Eu sou ateu, agnóstico. Ser agnóstico é ótimo. Se quer saber o que é ser agnóstico, clique no link da palavra. Pronto. Eu escolhi ser ateu porque acho mais honesto, da minha parte, duvidar profundamente dos deuses culturalmente estabelecidos, como o deus cristão, o próprio Cristo etc. Os santos, anjos e espíritos eu já vejo com um pouquinho mais de condescendência. Eu geralmente acho 99,99% de toda e qualquer manifestação espiritual um tipo específico de charlatanismo ou de boa fé ingênua em todas as partes. Eu não acredito em milagres e fatos sobrenaturais, em sua grande maioria. Eu tenho só 43 anos de idade. Mas nessa minha curta caminhada pelo Planeta Terra, eu já presenciei pelo menos uns dez fenômenos que eu não consegui compreender. Eles existiram. Eu vi, eu ouvi, eu presenciei.
Isso significa que eu devo acreditar em 100% neles. Não exatamente. Muita coisa pode falseá-los. Não existe, nesse momento em que estamos, fenômenos espirituais que sejam, exatamente, inexplicáveis pela ciência humana. Existem fenômenos inexplicáveis aos quais atribuímos valores espirituais e sobrenaturais, mas até quando? Vamos fazer uma rápida, porca arquegenealogia do espiritismo kardecista que se marcou como vontade de verdade em cima dos limites óbvios da ciência positivista da época. A ciência do século XIX era aquela que justificava o racismo, ainda tentava provar que mulher não era ser humano ou, ainda que com grandes progressos, desconhecia a estrutura da matéria ou a natureza ondulatória e particulada da luz.
Ou seja: nossa atual ciência ainda é pequena em explicar tudo. Ainda mais um tudo que é tudo mesmo. Somos muito pequenos, parte de um sistema extremamente grande e de um universo infinito. Quanto disso ainda desconhecemos, o quanto desconhecemos ainda das coisas que nos cercam? O que eu sei é que as religiões são ineficientes em mostrar as coisas. E com isso eu quero atacar frontalmente o pensamento neomístico pseudocientífico que nasce com o casamento entre espiritualidade e ciência. E o pioneiro dessa bagunça toda é o espiritismo kardecista. No entanto, todas as religiões “sérias” que conhecemos, fizeram casamentos por interesse com os poderes, unindo-se a eles como vontades de verdade a equilibrar o tripé da realidade, junto com o saber e o poder. Na verdade, a religião tanto era fonte de saber, quanto de verdade, até que a ciência positiva pôde substituí-la, um movimento delicado que começa na Renascença (na Europa) e termina com o nascimento da biopolítica. Nesse ponto, a religião deixa de ser um saber ou verdade positiva. Governar é ir contra a religião, seus desmandos e suas inutilidades. No entanto, ainda é preciso tolerá-la e absorver, da maneira mais proveitosa, seu poder paralelo.
Na América Latina e em outras ex-colônias, as religiões de matriz europeia têm profunda influência e seus privilégios são tão grandes que os poderes muitas vezes têm dificuldade em contorná-las. O kardecismo não é uma religião majoritária, mas coaduna com a moral judaico-cristã ocidental, porque nasce como um reformador dos valores do evangelho cristão. Sua influência chega ao país a bordo da cultura francesa, e ataca principalmente as classes aburguesadas da estrutura colonial ou pós-colonial, como a exemplo do Brasil. Um testemunho importante disso está no romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó. O destino dos filhos de Santos e Natividade, Pedro e Paulo — no romance — foi duplamente escrutinado pelos pais. A mãe recorreu a uma médium popular, a cabocla do Morro do Castelo. Já o pai, procura um amigo espírita, mestre Plácido, que atesta as profecias da vidente, evidenciando o lugar do espiritismo no Brasil que transita do Império para a República. Crença aburguesada, cientificizada e com ares de verdade positivista, o espiritismo bordeja a protoburguesia formada pelos mais abastados do Brasil imperial: funcionários públicos, herdeiros, arrivistas, especuladores, agiotas, banqueiros e bancários. Todos eram alvo de explicações pseudocientíficas que tinham por motivo principal manter acesa a chama da esperança da vida pós-morte.
Calcado em antigas tradições místicas ocidentais e alguns orientalismos, o espiritismo nasce como uma codificação de crenças que eram de circulação comum em meios místicos, compartilhados por franco-maçons, rosacruzes e outros tantos herdeiros sobreviventes de religiões europeias extintas pelo cristianismo desde a Antiguidade. O espiritismo é a prova de que o pensamento cristão nunca abafou, de fato, crenças compartilhadas por um todo cultural fragmentado que tinha sempre contato umas com as outras, no espaço continental eurasiático e africano. A prova disso é a tendência mística franco-maçom e rosacruz de se filiar a antigas culturas: egípcia, grega, romana, cigana, árabe ou indiana, ou fazer um mix de crenças delas, de acordo com um discurso panteísta supostamente equilibrado e coerente. Grandes nomes de pensadores, gênios, reis, príncipes e até mesmo religiosos e papas passaram a figurar em listas de nomes de místicos famosos. Bruxos que mantinham contato com o eterno e recebiam revelações sobre o mundo espiritual. Francisco de Assis, Joana d’Arc, Leonardo Da Vinci, Isaac Newton, Shakespeare… A propagandística do misticismo aburguesado do século XVIII e XIX também tinha nomes de místicos profundamente religiosos, como Swenderborg, Jacob Boheme ou o franco-maçom Martinés de Pasqually.
