Escrevo esse texto na noite de domingo, no dia 13/11/2022, na noite do dia da primeira prova do Enem: Linguagens, Ciências Humanas e Redação. Muitos alunos meus estão fazendo a avaliação. Na semana anterior, fizemos um dia D, para estimulá-los a prestar o exame, além de outras ações, ao longo do semestre. Mas senti algo que eu venho sentindo há anos, desde 2016 ou 2017, pelo menos: os estudantes mais pobres têm se interessado menos pelo exame, na mesma velocidade em que o Enem se tornou um substituto do vestibular dos anos de 1990 e 2000, como forma de ingresso nas universidades.
Dessa forma, o Enem se tornou uma avaliação exclusivista, porque privlegia aqueles que tiveram condição de estudar mais. Dedicar-se a uma formação consistente que permita sair-se bem numa avaliação externa é um privilégio sim, principalmente se estamos falando de adolescentes e jovens que têm de optar pelo trabalho como forma de sobrevivência, num contexto socioeconômico de recessão, aprofundada pela pandemia. Mas isso é um dos lados da figura.
Nascido em 1998, o Enem nasceu como uma proposta de avaliação do Ensino Médio de caráter multidimensional. Essa sua missão nunca deixou de ser cumprida em 24 anos de existência. A aplicação do exame gera dados importantes que subsidiaram e subsidiam mudanças no Ensino Médio, na aplicação de recursos educacionais e nos rumos da educação do país, como um todo. Mas seu caráter de exame de entrada para o Ensino Superior só se consolidou no início da década passada. Até então, o exame tinha um caráter mais ou menos útil, mais ou menos obrigatório. No entanto, várias universidades públicas e privadas passaram a adotar seus resultados como forma de ingresso. Isso permitiu que o governo federal concentrasse na sua mão o controle sobre a qualidade da educação, como nunca fora possível.
A ideia de que escolas e estudantes passariam a ser avaliados num exame só, de que todos teríamos respostas concretas a respeito da educação e de que chances poderiam ser dadas a todos a partir de um exame mais democrático se espalhou rapidamente. O Enem virou também a fonte de esperança de jovens de classes mais baixas que puderam concorrer a vagas em universidades a partir de um exame que quebrava a lógica exclusivista e de classe social alta das universidades estaduais e federais pelo país inteiro. Ou seja, filhos de pobres também teriam acesso à universidade, a partir de um exame que não mais exigiria decorar-se fórmulas e fazer milhares de contas. O Enem virou o modelo de inclusão social por meio da escola pública.
Mas isso durou até que todos, até os mais ricos, passaram a fazer o exame. De fato, a adoção do exame como forma de ingresso no Ensino Superior, a concessão de bolsas e incentivos a partir de notas mínimas fez com que o caráter classificatório prevalecesse. Desse modo, o conteúdo escolarizado passou a ficar mais evidente nas questões que abordam as áreas de conhecimento. As disciplinas escolares passaram a aparecer ainda mais, trazendo para dentro do exame a segmentação das aulas quase sem sentido da escola pública ou privada. O conhecimento pelo conhecimento, a informação para passar na prova parecia voltar. O Enem se “vestibularizou”. Os mais ricos continuam a ter muito acesso às vagas. Os pobres, entrando por acesso universal ou por sistemas de cotas e outras formas, continuavam a redesenhar a situação social da classe trabalhadora por meio do Ensino Superior.
Mas era tarde demais para que o Enem pudesse perder o caráter de avaliação multifacetada ou de porta de acesso dos mais pobres. Ainda que estivesse também aberta aos mais ricos, o desempenho na prova não dependia apenas de conhecimentos que pudessem ser melhor oferecidos nas escolas dos mais ricos. Qualquer estudante poderia se preparar para o exame, em tese, que continuava a ter um caráter de aplicabilidade crítica dos conhecimentos no cotidiano. A prova de redação, por exemplo, não visa apenas mostrar que se sabe escrever, mas visa mostrar os conhecimentos sobre o que se pede que se escreva. A cada ano, os temas da redação desafiam de forma surpreendente adolescentes ricos e pobres a saberem dissertar sobre assuntos em que opiniões não são o suficiente, nos quais o senso comum não serve como forma de justificativa.
O tema da redação esse ano desafia os estudantes a pensar e escrever sobre os povos tradicionais e originários do país. Nesse ponto, o Enem segue desafiando os adolescentes, jovens ou quaisquer participantes do certame a pensar o próprio país em sua integralidade. Fonte: Inep. Divulgação em redes sociais.
A declaração da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) mostra a importância que o conhecimento escolar tem na construção da consciência a respeito do próprio país e de quem o constitui. Fonte: Página da Apib no Twitter.
O Enem desafia duplamente os estudantes ricos e pobres. No entanto, ele não resolve essa diferença essencial da sociedade. Mas pode ou não contribuir para mudanças. Essa possiblidade em aberto já é muito importante. Não podemos deixar que os limites entre as classes sociais se enrijeçam mais do que eles têm enrijecido. Precisamos de chances, o Enem pode se tornar uma delas. Mas pode ser também uma das grandes dificuldades. Num momento histórico como esse, em que estudantes mais pobres ficaram dois anos sem a correta oferta de educação, sem o mínimo que se poderia fazer, carentes de habilidades e competências acadêmicas e socioemocionais, passando por dificuldades financeiras, o Enem é sim, um muro intransponível.
Acho que o governo precisa tomar pé da situação do abandono do exame na série histórica que começa em 2016, resolver esse problema e observar bem as distorções em torno da sua aplicação, ao longo da última década. O número de participantes só diminui e, nesse ano, tem cerca de 3,4 milhões de inscritos, menos da metade do ano em que o governo de Dilma Rousseff terminou. A associação direta entre o abandono do exame e a situação socioeconômica de empobrecimento dos adolescentes de classe baixa é inevitável. Além disso, a queda no número de participantes só tem diminuído depois do início do atual governo federal, em 2019, e nesse ano, mesmo após o retorno total das aulas presenciais, o número é pequeno, o menor em 17 anos.
Cada vez menos, o Enem define o futuro dos nossos jovens, embora possa ser um ponto importante no início da carreira de muitos deles. Certamente, o Enem desafia o jovem que estuda, sendo rico ou pobre, a aplicar conhecimentos num mínimo de compreensão do contexto que o cerca. A competência maior de ser cidadão do mundo precisa ser expressa no desafio da leitura e da escrita. E nesse desafio, a escrita, o domínio da palavra se tornou muito importante. Em 1998, quando o Enem surgiu, os jovens treinavam gêneros textuais para passar num vestibular. A prova de redação nem sempre tinha temática aprofundada nos temas sociais importantes do país. O Enem trouxe isso: as competências de ser leitor do mundo, de estar consciente de si mesmo e de seu papel no contexto histórico do país continuam a desafiar jovens de 16, 17, 18 ou mais anos a mostrar um ponto de vista para além das simples opiniões e do senso comum. O mundo dos fatos, do conhecimento construindo uma visão sobre o cotidiano é avaliada mostrando o que há para além das diferenças sociais.
Esperamos um novo Enem para os anos que se seguem, mesmo que seja o mais do mesmo. O importante é como ele se aplica dentro de um complexo e socialmente mais justo projeto de país. Que venha esse projeto, então!
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Imagem da capa: Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Identidade visual do site oficial do Enem 2022. Foto: Divulgação.