Uma das grandes vantagens de se estudar num colégio no centro da cidade é o fato de ter uma biblioteca pública do lado do prédio da escola. Literalmente do lado. Eu gosto muito de ler e é fácil me achar na biblioteca pesquisando por uma nova narrativa. E toda vez em que preciso renovar um livro, eu saio mais cedo de casa para passar na biblioteca, o que é ótimo porque o ônibus é mais vazio e há menos trânsito. A viagem leva uns 30 minutos e logo estou no meu destino.
O livro que peguei desta vez é O Iluminado, de Stephen King. Eu quis ler este livro porque quando eu era criança, meus pais alugaram uma fita VHS desse filme e eu não pude ver, pois era muito pesado. Mas me lembro muito bem daquela fita cassete dupla com uma capa onde um menino era iluminado por uma luz.
A bibliotecária foi bem gentil comigo enquanto anotava mais uma vez meu nome no cartão do livro. Como ainda tenho tempo antes da aula, me sento em uma das mesas e leio um pouco. O livro fala sobre uma família que vai para um hotel isolado da cidade. O pai foi contratado como zelador para cuidar do hotel durante o inverno, que costuma ser bem rigoroso na região. Ele diz que vai aproveitar o isolamento para escrever um livro. Mas quanto mais a casa vai tomando vida, mais ele vai perdendo sua sanidade. Achei legal darem destaque a uma criança prodígio que consegue ver os espíritos da casa. O livro dá bastante medo.
Depois de um tempo lendo, a bibliotecária nos avisa que vão fechar o espaço em breve. Ainda tenho uma hora antes da aula começar, então sigo para a cantina.
Eu sou o filho caçula. Além de mim há mais dois irmãos e uma irmã. Todos começam com a letra D. Mas eu fui o único filho que teve acesso a colégio particular. Um dos motivos foi pela perseguição que eu sofria por parte dos meus colegas durante a oitava série. Eu cheguei a querer desistir da escola. Além disso, minha mãe disse que acreditava muito em mim e que queria pagar para eu ter um estudo melhor. Eu sempre fui muito inteligente para minha idade.
Quando dá o horário, eu vou para a sala de aula que fica no segundo andar. Eu estudo à noite pois estou procurando emprego, mas ainda não consegui nada. Já estou no terceiro ano do Ensino Médio e, além das matérias tradicionais, tenho curso profissionalizante de informática. Tenho bons amigos nesta escola.
A primeira aula é de Português, o que é um problema, porque, apesar de gostar muito da professora, me dá tédio. Acho que o fato de eu já saber muita coisa do que ela está ensinando tira um pouco do meu foco na aula. Às vezes nem consigo prestar atenção no que ela está falando.
A segunda aula é a minha favorita! Lógica de programação. O professor é o coordenador do curso de Informática e ele nos dá problemas de lógica para resolver. A ideia da matéria é nos preparar para resolver as questões complexas da programação. Eu adoro problemas de lógica. Gosto tanto que até estou comprando aquelas revistinhas que são meio que primas das de caça-palavras. Passo horas tentando resolver problemas como: “quem comeu o chocolate da Bia”.
O professor entra na sala e ele parece estar bem animado.
— Hoje eu trouxe um problema bem complexo. Eu mesmo demorei a tarde toda para resolver.
Uau! Aquilo já me empolga. A partir deste momento eu não consigo prestar atenção em mais nada à minha volta. Enquanto ele vai escrevendo o problema na lousa, eu já vou tentando resolver. Esse de fato é bem complexo, o que me deixa ainda mais instigado. Sinto que toda minha mente está focada para resolver aquele problema como se a minha vida dependesse disso!
Assim que ele termina de escrever na lousa eu concluo o pensamento e digo:
— Professor, eu já sei a resposta!
Antes que eu conclua esta narrativa, eu quero que você, estimado leitor, acompanhe meu raciocínio. E para isso vou criar um cenário do que poderia ter sucedido em seguida.
Assim eu respondo, o professor me parabeniza por ter conseguido tal feito e continua com a aula normalmente. No dia seguinte, sou chamado para conversar com a psicóloga da escola. Ela faz algumas perguntas sobre minha vida e aquilo me deixa curioso. No final ela diz que precisa conversar com meus pais. Eu estranho por que nunca houve a necessidade de chamarem meus pais por alguma coisa que não fosse o comportamento maldoso dos meus antigos colegas.
Meus pais vão até a escola e conversam com a psicóloga e com o coordenador do curso, vulgo meu professor de lógica.
Alguns dias depois meus pais me levam num psicólogo que faz um monte de perguntas e me passa um monte de testes. Depois de alguns dias de sessões, meus pais me acompanham para receber o resultado. As suspeitas de eu ser superdotado foram confirmadas e além disso também é revelado que eu tenho TDAH. Eu passo num psiquiatra e começo a tomar um remédio que ajuda a organizar meus pensamentos. Depois disso eu tenho a chance de viver minha vida de uma forma mais funcional e sem me sentir um completo estranho no mundo.
Mas não. Não foi isso que aconteceu.
O que de fato aconteceu foi o seguinte:
Assim que eu digo que já sei a resposta, o professor me desafia, incrédulo, que eu desse a resposta. E assim que eu digo, o rosto dele se transforma em uma expressão de choque e ódio, ao mesmo tempo que vai ficando cada vez mais vermelho e meio que inchando. Naquele momento eu entendo o porquê dos outros alunos o chamarem de baiacú pelas costas. Sério, fizeram até um site dedicado a ele nas aulas de HTML.
Logo em seguida, um colega chega no professor para tirar uma dúvida e ele responde: “não precisa mais tentar resolver, o Danilo já respondeu”, “pô Barroso, deixa a gente tentar também”. Em poucos minutos a sala toda está me zoando e toda aquela excitação que eu estava sentindo se transforma em uma grande vergonha e uma grande culpa. Tudo o que quero é sair dali e ir para minha casa para chorar.
Mais de vinte anos depois, eu estou num consultório fazendo um daqueles testes que deveria ter feito ainda na adolescência e ela me pergunta: “como você encontrou essa resposta?” Após eu dizer, ela me diz que aquela pergunta do teste de lógica sempre a intrigou, até que um dia uma senhorinha de oitenta anos acertou e deu a mesma explicação que eu.
E foi quando tive o meu laudo em mãos que tive respostas para várias questões da minha vida. E entrei em um processo de autoconhecimento e autoaceitação que ainda perdura até este dia em que escrevo essas memórias.
Existem muitas narrativas que romantizam a superdotação. O grande gênio que foi o pai da computação. O gênio indomável. A mulher que mudou o mundo da moda ao vestir o primeiro pretinho básico. O que pouco se conta é que nem sempre a superdotação forma pessoas funcionais. Foi vendo uma série sobre uma formidável jogadora de xadrez que eu questionei para meu psicólogo: “ela é tão caótica quanto eu. Será que eu sou igual a ela?” Eu cheguei até mesmo a estudar teoria do caos para tentar entender melhor o caos que habita em mim.
A verdade é que sobreviver num mundo cada vez mais frio e se sentir cada vez mais culpado por ser uma pessoa extremamente sensível não é fácil. Por várias vezes eu fui considerado exagerado demais, emotivo demais… fora o preço que paguei, e pago, por desafiar as normas da sociedade por elas não fazerem sentido pra mim. Minha família não aceita meu casamento poliafetivo, o capitalismo não aceita pessoas como eu. Eu sinto que por não ter tido o suporte necessário, eu fracassei em vários momentos da minha vida.
Ainda assim, agradeço cada dia por todas as pessoas que eu encontrei pela vida e que souberam entender e admirar minhas águas profundas. E eu as amo de todo coração.
E termino este texto aconselhando a você que se identificou comigo a também ir atrás das suas respostas. No que eu puder ajudar, estarei aqui…