Não tenho nada com isso, nem vem falar
Eu não consigo entender sua lógica
Caetano Veloso, Muito Romântico
Eu tinha 17 anos quando percebi, de modo inquestionável, que minha orientação sexual e afetiva era direcionada aos homens. Não foi propriamente uma descoberta. Eu já desconfiava disso desde o início da minha adolescência, pelo menos, embora não conseguisse formular isso de uma maneira clara até o momento em que as peças se juntaram na minha cabeça e no meu corpo.
Como já contei em outra ocasião, o momento catalisador desse “insight” decisivo aconteceu no primeiro dia de aulas do 3º ano de 2º grau, quando vi nosso professor de física entrar na sala e fiquei absolutamente vidrado nele. Ele era um exemplo emblemático do que alguns anos mais tarde viria a ser conhecido como urso. Não sei descrever com palavras a comoção interna que a visão dele me provocou. Não creio que, ao longo do ano em que convivemos, ele tenha percebido o quanto eu me sentia atraído por ele, embora, pensando retrospectivamente, ele talvez desconfiasse de alguma coisa. Mas certamente nunca soube a importância que teve na minha vida, nem o quanto serei eternamente grato a ele.
Entre esse momento mágico de “revelação” e minha primeira experiência sexual, passaram-se alguns meses. Foi somente nas férias de julho que eu fui pela primeira vez em lugares “gays”: uma sauna no Rio e boates em São Paulo, onde dei meu primeiro beijo na boca de outro homem, com quem acabei indo prum hotel. Embora, tecnicamente, eu já tivesse praticado algumas brincadeiras na sauna, é essa noite, da qual guardo doces recordações (curiosamente, não em relação ao sexo em si, que foi confuso e desajeitado) que considero oficialmente minha primeira vez.
De volta ao Rio, teve início um período um pouco solitário. Levei algum tempo para conseguir contar aos meus amigos mais próximos, colegas de turma, sobre minha orientação sexual. Não conhecia outros “entendidos” (naquela época, ainda usávamos esse termo para nos autoidentificar como homossexuais, embora já estivesse começando a entrar em desuso). Então, comecei a frequentar sozinho a então famosa sauna do Leblon e as noites de sexta-feira na boate Papagaio, na Lagoa (também conhecida como Papagay). Ainda não tinha coragem de ir à Galeria Alaska, em Copacabana, que era então um epicentro da vida gay na Zona Sul do Rio (nem cogitava sair sozinho desse mundinho limitado, o que só veio acontecer mais tarde).
A verdade é que meus principais referenciais gays estavam em São Paulo, ironicamente por questões familiares, pois lá tinha meu tio (minha primeira vez foi inclusive com um dos melhores amigos dele) e um dos meus primos. E, acredito, foi com eles que aprendi a ser gay. Foram eles que me ensinaram os códigos, as manhas, os costumes de um tipo de sociabilidade que só depois eu vim a encontrar no Rio, quando comecei a namorar e, através dos namoros, a desenvolver minha própria rede de amigos e encontrar meu nicho no universo gay.
O ponto que quero fazer aqui é que “ser gay” é mais do que uma orientação sexual e afetiva. É todo um universo de referências, de códigos, de modos de se relacionar e de colocar no mundo. Aliás, não é UM universo, são vários. Por mais que alguns tentem impor um modelo prescritivo de como os gays devem ser e agir, a realidade é muito mais rica e diversa, felizmente. Tem lugar para todos, inclusive, por mais incompreensível que isso possa parecer à primeira vista, para o gay conservador de direita (mas isso é outro assunto que não vou desenvolver aqui. Quem sabe outro dia).
Dessa forma, desde esse longínquo ano de 1982, fui explorando e desenvolvendo o meu jeito de ser gay. Que não é melhor nem pior do que outros. É apenas o meu jeito, uma forma singular de articular os meus desejos, os meus afetos, as minhas sensibilidades estéticas, minhas crenças, minhas heranças dentro do campo de possibilidades que o mundo que me cerca me oferece, com suas pressões, seus determinismos, seus limites e suas linhas de fuga. Em outras palavras, fui construindo minha bolha, tentando tomar o cuidado para que ela seja porosa o suficiente para não se fechar à possibilidade do novo e do inesperado.
