ET LUX PERPETUA

Eu sempre me lembro de meu ex-marido quando eu penso em Mozart. O que é uma coisa peculiar, Mozart é magnífico, mas meu ex não era… Eu sempre gostei de música erudita, mas não ouvia tanto esse compositor antes de conhecê-lo. Na verdade, surgiu durante uma tentativa minha de fazê-lo ouvir Beethoven. E meu ex-marido era assim mesmo. Ele não seguia nenhuma sugestão que a gente desse, e só ouvia aquilo que ele queria ouvir. Por isso, um dia, eu pesquisei e fiz download de uma gravação maravilhosa da Missa Réquiem de Mozart, da qual conhecia apenas algumas peças. E eu achei maravilhosa.

Cantada em latim, a missa era ouvida por nós dois no carro, durante o trânsito, em casa, quando estávamos deitados, quando estávamos lendo. Era um combo de Mozart que incluía também o Laudate Dominum, Vesperæ Solennes de Confessore e Betracht dies Herz (Grabmusik). Eram gravações sob a regência do falecido Cláudio Abbado, realizadas pelo Coro e a Orquestra Filarmônica de Berlim. A gravação é ao vivo, maravilhosa, com ruídos realistas de gente mexendo nos instrumentos entre uma música e outra, e intensa o suficiente para que as melhores emoções nos enchessem naquele momento.

Wolfgang Amadeus Mozart, Claudio Abbado, Berliner Philharmoniker, Karita Mattila, Sara Mingardo, Michael Schade, Bryn Terfel, Rachel Harnisch - Mozart: Requiem - Amazon.com Music

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Depois de quase onze anos juntos, a relação acabou. Tragicamente. E hoje, mais de cinco anos do fim da relação com quase zero de contato, eu tenho que admitir que as lembranças dessas músicas são o que restaram de melhor. Toda relação é confusa e complicada, o que era para dar certo pode não funcionar, não importa o quão simples tudo possa ser. Isso é um grande problema. Minha relação era um desses problemas. Desde o início. A gente se amava muito, pelo menos eu ouvia isso dele, e eu tenho certeza que amava, mas muita coisa dava errado por vários motivos. Eu não me sentia respeitado e talvez não o respeitasse de maneira adequada. Isso me deixava tão chateado, irritado, muitas vezes decepcionado ou humilhado. Ou tudo ao mesmo tempo.

Mas havia momentos bons. E esses momentos às vezes eram embalados por música. E muitas vezes ouvíamos Mozart, principalmente essa sua Missa Réquiem, especificamente. A obra em questão representa o melhor desse compositor que, na minha opinião, está no cume da arte ocidental, representa todo o estilo de uma época importante para o desenvolvimento da humanidade. Mozart é o século XVIII, um artista-síntese de um momento único da cultura europeia, Mozart é o neoclassicismo, sua influência profunda se sente até agora. Eu pude senti-la na minha vida, ouvindo sua música, deixando-a marcar o meu cotidiano por anos. É impossível não ter ouvido essa música com ouvido apurado, é impossível que o tanto que isso se repetiu me tenha feito pensar e repensar a música. O latim é sofrido, com sotaque alemão. Eles não conseguem pronunciar as vogais de modo correto, de forma que as vogais cantadas, já modificadas pelo tom e empostação em que são emitidas, também se confundem, porque eles não conseguem pronunciar a frase principal do refrão do introito “et lux perpetua, luceat eis” da forma correta. A vogal /e/ vira /i/, as palavras ficam diferentes e mesmo lendo a letra, a pessoa aqui, que estudou um ano de latim na faculdade e continuou, após, a recordar um outro rudimento, não consegue ouvir sem questionar internamente. O latim é pronunciado de maneira mastigada por falantes de línguas que não sejam neolatinas, como ingleses e alemães, principalmente em se tratando de música sacra ou de composições que requerem alto nível técnico de perfeição, como essa. Não sou exatamente um especialista em latim, inclusive é uma língua que não se fala, ainda que se escreva nela, ainda que se possa ler nesse idioma. Há um consenso acadêmico a respeito de como devem soar as vogais. E eu acho interessante que fora do universo neolatino, isso não é respeitado. Todas as vogais latinas podem ser reproduzidas por um falante de alemão, eu imagino. Ou mesmo por um inglês. O que essas pessoas têm de fazer é o que eu fiz quando estudei o idioma britânico. Tentar me desapegar das relações que existem entre vogais escritas e seus sons em português. Porque eu estava estudando outro idioma. Eu tenho de pronunciar be com som de /i/, não /bê/ ou /bé/. Não seria admissível que eu tentasse fazer uma suposta performance da famosa canção dos Beatles e pronunciá-la de qualquer modo. Mesmo aqui no Brasil, eu não teria apoio de meus companheiros de idioma. Meus cofalantes de português considerariam estúpido destruir a pronúncia anglófona. Mas é o Coro da Filarmônica de Berlim, eles cantam latim como quiserem. Ponto final.

