Esse assunto não surgiu de hoje, mas de uns dias para cá, talvez dois meses, no máximo, o assunto se intensificou nas redes sociais a ponto de me fazer pensar, confrontar meu criticismo e pensar de maneira o menos excludente o possível. Nunca vi com bons olhos a criação de pronome neutro. Não por seu objetivo principal, mas pela forma com que ele me chegou, em certas comunicações de origem ou de fundo acadêmico. O gênero que substituiria o binarismo existente. Isso me deu um desgosto muito grande. A princípio, eu entendi que não era exatamente assim, mas nunca me preocupei demais com certas coisas na teoria, mas na prática.
Se, por um lado é bom que possamos tratar corretamente uma pessoa que não se identifica com o gênero, por outro, havia um necessário estender-se ou uso de palavras neutras sobre pessoas, clara ou supostamente femininas. Isso me deu pruridos. E era a minha principal objeção. Não vejo com bons olhos o ataque ao gênero feminino como forma de democratização das coisas. Precisamos, antes de qualquer coisa, superar essa necessidade hermenêutica de substituir as coisas. Precisamos acreditar num futuro fim das diferenças de gênero, mas precisamos parar de produzi-las, não exatamente destruí-las deliberadamente, mas mudar a sociedade a ponto de diluir o que é binário para sempre na sua obsolescência. Isso é uma tarefa a se fazer e obviamente a existência de uma linguagem que permita que alguém seja chamado de ile, em vez de ele e ela é algo muito importante, um passo muito favorável à multiplicidade de pensamentos, ações, o que permite novas dimensões do ser.
Mesmo discordando de pessoas que buscam neutralizar o gênero para quem esse gênero é um fator identitário muito importante, eu sempre mantenho uma postura de vigilância a respeito do que eu digo ou faço. Por isso estou aqui, escrevendo esse texto. Recentemente, eu pude fazer outras avaliações muito importantes. Por exemplo. Vivemos num país que, de fato, é um inferno para certas categorias de pessoas. Sem exageros, podemos afirmar que o Brasil é um país feminicida. Aqui, nós vivemos num mundo que achamos ser moderno e desenvolvido, mas uma grande parcela da população pensa de forma criminosa quando se trata de respeitar mulheres. Isso vale para a população LGBTQIAP+. Nenhuma das pessoas que se identificam com as letras dessa sigla vive em situação de conforto nesse país. O problema, para mim, é o masculino, o gênero masculino, o poder masculino, o sexismo que vem de uma cultura herdada de colonizadores.
Assistimos a todo o momento a batalha feminina pela igualdade e a inserção de mulheres em espaços de vivência social e trabalho dedicada a homens, mas estamos longe do ideal, de fato, parece que acabamos de começar uma tarefa que temos feito há mais de um século. No caso de LGBTQIAP+, a escuridão a respeito de direitos humanos e condições de melhor vida em sociedade reina. Essa proposta que tem sido construída, ao longo da última década, pelo menos, é uma luz nessa escuridão. Mas não pode ser entendida fora de um contexto de mudança da forma como os seres humanos veem a si mesmos. Por que o gênero se fluidificou? Porque nunca foi sólido, mesmo que pensássemos assim. Gênero não é genitália, ele não nasce com as pessoas. Podemos aprender e desaprender gêneros.
Talvez por essa consciência, haja pessoas interessadas no efeito de uma comunicação “radical”, como propõe o interessante e verdadeiro documento, “Manifesto Ile para uma comunicação radicalmente inclusiva”. Talvez haja um desejo profundo por uma simplificação de regras de linguagem, uma novilíngua, um esperanto da inclusão. Uma forma de linguagem que crie os espaços necessários, mas apague aqueles que representam o que se combata. Mas temos que ter cuidado na hora de selecionar certas estratégias de ataque. Sem um questionamento profundo que leve ao enfraquecimento do gênero masculino e de toda uma cultura de privilégios relacionado ao sexo masculino, às pessoas cisgêneras masculinas e heterossexuais, o combate ao gênero binário se transforma no combate ao feminino, na sua anulação, no seu enfraquecimento.
No que tange no uso do gênero neutro com pessoas que não se encaixam, não se identificam com o gênero, não há dúvidas que seja algo efetivo e louvável. Já poderia estar nos compêndios da linguagem normativa. Se as pessoas pensam fora da caixa de gênero, é porque não estão lá, de fato. E a língua é tanto reflexo das mudanças sociais quanto o objeto da mudança que se busca. Claro.
