Conto: Nua e crua

Depois que a Verdade teve suas roupas roubadas pela Mentira, decidiu caminhar pelo vilarejo nua. Inconveniente, como a verdade costuma ser às vezes.

Não demorou para que as beatas do bairro dessem início a uma rede de cochichos que, em pouco tempo, transformou-se em ofensas diretas contra a própria Verdade.

No começo, ela foi forte. Aguentou, nua e crua, todos os desaforos. Mas, de tanto ouvir as mesmas humilhações, acabou acreditando. Afinal, quando se repete uma mentira por tempo suficiente, ela se confunde com a verdade.

Envergonhada, a Verdade vestiu a primeira roupa que lhe foi oferecida. E, com o passar do tempo, já não sabia mais se era de fato a distinta Verdade ou apenas mais uma moradora do lugar.

Arrumou um emprego, passou a frequentar o templo da cidade e, enfim, misturou-se à multidão, esquecendo-se de quem havia sido um dia.

Muito tempo depois, a Mentira voltou ao vilarejo. Afinal, como dizem os ditados, o enganador sempre retorna à cena do crime.

Ela estava diferente. Ainda usava as roupas roubadas, é claro, isso só lhe trazia vantagens. Mas não era mais a simples Mentira que um dia enganou uma ingênua Verdade. Agora fazia parte da mais alta nobreza. Tinha títulos, riqueza e status. Dizem que casou-se por amor com um Rei. Ou talvez um Czar. Quem sabe até um Sultão.

A Verdade, por sua vez, seguia tentando se encaixar. Ela sabia que não pertencia àquele lugar, mas vestia qualquer coisa que a fizesse ser aceita.

Um dia, ao notar uma multidão que se reunia em volta de uma peregrina, correu para ver do que se tratava. Assim que chegou mais perto, viu que se tratava de uma velha conhecida, uma peregrina que viajava de mentira em mentira. 

O choque de ver a pessoa que a traiu a fez lembrar-se de quem ela era de verdade. E, sem rodeios, da forma que a verdade sempre foi, confrontou:

— Devolva minhas roupas! As que roubaste enquanto eu me banhava na fonte!

Todos riram.

— Desde quando uma pobre coitada acha que pode ser a própria Verdade encarnada? — disse o primeiro rei.

— Olha só para esta moça que acaba de chegar. Talvez seja uma Baronesa, uma Grã-Duquesa, quem sabe uma Imperatriz! — disse o segundo rei.

— Veja como as roupas lhe caem bem! É claro que é ela que a verdadeira Verdade! — disse, por fim, o terceiro rei.

Isso a magoou profundamente. Tais reis já haviam a reconhecido em outros tempos, mas agora estavam ludibriados com os presentes que ganharam.

E assim, se sentindo vencida, aquela que era de fato a única e verdadeira Verdade encarnada decidiu ir embora daquele povoado.

Refletiu que talvez aquele povo merecesse a Mentira vestida de Verdade. Pois isso lhes era conveniente.

Foi então que ela confiou para si mesma que nunca mais iria vestir outras roupas senão as suas para se encaixar e ser aceita. Afinal, ela era a Verdade, gostassem os outros ou não.

 

*Esse conto é inspirado parábola da Verdade e da Mentira, que foi popular do início do século XX e que surgiu de uma interpretação da pintura A Verdade Saindo do Poço do Jean-Léon Gérôme, feita em 1896. Autor desconhecido.