Não posso reclamar e minha crítica pode soar besta. Se eu acreditasse em deus, eu poderia funestamente desejar que ele brilhasse a sua luz perpétua sobre eles como desejam os católicos aos mortos. Mas nem isso seria algo de impacto. Quem sabe como era o latim mesmo? Quem tem certeza a respeito de como era a norma padrão do latim? A língua não vive mais nas conversas diárias, e talvez nunca tenha sido como nas regras gramaticais que me ensinaram na faculdade. O latim que sobreviveu pode não ser o latim que as pessoas usavam para conversar, o latim que virou português. O latim que se perde nas eras, e que é cheio de /i/ na missa de Mozart cantada na Alemanha.

Vale dizer que Mozart era austríaco. Não quero que pensem que eu acho que Mozart era alemão. Desconheço a cultura alemã, a austríaca e não tenho afinidade alguma com qualquer cultura europeia, mesmo com a portuguesa. E não tenho muita vontade de mudar isso, a não ser que eu tenha que fugir daqui, do meu país. Mas se isso acontecer, acho que dificilmente eu fugiria para a Europa. É muito caro. Provavelmente eu tentaria um país aqui do lado. Arranho um espanhol, e sei falar inglês. Posso fugir para a Guiana, ou para algum país do Caribe. Mas provavelmente eu terei uma existência covarde por aqui mesmo, se eu não tiver dinheiro para fugir numa possível ditadura, resultado de um processo de implosão da nossa democracia que parece já ter começado. Às vezes parece que já começou. Às vezes parece que tudo vai melhorar. Às vezes não. Mozart não me fez querer ir a Viena, não me fez querer conhecer a Europa por causa da sua música.

Mozart, para mim, é Réquiem, essa missa profunda e forte, essa música melancólica, mas ao mesmo tempo agitada. Para mim, essa peça toda é uma metáfora sonora para as revoluções emocionais que eu sempre senti, desde a minha adolescência, é a metáfora para o meu casamento que acabou numa tragédia pessoal. E por fim, é uma metáfora para o que a vida se torna, de fato. Um réquiem para o nosso último dia. Vivemos para o nosso último dia acontecer, e muitos de nós queremos que esse dia se suceda depois de uma vida significativa, assim como foi a vida de Mozart, para sempre lembrado por suas obras magníficas, não exatamente por apenas essa que eu tanto aprecio. O que eu sinto ao ouvir essa missa é algo muito forte, parece que eu estou vivendo, em outra linguagem, aquilo que eu passei, desde os profundos transtornos da minha existência durante a adolescência, até essa súbita maturidade dos quarenta anos. E por ser muito forte, por repetir os mesmos temas, é que parece mais real.

É algo muito ligado aos primeiros anos da minha relação, a única que tive, que durou quase onze anos, depois dela não tive mais, mas que transcendeu qualquer tipo de coisa ruim que eu possa vir a sentir. Não lembro mais que o suficiente, e não insisto em me lembrar de coisas ruins, as imagens surgem, mas logo se esvanecem nos acordes e movimentos, no coro a cantar, profundamente marcado pela força do naipe dos baixos a cantar a base da melodia, ou pelos agudos do soprano que tomam totalmente meu cérebro, minha atenção. Talvez por isso eu goste tanto de Laudate Dominum, mesmo que não faça parte da missa, mas por causa de seu arranjo para soprano tão profundo e poderoso, que inibe a maioria das sensações que eu tenho, negativas ou positivas, eu gosto de Mozart porque ele me põe num estado de neutralidade. Eu havia sentido isso ouvindo música barroca, achei o mesmo na música neoclássica e achei isso ouvindo Marília Mendonça, mas as musas que me perdoem, a arte que elas produzem são assim mesmo, não importando quem as produza, não importando se algo é exatamente erudito ou popular. Aliás, o que é exatamente erudito ou popular, senão uma divisão social da produção do conhecimento humano? Não significa exatamente que seja algo eficiente ou não, artístico ou não. A arte popular é exatamente arte, como qualquer outra, como a arte erudita. Eu já me senti tocado por um desenho naïf do mesmo modo como eu me sinto pelos esboços meticulosos de Leonardo Da Vinci. Na verdade, o erudito custou a me alcançar. Sempre fui pobre, pobre serei até morrer, pelo visto. Então… É por isso que ando gostando de ouvir mais a voz do Gustavo Mioto do que a de José Carreras, mesmo sabendo a qualidade do trabalho estético e de aprendizagem de canto do famoso tenor.

