Conto: vírus

— Alô

— Oi amigo, tudo bem?

— Na medida do possível, sim. Estou ligando para saber se teve alguma resposta no quadro da sua mãe.

— Nada. Ainda está nesse coma inexplicável, parece que ela está dormindo. Às vezes ela fala alguma coisa ininteligível. Mas tenho feito tudo como o você me explicou. Aqueles anos insuportáveis estudando medicina serviram, enfim, pra alguma coisa. 

— Amigo, aquilo nunca foi para você! Nunca esqueço de você desenhando aquele coraçãozinho de amor na prova de anatomia. 

— Hahah, a cara da professora foi impagável! Mas a questão pedia pra desenhar um coração com as artérias e foi o que eu fiz! 

— Sim! Mas no caso era um coração no sentido de anatomia e não um emoji! Hahaha

— Enfim! Mas me diga, vocês aí no hospital já tem alguma informação de como esse novo vírus age?

— Pouca coisa. Sabemos pouco mais do que é público: o vírus ataca diretamente o cérebro das pessoas. Algumas pessoas dormem e têm um sono agitado, como no caso da sua mãe, outras entram em surtos psicóticos e algumas pessoas não sentem absolutamente nada ou no máximo uma dorzinha de cabeça. Mas estão investindo muito dinheiro nisso, porque a elite tem sido a mais afetada. O que já descobrimos pelos exames neurológicos é que ela afeta o córtex pré-frontal ventromedial.

— Essa não é a parte que é responsável pelas emoções?

— Sim. Eles, inclusive, têm feito exames em pessoas com quadros de sociopatia, que possuem disfunções nessa área.

— Interessante isso. Quem diria que eu ia viver num mundo onde os ricos iam sofrer bem mais que o bom e velho proletariado. 

— Sim! E com tanto político sendo sintomático, os que ainda não se infectaram estão com medo. Então estão investindo toda a verba possível no tratamento.

— Sim… e isso é surreal, a gente ainda lembra da última pandemia! Eu soube pelo jornal que tem tido muitos surtos pelo mundo. Começou no Brasil mas já cruzou a fronteira de vários países. Logo menos eles declaram que se trata de uma nova pandemia.

— Sim, e se duvidar nesta semana ainda. Amigo, preciso ir. Tá uma loucura aqui no hospital. Se sua mãe apresentar alguma melhora, me ligue imediatamente!

— Okay… até mais! E boa sorte…

Desligo o celular e o coloco no sofá, ao meu lado. Fico pensando o quão assustador é passar por duas pandemias em menos de dez anos. O mundo está mesmo em colapso. Da outra vez até disseram que iríamos sair melhor, mas a verdade é que piorou. Só ver o presidente de extrema-direita que colocaram no poder. Ele tá pouco se lixando pra população.

Ouço um gemido e minha atenção se volta toda para minha mãe. 

— Sandra! Sandra… 

— Estou aqui mãe.

Sandra é meu nome morto… nesta situação nem dá para ligar para nomes ou pronomes. Tudo que quero é ver minha mãe bem e com saúde. Ela nunca aceitou o fato de eu ser homem… a verdade é que nossa relação nunca foi das melhores. Mas é a mãe que eu tenho. Aperto a mão dela bem firme pra ela notar minha que estou ali e ela abre os olhos. Ela já estava nesse sono profundo há dias

— Sandra, eu tive um sonho tão lindo. Sonhei que Deus me visitava e tocava meu coração. – seus olhos começam a se encher de lágrimas – minha filha me perdoa! Eu sou uma péssima mãe… eu sei que preciso melhorar…

— Mãe, se acalma – tento segurar a emoção. Ela diz coisas que sempre quis ouvir, mas a prioridade é sua saúde. – me dá um minuto, vou ligar para o médico – digo na intenção de me esquivar.

— Não! me ouça! Eu me sinto bem! Mas preciso te dizer isso! Eu sinto muita culpa por tudo que eu te fiz!  Agora eu consigo ver… Eu te amo, meu filho! Eu te amo, Sandro.