FLOR DO MAL

Assisto a documentários desde criança. A vida real sempre me pareceu mais assustadora e interessante do que as melhores histórias de ficção. Eu quero escrever sobre documentários que me deixaram muito impressionados. Pode ser que eu fale de um ou mais em cada texto. Geralmente todos têm um liame muito sutil unindo-os. Trata-se de abordagens diferentes das crenças humanas, no tocante à religião, à sociedade, à economia e tantas outras coisas.

Eu quero começar pela série documental Flordelis: Questiona ou adora, um original Globoplay, lançado recentemente, depois que o crime de assassinato do Pastor Anderson fez mais de três anos (16 de junho de 2019). Em poucas linhas: Anderson foi assassinado em casa, numa suposta tentativa de assalto, depois de ter chegado com a esposa de um passeio, à noite. A cantora evangélica e pastora Flordelis teria entrado para dentro de sua casa e lá dentro ouvido os tiros. Ao chegar na garagem, encontrou seu marido alvejado com vários disparos. A família pede socorro e então os fatos começam a se desenrolar em uma série caótica de eventos que emergiam de uma história aparentemente maravilhosa de um casal de benfeitores religiosos e apoiadores de uma causa nobre: a adoção e o acolhimento de crianças abandonadas ou em situação de rua.Assistir Flordelis: Questiona ou Adora online no Globoplay

Mas quem é Flordelis? Suas origens e história é contada minuciosamente na obra. Ela começa vivendo num estado de extrema pobreza, mas sensível à causa das crianças abandonadas. Depois de reunir várias crianças sob seu teto, ela passa a cuidar delas com ajuda da comunidade em situação extremamente precária. Para fazer isso, ela conta com a ajuda de seus filhos biológicos, ainda crianças ou adolescentes e com a ajuda de Anderson do Carmo, que passa a segui-la, acompanhá-la no seu ministério religioso. Nem por isso sua vida é fácil. Flordelis passa a ser questionada, perseguida por vizinhos que reclamavam do barulho das crianças, mas também admirada por muitos. A imprensa a descobre. Reportagens sobre ela são feitas nas emissoras locais do Rio de Janeiro e ela passa a receber apoio de pessoas que admiram sua coragem e insistência. Seu orfanato improvisado não era legalizado. ela não tinha os documentos de guarda das crianças e nem possuia estrutura mínima para alimentar e educar todas as crianças, mas tentava bravamente mantê-los limpos, nutridos e estudando. A permanência de sua vocação e amor por aqueles garotos e garotas fez com que a justiça e as autoridades a tolerassem até que ela passou a receber mais e mais apoio, tornando-se mãe de fato de dezenas de filhos, líder religiosa, pastora de sua própria denominação pentecostal. Em 2018 ela se elege como deputada federal, depois de eleger seu filho, conhecido como Pastor Misael (Wagner de Andrade Pimenta), como vereador em São Gonçalo, estabelecendo-se como a mais promissora das lideranças evangélicas do país. Flordelis estava a frente de um império religioso: uma igreja com 5 filiais e sede na mesma cidade de São Gonçalo, Rio de Janeiro; um mandato de deputada e muito prestígio dado o grande poder do segmento evangélico no governo do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Seu amor pelos filhos, pelas crianças, sua tentativa de melhorar a situação da adoção no país caminhava a passos largos. Fora isso, ela tinha uma carreira internacional como cantora e pregadora. Ela tornou-se a mais poderosa e influente mulher do meio gospel do país. Mas sua história também tinha fatores trágicos que o público desconhecia.

A pesquisa histórica do documentário é completa, e mostra impressões reais do passado de Flordelis e Andreson, com foco no seu real caráter como pessoa, para além da versão ficcional que era apresentada à frente de seu ministério religioso e de sua carreira política. Flordelis é mostrada como controversa, confusa, messiânica, usando poder religioso para convencer pessoas a sustentá-la. Seu caráter manipulador fez com que ela criasse toda uma rede de apoio que sustentava seu poder, cujo braço direito era Anderson do Carmo, a pessoa por detrás de sua carreira religiosa, política e administrador de suas finanças.

O assassinato dessa peça-chave expôs o caráter neurótico de Flordelis. Ela mantinha sob seu teto pessoas capazes de crimes, como dois de seus filhos biológicos e alguns de seus filhos afetivos. O próprio Anderson do Carmo, que se juntara a ela no passado, aos 17 anos, mesmo tendo pais vivos, é parte desse grupo. Denúncias de adoções ilegais, abusos sexuais dentro da casa, de castigos físicos, cenas aterrorizantes e dramáticas recriadas pelos documentaristas mostram que Anderson devia ter um poder muito grande sobre tudo e todos e isso pode ter incomodado outros membros da família, que decidiram se unir para exterminá-lo.

A história é muito forte e nos coloca para pensar a respeito da vida de religiosos carismáticos, independente de sua crença. O excesso de poder que eles concentram em suas mãos sempre têm relação com práticas espúrias, abusos de toda forma e excessos de poder que desafiam as leis. Flordelis ficou no centro das investigações, desde 2019. Desde então, ela perdeu o mandato, tendo sido abandonada pelos seus principais apoiadores. A polícia a achou envolvida numa rede abusiva de interesses e relações, manipulações. O conteúdo da comunicação pelo celular de Anderson do Carmo, resgatada por um trabalho brilhante de inteligência da Polícia Civil do Rio de Janeiro após o aparelho ter sido destruído por Flordelis e seus cúmplices, foi essencial na composição da acusação. Várias pessoas foram presas e Flordelis foi condenada a mais 50 anos de prisão pela morte de seu companheiro, por ter atuado como mandante. Seus filhos (biológico e afetivo) Flávio e Lucas arquitetaram a compra da arma e a execução. Simone, filha biológica de Flordelis, foi condenada a mais 30 anos de prisão por ser uma das mandantes e concebedoras da ação criminosa. O homicídio, por parte dela e da mãe, foi triplamente qualificado. Ainda cabe às defesas recorrer do caso na justiça.

Mas, independente disso, eu me pergunto, como pessoa, como cidadão, nesse mundo: que segredos a vida religiosa esconde dos olhos daqueles que creem ou desconfiam? Que poder religiosos têm? O que não sabemos ou que jamais saberemos de pessoas como essas, que conseguem a todo custo, acesso a diversos tipos de poder?

Conheça os condenados do caso clicando aqui.

Leia um resumo do caso aqui.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Créditos das imagens:

CAPA: Reportagem da Revista Metrópoles. Foto de Divulgação da Imprensa.

TEXTO: Divulgação Globoplay.

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