Mozart me faz lembrar que, um dia, eu quis ser músico, mas nunca quis, de verdade, deixar a música me tomar. Eu tive uma oportunidade, daquelas que só temos uma vez. Sempre tive um violão em casa. O da minha irmã. Depois o que eu comprei para ter aulas e desde então ficou por aqui e ali guardado como se fosse um troféu de uma batalha perdida. Nunca toquei violão de verdade, nunca aprendi uma música sequer. Eu também fiz o mesmo com o piano. Comprei um piano eletrônico e nunca tive aulas. Nunca pude pagar por elas, nunca consegui estudar sozinho, nunca consegui vencer a barreira da primeira dificuldade.

Desse modo, jamais serei alguém que consiga executar algo de Mozart. Mal consigo entender de rudimentos de música. Mal-e-mal nomeio notas num pentagrama, se eu precisar responder a um ditado melódico ou fazer um solfejo, estou perdido. Não conheço nada de ouvido. Cantei em corais por anos, mas a formação musical que eu recebi foi mínima. Talvez eu tenha aprendido algo mais por vontade de saber cantar do que por exatamente algum tipo de aptidão inata ou desenvolvida. Mozart e eu estamos nos extremos da música. Ele é uma estrela de primeira grandeza, eu sou um buraco negro, meu conhecimento musical é tão negativo que absorve a luz ao meu redor e a destrói. Eu destruo a luz da música, a lux perpetua da música de Mozart morre em mim, caso eu precise, de alguma forma, algum dia na minha vida, reproduzi-la.

Isso me faz lembrar uma coisa idiota, mas que faz um certo sentido. Eu me lembrei daquele filme que odeio, O livro de Eli. Dentre os filmes dos quais eu não gostei, esse é o que eu mais me lembro. Não assisti a ele todo, peguei do meio para o fim, e no final, quando eu vi que o cara sabia a Bíblia toda de cor, eu me desmontei em mil blocos de Lego®, jogados ao chão com as pontinhas para cima, a fim de arruinar dedos e solas de pés. Eu sabia que aquilo ali era impossível, até certo ponto. Quer dizer, pode ser que alguém de memória prodigiosa consiga aquilo ou algo muito próximo, mas jamais alguém sob tanto estresse conseguiria aquilo. Mas depois, meu intelecto apelou para o transcendente. Aquilo era um milagre, a coisa estava mais que explicada.

Ainda bem que aquilo é uma ficção. Eu jamais poderia ser um Eli. Se o mundo passasse por uma espécie de apocalipse e meu futuro próximo fosse no meio de uma época em que livros fossem proibidos, gravações de música fossem proibidas e que fosse interditado o acúmulo do conhecimento pela linguagem, e se dependesse de minha memória guardar algo para a posteridade… Adeus tudo.

Jamais conseguiria guardar nada, por mais fácil que isso pudesse ser. De fato, eu não conseguiria de maneira alguma anotar musicalmente uma canção que tivesse dez compassos. Mesmo com minha memória cultural, jamais conseguiria ter cabeça, vivendo numa distopia, para escrever todas as letras de música que eu sei de cor, se é que eu conseguiria lembrar de verdade de tudo isso. O que eu não gosto, por exemplo, merece existir, eu jamais me lembraria de um romance inteiro, esses dias tropecei ao tentar contar de maneira reduzida um conto de Machado de Assis, de modo oral. Eu dependo de uma memória coletiva, fortemente enraizada na materialidade das formas de fixação do discurso. Minha memória é totalmente do século XXI, eu preciso de apoio para lembrar das coisas mais simples, desde que esse lembrar-se seja trazer para a superfície mais do que aquilo que trazemos quando cantamos algo de cor ou quando declamamos um poema conhecido.

