Gay e professor

Não parece ser algo de tanta importância ou motivo de espanto quando digo que tenho quase vinte anos de carreira como professor, sendo gay assumido. Isso acontece porque algumas profissões parecem, numa análise superficial, mais tolerantes com a presença de gays. E aparentemente, a docência parece ser uma delas. Mas parece, apenas. Na verdade, não é. O que se tem, de fato, é a presença de LGBTQIA+ de maneira declarada em todos os setores da sociedade, a maioria deles enfrentando muito preconceito e barreiras quase ou completamente intransponíveis.

Primeiramente, eu creio que o preconceito está em estigmatizar a figura do gay no mercado de trabalho: o campo beleza, da moda, a enfermagem, por exemplo. Muitos ficam estigmatizados. Já ouvi homens reclamando de serem “confundidos” com gays por causa da opção em se tornarem enfermeiros ou cabeleireiros.

O que eu descobri, em minhas reflexões, é que as profissões com maior presença feminina, a princípio, foram as mais tolerantes com a diversidade de orientação sexual. E talvez por isso, carregam em si o estigma de terem em seus meios os “inimigos” naturais da masculinidade. Isso é lamentável de muitos modos. A gente poderia passar meses escrevendo sobre isso e ainda assim não esgotaríamos essa problemática completamente. Mas eu quero falar sobre mim.

Em segundo lugar, as coisas aconteceram por caminhos diferentes. Jamais quis estar em alguma dessas profissões. Eu sempre me senti vocacionado à educação. Não exatamente pelo seu sentido mais filosófico e profundo: formar cidadãos, construir conhecimentos que sustentavam a coesão social. Mas pela beleza inegável do saber sendo exposto em sala de aula.

Então, eu olhava, enquanto adolescente e estudante, com muita admiração para meus professores, pessoas extremamente sábias, extremamente comprometidas com a verdade de seus saberes, todos engajados na tarefa de conseguir o melhor de nós, sentados ali, na sua frente. Eu me via naquele lugar.

No entanto, isso não me levou naturalmente ao curso de formação de professores que estava ao meu alcance: Magistério em nível médio. Eu preferi fazer o “segundo grau” não profissionalizante, porque, apesar de querer ser professor, eu temia o impacto daquela escolha em minha reputação. A sala era cheia de mulheres. O curso formava professores e professoras para atuarem na educação infantil e nos anos iniciais, uma profissão “feminina”  demais para mim.

Além disso, esse tipo de pensamento me tirou de um caminho, mas não evitou nada. Ao terminar o secundário, passei no vestibular para Letras. Um sonho: ser professor de inglês. Caí numa sala cheia de mulheres. 30 moças e 3 rapazes, apenas. Um deles se mudou e abandonou o curso. Eu e outro ficamos até o final. Embora eu não tenha me formado com ele, por causa de uma reprovação por faltas, eu precisei frequentar um ano a mais para terminar o curso. Na turma em que me formei, em 2003, havia mais rapazes que na outra, mas ainda havia mulheres em número maior. Não éramos nem dez homens.

Um ano após a formatura, eu consegui ser nomeado, após concurso público, para o cargo de professor. Quando comecei a minha carreira. Eu assumiria uma postura de negação e de silenciamento sobre a minha sexualidade. Um ano após a minha posse como professor, sofri a primeira violência verbal e quase física em sala de aula. Fui abordado em pleno horário de aula por estudantes que queriam revelar a todos que sabiam que eu era gay.

Além disso, depois de enfrentar isso em sala de aula, três estudantes atiraram pedras e frutos de uma árvore em mim. Tudo aconteceu fora da escola, quando eu ia para casa. Em pânico, recorri à direção da escola, que tomou medidas disciplinares, mas nada me deixou calmo ou tranquilo. Até que, um dia, cerca de um ano depois, eu resolvi sair daquele casulo e assumir quem eu era de verdade.

Novamente, eu não tinha ninguém que podia me apoiar psicologicamente no trabalho. E nem em casa. Eu não tinha um colega gay sequer. Nenhum gay assumido na escola, nenhum aluno gay assumido, mesmo no Ensino Médio. Aparentemente eu estava só. As escolas sempre cheias de mulheres. A maioria delas pouco amigáveis, pouco abertas a qualquer tipo de conversa ou proximidade. Fiz amigos, amigas, mas nenhuma professora ou professor se tornou confidente, ou me deu apoio. Na verdade, eu sentia que todos e todas meio que se afastavam de mim, evitavam-me quando constatavam a diferença que eu apresentava.

Talvez naquela época, nos primeiros anos da minha carreira, eu tenha aprendido a separar muito bem o que seja a relação entre colegas de trabalho e a relação de amizade. Eu aprendi também a manter uma distância dos estudantes por causa de mim mesmo. Muitos poderiam ficar “mal falados” por andar perto de mim, por demostrarem amizade por mim durante as aulas ou fora delas.

A minha vida pessoal e profissional estava ficando muito amarga. Eu precisava mudar. E me mudei. De casa, de cidade, fui morar na capital, trabalhar em outros espaços, outra escolas, aprendi a me valorizar como professor, como pessoa, aprendi a ser quem eu era sem ter vergonha de ser gay.  A princípio, tomei a decisão de nunca mais esconder isso de meus colegas de trabalho ou dos meus estudantes. Custasse o que custasse, esconder a sexualidade sempre trazia mais problemas, atraía preconceitos e criava expectativas erradas ao meu respeito.

