Quando eu ouço essa frase “Então é Natal”, eu imagino a versão chiclete da cantora Simone para “Happy Xmas (War Is Over)” de John Lennon e Yoko Ono. As duas muito chateantes, embora eu gostasse muito da música do ex-beatle quando eu era criança e adolescente, por causa da letra, que falava de um fim de ano, de ciclo, essas artificialidades do mundo ocidental. Um fim de ano sem Jesus, sem Deus. A música não fala do menino que nasce para salvar o mundo, mas mostra que a salvação só virá se todo mundo refletir sobre o que tem feito e mudar, e acabar com a guerra. Isso é uma coisa que pode sim, ter vindo das muitas filosofias orientais que influenciaram Lennon após o seu grande sucesso nos Beatles: a ideia de que a paz no mundo virá se consertarmos o nosso interior primeiro. Então esse movimento de dentro para fora, essa paz interior comandaria o nosso corpo e encontraria eco nos nossos semelhantes, até que viesse a contaminar o mundo todo ao nossso redor, numa espécie de rede de seres em paz, em direção a um futuro de paz e evolução.
Lindo, não? Então feliz Natal. Precisamos desse momento de beleza e paz, ainda que artificial. Ainda que forçada. Ainda que dentro da gente. Porque como a gente vai ter paz sabendo de uma guerra na Ucrânia, outra na Síria, várias na África? E a fome que voltou ao Brasil? Enquanto estivermos nos empanturrando de comida, como estarão as pessoas que passam fome? Muito complicado esse cenário. Por mais que o mundo esteja em relativa paz, ela é sempre relativa. E ainda há os problemas surdos, mudos, mas impactantes: há a desigualdade, o preconceito, a intolerância, as religiões que matam, excluem e abusam de seus fiéis. E sim, incluímos nessa lista, infelizmente, a religião que nos entrega o Natal todo ano, dando a pior dos testemunhos.
Ao contar a história do nascimento de Cristo, o Evangelho narra sobre uma família de refugiados, perseguidos, vítimas de intolerâncias e preconceitos que foge para criar seu filho no Egito, já que seu país não mais os queria. Maria era uma adolescente grávida, casada com um homem bem mais velho, que a aceitou para evitar um vexame que levaria ao seu banimento. Jesus, ao crescer, conviveu com os excluídos de uma Palestina Romana, depois de ter retornado à sua terra Natal. Em sua companhia, até a morte, ele conviveu com prostitutas, pecadores, coletores de impostos, pescadores, lavradores, doentes, mendigos, párias em geral. Sua mensagem, até certo ponto, tentava trazer todos para dentro do círculo da graça de um Deus de amor, diferente do Deus dos judeus, cruel e general de guerra, que teve de sucumbir ao Império Romano.
Cristo, provavelmente, propunha uma mudança espiritual com elementos de filosofias gregas e orientais, cujo método de ensino de crenças era direto: de um mestre para um discípulo. Jesus criou um colegiado de mestres que criariam outros mestres, cada um pastoreando um rebanho que viria através de um magistério eterno, o ensino da paz e do amor gratuito. Era o reino da graça e não somente da eleição judaica, exclusivista. Jesus chamava para dentro de seu círculo os pobres, as putas, os degredados, os estrangeiros, sem muito valor no mundo perfeito do judaísmo ou fora da circunscrição da lex romana. O resto já sabemos, como o evangelho conta: Jesus morre por seus ideais. A igreja, no entanto, muda essa mensagem. Ele morre por nossos pecados e agora somos reféns de um amor infinito.
Seria lindo se cristãos tivessem seguido o caminho da paz, mas não seguiram. O mundo cristão é cheio de guerras, dores, algumas delas em nome desse suposto rei da paz que Cristo deveria estar sendo dentro de nós. Isso faz com que tudo se invalide? Sim. Mas a cultura do Natal ainda existe. Se ela não tem mais um sentido espiritual válido, concreto que possa ser real para todos, essa cultura se faz presente por meio de práticas que podem trazer a reflexão sobre amor e paz. Um exemplo disso é a polarização causada pelas diferenças políticas entre conservadores e progressistas durante o governo Bolsonaro (2019-2022). A cada Natal, as pessoas são chamadas a esquecer suas rusgas e diferenças, praticar o bem, ser caridosas, dóceis e unidas em torno de algo. De fato, o cristianismo, no Natal, tem esse efeito de presépio: todos se unem em torno da manjedoura por um objetivo, ainda que seja se empanturrar de comida nada saudável ou falar mal dos convidados da festa. Mas isso também pode proporcionar momentos de paz e comunhão, mesmo que essa paz seja sem efeitos sociais profundos.
Mas vamos retornar àquela interpretação da suposta missão de Cristo. Por ser ateu agnóstico, eu não creio na existência de Cristo, nem mesmo de sua figura histórica estável e única, como muitos querem acreditar. Eu gosto de Natal porque nem o ateísmo ou mesmo o agnosticismo une adeptos em torno de uma mesa para comer ou celebrar algo em nome de uma crença comum. Nem tem músicas de Natal. Eu amo músicas de Natal. Eu canto num coro católico mesmo sem comungar da crença porque música sacra é linda e agnosticismo ateu não tem música sacra, nem profana. Nem mesmo Coral. Não me ofende cantar com cristãos, nem mesmo viver com eles. Venho de uma família de cristãos convictos, praticantes. Por isso estou acostumado a isso. Mesmo que eu não acredite nessas coisas eu sei do poder que essa cultura tem de influenciar as pessoas a se unirem em torno de algo no fim do ano.
Assim, eu disse “sim” ao convite de um dos meus tios para uma celebração na casa dele, no dia 24. Eles são todos da família de minha mãe, a que menos convida. Eu vou. Comerei pouco, não beberei, olharei na cara de meus parentes que só vejo em ocasiões como essa. Pode ser a última vez que eu vejo um deles, por exemplo. Nunca sabemos. E vamos tentanto viver em paz, porque o Natal fala muito disso: paz. Eu queria que houvesse mesmo uma magia de Natal que espalhasse essa paz pelos países em guerra. Mas quero muito a paz, quero e não consigo. E paz não é coisa de se pedir para Papai Noel.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos