Crônica: Um violinista no telhado

Já vou avisando que não estou num dia bom! Assim você já fica sabendo que o dia tem tudo para dar errado, mas que ainda não acabou. O motivo? Estou solteiro novamente. Se eu ganhasse uma moeda por cada briga que eu e meu agora ex tivemos, eu estaria rico. Mas não estou. Eu li essa frase numa letra de música, faz tanto sentido para mim.

Mas aqui estou me lamentando para alguém que nem sei se conheço… é de você que estou falando, meu caro leitor. Deveria, eu, o eu lírico do escritor, avisá-lo que esta história não tem final feliz? O lado bom é que tem algo que vai além disso: nesta crônica nasce uma fagulha que, como num efeito borboleta, pode mudar todo o rumo das futuras histórias que talvez eu venha lhe contar. Pois vamos lá!

Estamos quase no fim de 2008 e eu estou na data e local indicado pelo flyer do evento. Ele fica frente a um famoso hotel que já foi tema de um livro de suspense. Achei o flyer de muito bom gosto, com uma bela ilustração de um homem parrudo só de cueca. A festa diz que é para ursos. Pesquisei na internet e descobri que é uma subcultura gay formada por homens peludos e barbudos. Igual àquele participante do reality show que assisti. Inclusive, foi ele que me despertou a curiosidade para ter feito essa busca.

Subo as escadas para entrar no bar e sou recepcionado por um homem extremamente simpático, o que fez meu dia melhorar significativamente. Quando entro no bar, fico encantado. O espaço é pequeno mas bem aconchegante, com potencial para se tornar meu bar favorito nos próximos anos.

O bar está vazio e eu noto que sou um dos primeiros a chegar. Pego uma caipirinha bem doce, como de costume, e sigo para a pequena pista que fica ao fundo do bar. Se não fosse talvez pelo deejay, eu estaria só. Mas a música é boa e consigo relaxar um pouco. Loucura eu ir para um bar em plena semana, tendo que ir trabalhar no dia seguinte, mas sinto que tudo vai dar certo.

De uma forma bem tímida, olho disfarçadamente para o DJ, ele é bem bonito. Gostaria de ter coragem de ir até ele e puxar assunto, mas me limito a dar meus passos tímidos seguindo as batidas da música.

Depois de algum tempo, o disc-jockey sai da cabine e passa por mim, ele me olha e me rouba um beijo rápido e segue seu caminho, talvez tenha ido pegar um drink ou ido ao banheiro. Sinto que já ganhei minha noite. Uma fagulha de autoestima cresce no meu peito… o que não dura muito. Quando ele volta eu tento puxar assunto mas pelo que eu vejo foi só um beijo mesmo. Enfim, segue a vida.

Continuo curtindo a música sozinho e entra mais uma pessoa na pista. Percebo que ele está muito bêbado. Ele dá em cima de mim e se eu pudesse prever o futuro saberia que ele viria a se tornar meu namorado e que teríamos um relacionamento complexo e tóxico, mas agora apenas ignoro sua investida.

Volto para o bar e é neste momento que encontro a pessoa que é a motivação para desta crônica: ele está lá, um dos homens mais bonitos que eu já havia visto. Seria um sonho se ele olhasse pra mim… o que, é claro, nunca iria acontecer. A boa da verdade é que nunca me senti bonito, muito pelo contrário. Sempre tive muitos problemas com meu corpo e com minha aparência, a ponto de beirar uma disforia e até mesmo ter distúrbios alimentares. Estar ali me fazia me sentir muito vulnerável. Será que alguém iria gostar de mim?

Vou até o bar e pego outra caipirinha. Agora o bar está lotado e tem bastante homens bonitos. Geralmente, quando eu saio não costumo ver pessoas fora daquele padrão do gay com corpo definido. Sempre me senti um peixe fora do aquário por causa disso. Vivi quase toda minha adolescência e começo da vida adulta entre um regime e outro e nunca me senti à vontade com meu corpo. Já aquelas pessoas pareciam tão confiantes enquanto faziam seus jogos de seduç… aí meu Deus! O tal urso tá olhando pra mim! Eu olho pra ele e ele sorri pra mim. Parece que o mundo vai explodir em 5 segundos. o que acontece a seguir foi uma sucessão de atos impensados enquanto minha mente se sobrecarrega com um excesso de pensamento e meu pai do céu quando foi que a gente começou a se beijar… se acalme! Aproveita…

Depois do beijo, ele se afasta de e eu suspiro… estou muito nervoso e não posso transparecer. Pego o celular, um Samsung D780 flip, para disfarçar e acabo vendo as horas. Preciso ir embora. Converso rapidamente com ele, pergunto seu nome e passo meu número para ele. Ele vai até a calçada comigo e sigo meu caminho para meu apartamento na zona norte de São Paulo.

No dia seguinte tudo acontece como deve acontecer. Vou para a editora em que trabalho e volto para casa. Nada de emocionante. A não ser a lembrança do dia anterior. Eu “sentia um acréscimo de estima por mim mesmo”. Passei o dia inteiro sonhando acordado.

No final da tarde recebo a tão esperada ligação: o urso me chamava para “comer alguma coisa no shopping”. Confirmo sem hesitar o programa para o dia seguinte. Uma sexta, não teria preocupação com o horário.

Quase que imediatamente, ao desligar, meu ex me liga. Conversamos rapidamente, e logo discutimos. Não sei se você, caríssimo leitor, já passou por isso, mas quando estamos numa relação tóxica e conhecemos uma pessoa interessante, acabamos por ter um pouquinho de amor por nós mesmos. Não digo que isso é saudável. Aliás, não é! Nosso amor próprio nunca deveria estar atado a outra pessoa. Ele tem que ser independente e livre pra fazer o bem entender, mas sabemos que isso nem sempre é a nossa verdade. E naquele contexto não era. E aquela outra relação que nem existia ainda, que era só um ensejo, me ajuda a dar um (breve) basta. Termino a conversa o mais rápido que consigo, para assim poder voltar aos meus devaneios.

No dia seguinte, sigo para o local do encontro, um shopping que havia a pouco se inaugurado e ainda era badalado. Ao chegar encontrei o dono das minhas fantasias e logo de cara ele diz que morava ali próximo e sugere para locarmos um filme e irmos para seu apartamento.

Hoje se você me perguntar se eu não senti nenhuma segunda intenção ali, eu vou te responder: de forma alguma! Naquela época eu era de uma ingenuidade que era até bonita de se ver… mas que na prática não ajudava muito.

Seguimos nosso caminho e passamos por uma locadora aonde ele escolheu o musical Um Violinista no Telhado. Nunca havia falado neste, mas eu sempre amei musicais, então acho que tá tudo bem.

Seguimos para seu apartamento, conversamos um pouco e ele colocou o dvd no player. Não sei como funciona isso para você, mas se alguém me convida para ver um filme eu espero no mínimo ASSISTIR o filme. E é óbvio que aqui o filme era só uma desculpa. O que eu só fui descobrir depois. Ainda assim, eu consigo vê-lo quase que por inteiro.

Primeira coisa importante: eu descobri que a música Rich Girl da Gwen Stefani é uma versão de uma música desse filme. Segunda: tem literalmente um violinista no telhado no longa. Terceira: até o presente dia em que escrevo esta crônica, não sei como o filme termina. Quarta e último: você já deve estar tentando adivinhar o que aconteceu em seguida, mas… sinto muito te frustrar.

Eu particularmente penso que deve existir no mundo um grupo formado por grandes mentes focadas em criar novos termos em inglês para o mundo usar. Algumas vezes eu os dispenso, não servem pra nada, mas às vezes nos caem como uma luva. O termo em questão é o overthinking, que nada mais é do que pensar demais, geralmente nas horas erradas.

Dito isso, você se lembra que eu falei brevemente que tive disforia por um período da minha vida? Se você não está familiarizado com o termo, vou tentar explicar de forma resumida: disforia corporal é quando você rejeita o seu corpo da forma que ele é, pode acontecer por questões de identidade de gênero ou por se ter uma percepção distorcida do próprio corpo.

Enfim, agora consigo te explicar o que aconteceu: enquanto a gente se beijava e se amassava no sofá eu comecei a pensar demais sobre o meu corpo, sobre como ele iria rir de mim. Eu sei, eu sei, não faz sentido algum, mas na hora a gente não sabe disso. E eu estava surtando com a possibilidade. Então eu me levantei e disse que não ia conseguir continuar. Acho que ele deve ter pensado que era por causa do ex, mas não me importava em dar a impressão errada. Na verdade era até melhor que ele pensasse isso.

Ele ainda assim foi muito gentil comigo e me acompanhou até o metrô. A gente nunca mais teve oportunidade de ficar, mas de vez em quando nós trocamos alguma mensagem pelo Instagram… quem sabe um dia.

Naquele dia eu fui pra casa com um misto frustração e de bem-estar. Eu me senti visto. Me senti desejado. Tinha encontrado alguém que me queria mesmo com o meu ex me dizendo frequentemente que eu nunca iria encontrar alguém como ele. De fato, eu não encontrei, mas isso é uma parte boa. Ainda demorou um pouco para eu sair dessa relação…

… mas o que queria realmente falar é que a partir desse encontro que eu contei hoje, uma fagulha cresceu em mim… e foi ficando cada vez mais forte… até que um dia (e devo enfatizar que com muita ajuda profissional, façam terapia amigues) eu finalmente consegui amar meu corpo e me sentir bonito.

(Aqui começa a tocar Fireworks, da Katy Perry)