia de soníferos, los morfidales de Pepa, uma paródia do diazepam, medicamento da moda, na época, já que descansar, acalmar-se, dormir, há 36 anos, parecia ser mais importante que emagrecer, a obsessão moderna.

Cartaz do filme "Mulheres al borde de un ataque de nervios" de Almodóvar. O título do filme ocupa quatro quintos do cartaz, em formato de retrato. O nome MUJERES, no primeiro quinto é escrito com letras vermelhas com traços amarelos na parte central delas. Olhos femininos densamente maquiados e sobrancelhas arqueadas estão abaixo da porção final dessa palavra. Abaixo da imagem desses olhos estão as outras palavras do título, centralizadas e ocupando três quintos do cartaz. À margem esquerda do cartaz e na segunda metade abaixo, encontram-se as imagens de uma boca com batom vermelho na vertical, cuja metade se sobrepõe a uma figura retangular magenta. A palavra final do título, NERVIOS, é escrita com letras vermelhas e detalhes amarelhos, como a primeira, mas em tamanho menor e inscrita num retângulo amarelho. Toda a porção da margem direita do cartaz, na sua segunda metade abaixo é ocupada por dois retângulos. Um estreito que contém um título explicativo: "Un film de ALMODÓVAR" que se sobrepõe sobre e serve de título para o outro retângulo com informações sobre os autores e o filme.

Já fiz gaspacho em casa pelo menos umas duas vezes, e achei gostoso. Não senti todo o prazer que Pepa tinha, ao dizer que Iván gostava de como ela o misturava, liquidificando os ingredientes. Eu tinha vontade de sentir o amor que Pepa tinha. Na verdade, eu já senti um amor avassalador, enlouquecedor, acho que todos, pelo menos uma vez na vida, nem que seja por um instante, já se sentiu como ela. Amando sem limites. Mas o amor impõe limites, principalmente quando o outro não quer amar mais e cabe a um dos amantes enterrar os despojos, os restos.

Esse filme me marcou por causa disso. No meio de tantas trapalhadas e cenas hilárias, eu quis, por tudo nesse mundo, lembrar-me para sempre da força de suas falas e personagens. As mulheres avassaladas por dramas pessoais: a amante enganada; a esposa traída; a nova amante; a mulher do enteado; a amiga surtada. São várias camadas nas personagens femininas de Almodóvar.

Pepa é como uma estrela em supernova. Depois de sua explosão, vem a retração que suga toda a desordem ao seu redor, mas em vez de se tornar um vórtice negro que suga a matéria ao seu redor, Pepa se torna, no enredo, um vórtice organizador que coloca a tudo e todos em seu devido lugar. E por último, coloca a si mesma num espaço de conforto e entendimento de si.

O filme se inicia com a personagem principal sofrendo pela ausência de seu amado, o ator e dublador Iván, com quem ela divide os microfones e o leito. Pepa se encontra ansiosa, surtando, esperando que Iván possa retornar ao seu apartamento, uma grandessíssima cobertura em Madrid, cujo terraço é cheio de animais, como se fora uma fazenda.

Pepa se levanta para ir trabalhar e desencontra-se com Iván do início ao fim do filme. Sempre um passo atrás de seu amante, ela vai caminhando lentamente até a consciência de que ele não a ama mais. Viciada em soníferos, a protagonista parece querer atentar contra Iván, enchendo um liquidificador de gaspacho de comprimidos para dormir. No entanto, num de seus acessos de raiva, Pepa quebra seu telefone, as ligações de Iván não chegam e, infelizmente, ele não toma a sopa. Ela não impede seu movimento, ao contrário, ela descobre que Iván tem uma família, um filho adulto que está, com sua noiva, a procurar um apartamento para alugar.

O destino os coloca na casa de Pepa, uma vez que ela quer ir-se de Madrid e pretende alugar sua cobertura. Nesse meio tempo, Candela, uma amiga, entra em cena, após se envolver com terroristas que pretendem sequestrar um voo para a Suécia.

Síndrome de Estocolmo: Pepa tenta proteger Iván de si mesma, cometendo erros e deslizes o tempo todo, para que Iván não consiga achá-la. No entanto, o problema de Candela é urgente. Uma ideia aparece: buscar a ajuda da advogada feminista Paulina. No entanto, Paulina trata a rival extremamente mal. Frustrada, ela chega em casa e encontra uma cena muito bizarra. Candela dando em cima de Carlos, filho de Iván, enquanto Marisa, sua noiva, está dormindo, após tomar a sopa com soníferos.