Mas foi dado a um pedagogo, Léon Denizard, no século que seguiu ao grande avivamento místico da Europa, codificar uma doutrina diretamente dos espíritos mais elevados. O espiritismo eclipsou qualquer outro movimento espiritualista europeu, diminuindo a importância da maçonaria (profundamente marcada como um sindicato de políticos burgueses) e embaçando o vidro de nomes fortes, como o da Madame Blavatsky e sua Teosofia de forte influência orientalista. No Brasil, o espiritismo se mostra como um filtro de verdade ou mentira para a espiritualidade de origem indígena e africana. No romance, Machado de Assis zomba do espiritismo, ao fazer com que ele sirva de fiel da balança das profecias de uma médium local. O espritismo ajuda a “disciplinar” as influências vindas de outras formas de pensamento místico que não eram europeias, cristãs ou não. O pensamento espírita é uma das bases da Umbanda, embranquecendo as manifestações espirituais supostamente espontâneas, ligadas ou não às religiões de matriz africana ou às crenças indígenas praticadas nas bordas das cidades maiores do país.
O espiritismo coloca na boca das pessoas elementos de crenças fortes que vão se enraizar no imaginário brasileiro. Como exemplo disso eu posso citar crenças como cura mediúnica, a relação entre corpo físico e astral. Ou ainda o vocabulário místico e esotérico, enredo de histórias, como contos, romances, filmes e novelas de TV que estão muito presentes. O espiritismo floresce na burguesia crescente do Brasil do século XX, alugando um verdadeiro triplex na cabeça do cidadão de classe média. Toda família mediana no Brasil tem membros espíritas. Centros se espalham por todo o país, tornam-se referência em assistência social, a caridade tão propalada. Nos meios onde há pessoas com alto nível de estudo, o espiritismo é uma espécie de catalisador para a entrada de ideias místicas (que sempre estiveram presentes) no imaginário das classes. A crença parece ser o motivo que faltava para pessoas de nível superior passarem a crer em algo, ao mesmo tempo, transcendente e razoável. As restrições do catolicismo e das múltiplas denominações evangélicas se afrouxavam sob a interpretação liberal e prática do kardecismo.
Num contexto de seletiva liberdade religiosa, o crente com nível de Ensino Médio ou mais, com acesso a cultura, bons vinhos e queijos (de vez em quando), poderia acrescentar aos papos de política um comentário sobre espiritualidade, vidas passadas, o significado esotérico profundo do Tarô. Entre cigarros e canapés, falava-se de Maria como vestal de um templo dos mistérios egípcios, ao mesmo tempo em que alguém citava Blavatsky, contrapondo-a a Boheme ou à cabala cristã. Isso num contexto em que outras formas de pensamento religioso continuavam a se espalhar entre os mais letrados do país. Esse momento único do século XX atravessou o século, ditaduras militares e entrou de sola no mundo da Internet do início do século XXI. Agora com mais informação, podemos constatar que toda espiritualidade de origem europeia é inútil para criar pessoas conscientes e conectadas com o presente.
Esse dom, de ser alguém melhor e mais evoluído, não vem de nós, e nem de Deus. Na nossa cultura, nasce da dor de ser pobre. Ou então, no máximo, na capacidade que poucos mais abastados têm de serem empáticos com o sofrimento alheio. Em nada melhorou a vida humana o misticismo judaico-cristão ocidental, assim como os orientalismos trazidos pela era da comunicação da modernidade (1500 d.C. até o presente). Ao contrário, essas crenças ajudaram a trazer um progresso capitalista de características predatórias. Sempre ajudaram a compreender uma dinâmica de classes, primeiro escravagista, depois exploratória e, por último, quer livrar a humanidade de culpas que são óbvias, cimentando uma cultura mundial globalizada baseada no ódio e nas múltiplas verdades, resistindo à ética.
Os centros espíritas podem continuar a distribuir pães, pratos de sopa, cestas básicas e atendimento médico gratuito, mas eles precisam superar o assistencialismo como moeda de troca. As pessoas estão doando em troca de uma vida após a morte melhor, uma reencarnação que possivelmente passará por menos sofrimento ou mais elevação. É inegável que um crente do espiritismo projete nisso uma vida mais abastada, ou um sofrimento romantizado que irá fazer com que se queime etapas em busca de um estado de iluminação quase inatingível. No fundo, promete-se o mesmo que a maioria das crenças: um adiamento do prazer para a eternidade, algo que justifica a cruel economia do uso dos corpos e prazeres dentro do “capetalismo”.
Talvez precisemos superar essas crenças antes de tentarmos qualquer outro tipo de consciência e o que estamos esperando. Uma tragêdia? Não quero ser tão ecofascista.
Afinal, sabemos todos que tragédias são o gás que acende a chama das crenças humanas. Um acontecimento apocalíptico, como foi a pandemia, só traz mesmo o Apocalipse e a sua justificativa de que ele acontece porque um deus justo quer assim.
Justo.
Sei.
Não oremos, então.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
P. S.: Achou que eu iria deixar de falar ao povo LGBTQIAPN+, nosso povo lindo? Não mesmo. Só queria lembrar que essa crença, assim como outras tantas crenças de origem europeia num período pré-positivista, é extremamente preconceituosa com a diversidade de gêneros, corpos e vivências que nos marcam. Cuidado ao defender os espiritismos e espiritualismos em geral. Saindo do universo judaico-cristão ocidental, muito cuidado com esses reflexos na Umbanda, no Candomblé brasileiros e nas outras formas de espiritualismos. O que adianta aceitar e acolher num primeiro momento e, após isso, reforçar estruturas de heteronormatividade? Vamos repensar nossos misticismos juvenis e nossas opções religiosas? Então vamos. Pega aqui na minha mão e vamos.
Capa: Imagem de Enrique Meseguer por Pixabay