Quase vinte anos após esses primeiros problemas com a sexualidade na minha carreira, as coisas mudaram. Mas não o suficiente. A presença de professores gays e lésbicas na escola é maior que nunca, mas ainda não temos respeito o suficiente. Por parte dos estudantes, que muitas vezes protagonizam atos extremos de preconceito verbal, contraditoriamente há mais compreensão. É uma situação paradoxal. A todo o momento dentro da sala de aula vemos garotos ofenderem uns aos outros usando termos femininos como ofensa ou chamando-os mutuamente de gays. Mas inegavelmente, essa geração de agora é mais dócil e compreensiva com a diversidade.

No entanto, a violência, a agressão, a misoginia e o ódio aos LGBTQIA+ continuam sendo ensinados a eles pela geração anterior. Seus pais e avós são parte da mesma geração dos meus colegas de trabalho. Entre eles há uma resistência muito grande. Muitas vezes é uma resistência velada, silenciosa, recoberta de camadas de religiosidade, fé cristã. Falar de sexualidade era um tabu. Tudo era pecado, mas ao mesmo tempo a sexualidade permitida, normalizada era carregada de abusos contra as mulheres, especialmente.

Há muito pouco a se comemorar com relação à diversidade no meio educacional. O silenciamento é muito grande, eu me sinto só, muitas vezes não consigo me defender sozinho, não posso problematizar a minha condição sem maiores problemas. As escolas públicas do meu estado, principalmente, têm retrocedido na abordagem da mitigação do preconceito contra negros, mulheres e LGBTQIA+.

Imagem de ooceey por Pixabay

 Os estudantes LGBTQIA+ já chegam na escola se compreendendo e assumindo. A descoberta dessa identidade depende pouco ou quase nada de uma escola que os ignora como seres dessa natureza. Todos são iguais perante uma formação de identidade que propositalmente não vai abordar esse aspecto, que não vai falar sobre isso na sala de aula. Portanto, a discriminação e o preconceito não serão combatidos e muitas vezes serão tolerados. Nesse espaço, como é que o professor gay, a professora lésbica ou a professora trans terá lugar de fala, assumirá uma cadeira e se tornará um professor, professora, docente?

Infelizmente, constato que os ambientes educacionais não são amigàveis à diversidade. Diretores, coordenadores, professores e representantes da classe estudantil precisam se formar para respeitar o próximo. Essas ações têm que trazer a possiblidade de acolhimento, têm que desafiar o preconceito do conservadorismo e deixar de referendar o discurso cristão e conservador que ainda vigora nos meios educacionais. Eles se silenciam sobre a diversidade porque acreditam que isso seja pecado, errado, crime ou conduta reprovável. Como confiar nessas pessoas?

Os desafios são muitos nesse âmbito. A onda de neoconservadorismo que assolou o mundo no início desse século chegou ao Brasil. Partidos conservadores elegeram muitos governadores e prefeitos que são os responsáveis pelos sistemas de ensino que formam nossas crianças e adolescentes.

O boicote à diversidade já começa onde mandam n educação. O silêncio das secretarias de educação sobre o tema já é o suficiente para que as pessoas na escola já assumam a posição de tabu a respeito da diversidade étnico-racial, o silêncio a respeito da condição feminina (mesmo num lugar onde as mulheres são a maioria da força de trabalho) ou da diversidade de orientação sexual e de gênero.

Enfim, há pouco a se comemorar. Há muito a se esperar. Em suma, eu me sinto mais respeitado hoje em dia do que no passado, mas ainda assim eu me sinto tenso em relação ao que há de vir, caso a diversidade não seja priorizada.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: Imagem de 41330 por Pixabay

Respostas de 2

  1. Meu primo, é professor aposentado, mas ainda convidado para atuar em projetos na área da Educação. Ser gay Não o impediu de sucesso na carreira, mesmo nos momentos em que cobrou por disciplina em sala; os seus egressos lembram dele com nostalgia! A peculiaridade em ser Professor, digamos assim, está por reunir o conhecimento e administração do tempo, em sala de aula, mesmo em disciplinas como a dele que foi História! Já o irmão dele, como advogado, entre os seus pares, deixou de ter a visibilidade do mano “historiador” e é presumidamente hetero (casou, inclusive 🤔)! Portanto, ser hetero Nunca foi “garantia” de ser profissional competitivo! Parabéns pela data (20 anos como Professor)!

    1. Como seu primo, sou um professor de “sucesso”, pois sei ensinar e manter disciplina. Mas na minha história pessoal, enfrentei e ainda enfrento preconceito que não vem da minha profissão, apenas, mas de uma condição que reúne as concepções sociais sobre o magistério e a homossexualidade. É um engano pensar que temos uma sexualidade transparente e que nossa orientação não pesa sobre nossas ações no ambiente de trabalho. Se a homossexualidade não impede alguém de algo, devemos nos perguntar se as condições de existência e exercício de si são iguais num ambiente para homens gays e homens heterossexuais, porque se o “sucesso” depende de mais esforço de quem é diferente, então esse “sucesso” não é justo, assim como justa não é a sociedade com a população LGBTQIAPN+. Relativizar isso é, de certa forma, apagar vivências, dores e até se desfazer do medo, do terror e até mesmo das mutias dores e injustiças que eu e tantos profissionais da educação temos sofrido por nossa condição. Recomendo rever seu ponto de vista. A homossexualidade não é um defeito, não é um impedimento MEU para o sucesso. Mas o preconceito é um impedimento que o OUTRO põe no meu e no caminho de muitos outros em situações reais de discriminação.

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