A partir daí, chega a polícia na casa de Pepa. A princípio, querem investigar uma ligação feita do apartamento dela, denunciando o ataque terrorista ao voo para a Suécia. O clima tenso e teatral leva todos a uma situação-limite quando a esposa doente de Iván, mãe de Carlos, Lucía, chega em cena. Pepa. Ao perceber a chegada da última peça do quebra-cabeças em sua casa, a protagonista resolve todo o problema: Iván está fugindo da Espanha com Paulina para a Suécia, no voo que os sequestradores pretendem tomar. O investigador fica mais desconfiado de todos e decide levar o grupo para prestar esclarecimentos na delegacia. Candela e Carlos vão à cozinha, colocam mais soníferos na sopa e a servem para todos. Ao se perceber dopado pela sopa com psicotrópico, um dos investigadores tenta reagir, mas é tarde para todos. Apenas Lucía e Pepa não a tomam. Assim, ambas se altercam e Pepa inicia uma perseguição a Lucía, que sequestra um motociclista, namorado de Ana, vizinha do prédio.

A imagem mostra as personagens do filme: Candela, Carlos, Pepa e Lucía, sentados em sofá de cores clares, à frente de uma mesa de centro cheia de objetos: uma bandeja em que a sopa foi servida e os itens de um jogo e sua caixa espalhados pela superfície da mesa. Carlos e Candela tomam gaspacho em um copo longo. Pepa os observa, enquanto Lucía parece alheia, com o copo na mão.
Candela, Carlos, Pepa e Lucía. A famosa cena do gaspacho. Imagem de divulgação do filme. Disponível em: https://www.rtve.es/play/videos/que-grande-es-el-cine/grande-cine-espanol-mujeres-borde-ataque-nervios/5295610/

O clímax é a cena do aeroporto. Lucía tenta matar Iván com um tiro de uma arma subtraída aos policiais. Pepa salva sua vida, mas o deixa ir com Paulina. Lucía é detida por policiais e pede para retornar ao hospital psiquiátrico de onde saiu. Já a heroína volta para a casa, desiste de alugar a cobertura, acolhe a Carlos e Candela ainda a dormir, acorda Marisa e resolve recomeçar a viver, apesar de Iván e do abandono.

O ciclo se fecha para Pepa Marcos. A atriz, dubladora, atriz coadjuvante numa série de TV em que interpreta a mãe de um assassino, passa por uma transformação interna que a leva à solução de seus problemas mais profundos: ela consegue ser ver livre da influência maléfica do amor que sente por Iván.

Resenhar esse filme nem era o meu objetivo principal, quando eu resolvi escrever esse texto. Eu estava simplesmente curtindo a vibração maravilhosa da experiência estética de vê-lo mais uma vez. Já assisti a essa obra umas três vezes, creio. Cada vez foi mais reveladora: as camadas estéticas vão se revelando como a cebola que Pepa usa no gaspacho.

Os tons de vermelho do tomate e do pepino se espalham pelo casaco, pelo vestido de Pepa. O mesmo tom grita numa parede, aparece num item da decoração, é a cor do telefone que ela destrói em acesso de fúria. Vermelha é a cor do amor, da paixão, mas é a cor do sofrimento imposto por uma paixão desenfreada.

Há muito não sei exatamente o que é sentir um amor assim. Talvez jamais venha a senti-lo. Por isso me parece ser tão fascinante vê-lo na tela. O amor de Pepa Marcos é intenso. Mas não só o dela: Candela, Marisa, Lucía, Paulina. Todas amam intensamente, todas têm uma força enorme em suas mãos.

A imagem mostra as atrizes principais do filme "Mulheres à beira de um ataque de nervos", caracterizadas como suas personagens. Da direita para a esquerda aparecem María Barranco como Pepa; Rossy de Palma, como Marisa; Julieta Serrano, como Lucía e Carmen Maura como Pepa. Todas estão sentadas, da esquerda para a direita, nessa ordem, num sofá de três lugares, rosa. María se veste de amarelo claro, Julieta de rosa bebê, enquanto Rossy e Carmne vestem-se de vermelho intenso, cor marcante, cujo uso é uma das principais características da obra visual de Almodóvar.
Da esquerda para direita: María Barranco, Rossy de Palma, Julieta Serrano e Carmen Maura, incorporando Candela, Marisa, Lucía e Pepa.

Longe de trabalhar o estereótipo da mulher nervosa, a obra de Almodóvar é um canto à sua força e bravura. Não importa se são amigas ou rivais, se estão contra ou a favor uma da outra. No final, todas reconhecem o seu único mal: o amor por um egoísta, um real narcisista que está, também, fadado a abandonar Paulina, mesmo que ela insista em entrar num voo com ele para outro lado da Europa, provavelmente cheio de terroristas.

O destino de Paulina é o destino dos que amam: o inesperado, porém dificultoso futuro dos amantes, especialmente daqueles que amam alguém como Iván, terrivelmente mal recomendado. O amor, no entanto, não é bom, nem racional, sua pior faceta está nessa situação, quando algo que deveria ser um nobre sentimento, envolve-nos numa trama horripilante de posse e competição que tira de nós o sentimento de solidariedade com nossos ou nossas iguais.

É o amor. Ele é aquilo que deixa a todos à beira de um ataque de nervos.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: Imagem de Ирина Кудрявцева por Pixabay

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