Eu conheço quem seja um prodígio da memória, não sou eu. Inclusive eu costumo questionar quem usa muito da memória para repetir algo. Eis o motivo da minha profunda birra com aquelas pessoas que resolvem o cubo de Rubik. Ou com a dança, apesar de bela. Ou com o teatro e seus textos decorados. Eu já consegui decorar grandes massas de informação, mas não era o que eu queria fazer, não me senti bem com aquilo tudo. Decorar informação era a parte mais traumática para mim, uma pessoa que terminou o ensino médio há mais de vinte anos, que estudou por meio de métodos tradicionalistas demais para a época em que vivia. Eu sou apaixonado por essa época em que podemos apenas recorrer de modo rápido a uma base de conhecimentos indestrutíveis, porque já existem em várias formas.

Hoje, Mozart não está apenas escrito nas partituras que podemos comprar em editoras especializadas, e nem em discos, quaisquer que sejam. Mozart existe no mundo digital, me entristece pensar que a humanidade pode, um dia, querer solapar isso tudo, destruindo o mundo e sua cultura digital, essa que me ajuda ouvir Réquiem enquanto escrevo isso, ou a qualquer momento, no meu celular de última geração.

Eu gosto muito de Mozart, embora minha incursão na sua obra tenha ficado na superfície disso. Uma vez ou outra eu ouço algo, mas sem aquele tesão que eu tive no início, talvez pela força, pela presença do outro na minha vida, insistindo para que ouvíssemos aquela missa, uma, duas, três ou mais vezes. Isso é a força construtiva de um sentimento positivo, como o amor, ele abre brechas nas nossas resistências. Eu era muito mais interessado em Beethoven. Não há como comparar, eu ouvi Beethoven bem mais do que Mozart. Ouvi suas sinfonias, assisti a um filme, li capítulos e artigos, tentei entender a sua estética e a parte técnica de sua música, mesmo com o meu nulo — negativo até — conhecimento teórico e prático de música.

Mas o amor me fez ouvir Mozart e sentir sua impressão em mim para sempre. E isso me tornou alguém mais maleável. Meu ex-marido não me apresentou Mozart, mas insistiu que eu o ouvisse com fruição. Um dia, ouvindo qualquer coisa, eu parei com o dedo para cima, em riste. Congelado por dois segundos, eu disse. Isso é Mozart. Era uma canção que passava no Youtube, não sei exatamente porque ela apareceu ali, era uma época em que os algoritmos não eram inteligentes. Era a ária Bechtrat dies Herz, que logo quis pesquisar, fazer download e incluir na pasta com missa que ouvíamos de modo tão obsessivo, nesse dia eu descobri que eu já havia aprendido mais do que gostar de Mozart.

Eu havia entendido, mesmo que de modo prático, a gramática de suas frases musicais. E eu acertei em cheio. Desde então, eu consigo ouvir o Mozart nas coisas, eu consigo entender como a minha vida pode ter como trilha sonora das melhores e piores de suas cenas, a missa que motiva essa longa crônica.

Minha vida é uma composição dessas, intensa e forte. Eu me surpreendo que as coisas que eu digo a respeito do meu passado recente sejam tão permeadas de emoções ainda tão fortes. O tempo parece não passar para a minha mente bipolar. Eu acho chato, às vezes, porque essa é a lógica idiota da minha memória. Preciso de um celular online para me lembrar do nome de um cantor ou de um filósofo que está aqui, na ponta da minha língua. Do mesmo modo, eu tenho problemas por não esquecer o que é de ruim, ou a intensidade das coisas que eu senti no passado. Eu trocaria um tipo de memória por outra, facilmente.

Mas, vá lá. Ninguém está totalmente satisfeito consigo mesmo Por isso, essas coisas que desejamos nesses momentos de autocrítica, é o que abandonamos imediatamente em seguida por não acreditar em nós mesmos nem nesses momentos, ainda que seja em certos momentos como esses que gestem grandes mudanças.

Enfim. Et lux perpetua luceat nobis.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: Imagem de David Mark por Pixabay

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