A proposta de redação do ENEM 2023 convidou os participantes a dissertarem acerca do tema “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho do cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Na esteira dos anos anteriores, o tema tratou de um problema social relevante, suscitando uma proposta de intervenção.
Levantar a potência desse tema pode nos conduzir a possíveis e necessários enfrentamentos à invisibilidade de um trabalho tão fundamental. Antes, porém, convém fazer uma reflexão sobre as noções de cuidado e de autocuidado.
A proposta de redação do exame nacional aponta, acertadamente, que o trabalho do cuidado no Brasil – profundamente invisibilizado – é mais realizado por mulheres. Mas como isso se dá? Os cuidados gerais com casa, crianças, pets, familiares doentes e idosos sempre foram subentendidos como atribuições da mulher, embora digam respeito à administração da vida em comum. Este trabalho não é remunerado, e entra no que chamamos de dupla, ou até mesmo tripla jornada. Justamente por isso tem sido considerado na elaboração de políticas públicas que assegurem às mulheres a aposentadoria em idade menor que a dos homens.
Até aqui já parece evidente uma proposta de intervenção: as políticas públicas, com a ampliação da participação feminina na vida política do país. Outro caminho de transformação possível é pelo viés pedagógico, não restrito exclusivamente ao ambiente escolar, mas ligado a tudo que aprendemos com a cultura. Para que caminho aponta esta bússola? Para a propagação da cultura do autocuidado, diante de perguntas muito simples: Quem cuida da cuidadora? Quem consegue cuidar de si tendo que assegurar o sustento material de uma casa e de tantas pessoas e coisas ao mesmo tempo? Portanto, quando uma mulher pratica o autocuidado, ela se autopreserva, se dá o que necessita, protege seu próprio tempo, busca ajuda e redes de apoio, estabelece limites e diz não em contextos de opressão.
A cultura do autocuidado pode ter grande força política, conforme apontou a escritora estadunidense Audre Lorde, ao contribuir para a desconstrução do olhar que naturaliza a funcionalização do trabalho da mulher. Lorde enfatiza, sobretudo, que, na escala de opressão social, a mulher negra é a última a ser lembrada. Então, a interseccionalidade envolvendo as classes sociais mais desfavorecidas, o gênero feminino, a negritude e as idades mais avançadas é inerente a este debate, e talvez nos indique o porquê da invisibilidade do trabalho do cuidado, normalmente praticado pelos segmentos apontados acima.
No âmbito do capitalismo cognitivo, que industrializa subjetividades, o risco de monetização da cultura do autocuidado (selfcare) é grande, o que contribui para minimizar a força política de uma potente ideia.
Resultados de pesquisa para a expressão ‘autocuidado feminino’ na Internet apontam para: uma tendência à venda de produtos, ideias e hábitos que envolvam gastos elevados com uma alimentação dita saudável; práticas esportivas específicas; tratamentos estéticos invasivos; emagrecimento; anti-aging; promessas de bem estar psicológico. Os contornos são tão rígidos que excluem a diversidade do ser e não alimentam alternativas criativas e subjetivas para os desafios do viver.
Portanto, o enfrentamento da invisibilidade do trabalho do cuidado realizado pela mulher no Brasil passa, necessariamente, pelo enfrentamento do patriarcado capitalista, pois essa invisibilidade, bem como a submissão do feminino à tripla jornada, sua funcionalização para o cuidado e a monetização da cultura do autocuidado são decorrências dele. O capitalismo cognitivo molda espíritos e subjetividades, é misógino, machista, racista, etarista, especista. Aí está a sementeira do capitalismo contemporâneo. Enfrenta-se isto com o cultivo de outras sementes: a da equidade de gênero, raça, classe, idade, espécie e o que mais celebrar a vida.
Daniela e Moura Barbosa – Geógrafa, Educadora, Analista Junguiana
Jorge Miklos – Psicólogo, Educador, Analista Junguiano
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