No entanto, se você é um leitor atento, deve ter percebido que algo paira no meu texto. Um tom de não-conformidade com algo. Não é com o gênero neutro. Nem com os pronomes iles ou todes. O meu problema é com a insistente prevalência do gênero masculino e com o tiro no pé que muitos de nós damos quando atacamos com fogo amigo quem deveríamos defender. Ainda há a necessidade de fortalecer o feminino. O objetivo central da utilização da linguagem inclusiva não é fortalecer o masculino, mas dizer a todos que não são nem masculinos e femininos que vocês são válidos, existem, podem se expressar corretamente numa nova norma. Assim como todos, todas e todes podem também dizer a respeito de vocês de modo mais inclusivo. Se você se sente diferente, isso não pode impedir de você se sentir isolado, isolada ou isolade. Mesmo que a princípio, seja difícil, diferente e até complicado, pela inclusão de uma nova norma de uso de pronomes, substantivos e adjetivos. Essa complicação vale a pena.
Mas respeitemos os outros gêneros. Duvido que pessoas trans ou cis ligadas à luta pela igualdade sejam responsáveis pelos atritos que eu tenho visto entre grupos. Pessoas cis ou trans que se identificam com o gênero binário têm brigado com pessoas não binárias e agêneras. Há, inclusive, uma estrutura de discurso de culpabilidade de gays, por exemplo, pelo desgaste do uso de gênero neutro nas redes sociais. Li isso com um certo susto. A princípio me fez lembrar que eu mesmo, gay, havia rido, replicado até, piadas em que pessoas de gênero neutro davam desastrosas aulas de linguagem neutra inclusiva. Toda vez que isso acontece comigo eu paro para pensar no quanto é automática a reprovação a coisas não conhecidas. O quanto as desculpas para ser discriminador surgem depois de cada erro cometido como tulipas num campo holandês. Mas isso, de fato aconteceu, há essas imagens. Mas por que não duvidar delas também? Podem ter sido construídas por um difamador. Um homem cis gay. Ou um homem cis hetero. Uma mulher cis, hetero ou trans, ressentida com o todes e seu poder de fazer a gente pensar no que a gente quer varrer para debaixo do tapete.
Infelizmente as coisas não são tão simples. O diálogo, a luta, a batalha, de fato, pelo reconhecimento da pluralidade de gênero é uma coisa séria que acontece todos os dias. Na rua, na academia, nas casas das pessoas, nos relacionamentos não convencionais. O gênero tem sido corretamente desaprendido por lésbicas, gays, pessoas trans, por exemplo, ainda que não tenha sido feita de maneira satisfatória. E não é muito honesto admitir-se uma guerra gay contra pessoas não binárias. Há desgastes, não-reconhecimentos, há falta de compreensão, muita ironia e, acima de tudo, há pessoas que não saibam ter empatia, mesmo quando isso é o tema de muitas conversas e práticas em coletivos, grupos, ONG, entre outros lugares adequados. Há diferenças, trata-se de um grupo heterogêneo que deveria se organizar em torno de, pelo menos, um adversário comum, mas nem sempre gays são vistos como aliados. Obviamente muitos gays, principalmente hoje em dia, entendem-se como aliados de homens cis heterossexuais, mas uma guerra é algo muito dramático.
Talvez falte diálogo às partes. Um tempo para todos poderem se compreender mutuamente. Opiniões mudam.
A luta pelo gênero neutro é válida, mas não é a única. Desagregar ou insistir na desagregação já existente por causa disso atrapalham outras lutas. A visibilidade trans agênera ou não binária é importante, mas lutar-se por isso não justifica atrapalhar outras demandas que visam salvar vidas, melhorar a sociabilidade de pessoas trans, gays, lésbicas, por exemplo. A empregabilidade das pessoas LGBTQIAP+ é algo muito urgente. Nem todos se empregam com a mesma facilidade e todos dessa sigla experimentam preconceito e dificuldades em ambientes de trabalho. A vida de gays, lésbicas e pessoas trans ainda corre risco diário, a violência contra esses grupos é gratuita. E quem agride gay, lésbica e trans também agride quem não é binário.
Estamos todos no mesmo barco. Ainda dá tempo de desviar do iceberg. Lutar pelo gênero neutro, pelas pessoas agêneras e não binárias só faz sentido se todos nós estivermos juntos para terminar de vez essa mudança.
Para ver mais artigos de Alex Mendes, acesse a coluna O Poder Que Queremos
Foto de Magda Ehlers no Pexels
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