Reconheço que fui ajudado nisso por ter tido a oportunidade de viver e testemunhar um tempo de grandes transformações, entre avanços e retrocessos, especialmente no que diz respeito às formas de entender e de viver todas as modalidades de dissidência sexual e afetiva. Penso aqui não somente na orientação dos desejos, como também nas identidades e expressões de gênero que ganharam, eu não diria apenas visibilidade, mas nome e voz.
Tenho muitas vezes a sensação de que nós, dissidentes sexuais e afetivos, ainda nos deixamos definir pelos parâmetros da heteronormatividade dominante. De certo modo, isso é inevitável, pois é a partir do discurso que define o que é a norma e o que foge dela que nós mesmos passamos a nos ver como outros, os anormais. Mas, por outro lado, creio ser possível nos apropriar dessa alteridade negativa e positivá-la. Sem nos prender, necessariamente, a categorias fixas. Assumir identidades como construções culturais, políticas e instrumentalizá-las como ferramentas de luta, mas sem assumi-las como verdades absolutas existenciais e ontológicas. Talvez seja essa uma das lições possíveis a ser tirada da história dos movimentos LGBGTQIA+ nas últimas décadas.
Por isso, tenho cada vez mais simpatia pela noção de “queer”. Porque, na sua radicalidade, o queer supõe um estranhamento permanente a tudo o que tende a se solidificar e a se enrijecer. É menos uma identidade do que uma atitude. Que não se limita a negar e questionar, mas que afirma uma singularidade sempre em movimento. E que resiste, ou tenta resistir, a toda tentativa de encapsulamento. Que encontra conforto e acolhimento no instável e impermanente.
Eu tenho plena consciência de que minha expressão e “performance” de gênero é a de um homem cis gay e branco. E devo dizer que me sinto plenamente confortável com isso. Habito meu corpo com prazer e alegria. Entretanto, cada vez mais percebo minha “alma” como não binária. A forma como meu desejo, meus afetos, minhas sensações, minhas emoções, minhas ideias se combinam para dar forma a um jeito de estar no mundo nunca se alinharam ao que se convencionou chamar de universo masculino, embora não esteja seguro de que também se alinhem ao universo feminino.
Na verdade, eu me sinto oscilando entre esses dois polos, ou talvez com um pé dentro e outro fora desse espectro, reconhecendo a sua presença e a sua força (mesmo que não necessariamente a sua realidade transcendente), da qual não consigo escapar, mas que não consigo deixar de problematizar. E percebo com crescente clareza de que minha trajetória vem se construindo (mesmo antes, muito antes daquela manhã de março de 1982 quando meus olhos bateram naquele bofe maravilhoso e minha vida mudou para sempre) com base e, mais do que isso, instalada nesse estranhamento em relação às dualidades estabelecidas pelos dispositivos de poder que constituem nossas subjetividades.
Estou confortável nesse estranhamento. E talvez eu seja, antes de gay, e com muito orgulho, queer.
Até a próxima!
PS – Na nossa playlist de hoje, temos a gravação do Roberto Carlos para Muito Romântico, de Caetano Veloso; a gravação do Ney Matogrosso paras Máscara, da Pitty; e a gravação original do Caetano para Fora da Ordem.
Respostas de 4
Obrigado por compartilhar esse delicioso texto e essas experiências eu mesmo não conseguiria me definir tão bem como você definiu aqui”
“Eu tenho plena consciência de que minha expressão e “performance” de gênero é a de um homem cis gay e branco. E devo dizer que me sinto plenamente confortável com isso. Habito meu corpo com prazer e alegria. Entretanto, cada vez mais percebo minha “alma” como não binária. A forma como meu desejo, meus afetos, minhas sensações, minhas emoções, minhas ideias se combinam para dar forma a um jeito de estar no mundo nunca se alinharam ao que se convencionou chamar de universo masculino, embora não esteja seguro de que também se alinhem ao universo feminino.”
E.T.: No meu caso foi um professor de Biologia. Prof Arantes, médico aposentado.
Parabéns!!!
😘🌹
Muito obrigado pela leitura e pelo comentário,
Bom demais ler seu texto. Experimentar as dores e as delícias de ser o que somos. Um abraço!
Muito obrigado pela leitura. Abração!