Comportamento: A Força da Mulher Sapatão e a Música X*x*ta na Maciota como crítica à Hegemonia Masculinista Heteronormativa

Temos o prazer de compartilhar o artigo escrito pela colaboradora Guelba S. Alves Xavier que é psicóloga, pesquisadora de estudos de gênero e sexualidade, militante bissexual e feminista interseccional.

Esperamos que gostem do conteúdo e de sua visão crítica e e que em breve possamos contar com outras contribuições. Sobretudo participem de nossa Campanha BASTA! Contra todos os tipos de preconceito.

É importante salientar que ao citar mulheres no decorrer do texto, falo sob licença do conceito de mulheridades. Descrevo aqui, a partir da narrativa pessoal, um experiencial enquanto mulher cisgênero, bissexual e negra, cuja proposta é discutir o determinismo binário nas expressões de gênero e o falocentrismo, enquanto discursos de poder ainda existentes.

Há uns anos relutava pelo termo sapatão, pois me incomodava a utilização limitadamente pejorativa e estereotipada das expressões de gênero de mulheres lésbicas e bissexuais, aludindo ao uso de sapatos, roupas e correlatos tidos como masculinos. No Brasil o termo surgiu na década de 70, e inclusive, citado em marchinhas de carnaval.

Me incomoda ainda, associar mulheres lésbicas ou bissexuais única e exclusivamente à uma definida expressão de gênero, pois à medida que somos sapatão, necessariamente somos “conduzidas” sob a lógica da estereotipia, ao cumprimento de expressões de gênero masculinas, e o descumprimento das mesmas ora deslegitimiza nossa orientação sexual lésbica ou bi, ora é permeada por fetichização. Quantas de nós já ouviram os comentários? “Nossa! Mas nem parece que você é lésbica ou bissexual” ou ainda “Ah eu sabia! Você tem cara de sapatão!”.

Meu incômodo se dá justamente a partir do interesse em desconstruir esse caráter binário nas expressões de gênero, e acredito que se essa construção perpassa, ainda as nossas relações sociais, é porque de fato, essas relações estão permeadas pelo poder de uma hegemonia masculinista heteronormativa.

Diante disso, o que pode implicar o cumprimento ou não dessas expressões de gênero? Podemos sofrer opressões ou violências por causa delas? Mulheres lésbicas ou bissexuais que cumprem expressões de gênero masculinas sofrem a mesma opressão que mulheres lésbicas ou bissexuais cujas expressões de gênero são femininas? E se forem mulheres lésbicas ou bissexuais negras?  Foram esses alguns dos questionamentos que me fiz em um momento da militância, e que no decorrer dela me fez compreender que existem sim diferenças no cumprimento ou não dessas expressões, e que as violências podem ser acentuadas devido a essas expressões de gênero e ainda mais se existirem questões de raça e classe.

Tenho observado, com frequência, que o discurso de luta contra violências às nossas expressões, práticas e vivências tem ultrapassado espaços acadêmicos e coletivos. Tem ecoado nos blocos de carnaval, na literatura e nas músicas.

A música “x*x*ta na maciota” é um exemplo desse discurso, não foi escrita por mulheres, mas tem sido cantada por mulheres lésbicas e bissexuais como “um hino”. Considero interessante a análise diante do contexto cantado, pois compreendo ressignificação tanto para o termo sapatão, quanto para essa música. O termo sapatão cuja autodeclaração aponta força, resistência e crítica à hegemonia masculinista heteronormativa  e a música “x*x*ta na maciota” enquanto crítica ao falocentrismo.

Sabemos que ter ou não um pênis diz muito em quase todas as circunstâncias (principalmente se for de um homem cisgênero, branco, hétero e abastado). Não quero aqui generalizar, e tão pouco culpabilizar todos que se enquadram nesses quesitos,  minha intenção é apontar os privilégios que emergem de eixos de relações de poder que perpassam gênero, raça e classe, e que devem ser observados.

Se examinarmos os registros históricos, veremos que antes do século XVIII os órgãos sexuais femininos eram considerados versões internas dos órgãos sexuais masculinos, sendo por exemplo, a vagina como o pênis, o útero como o escroto.

Durante dois milênios os ovários não possuíam ao menos nome específico!

Apenas em 1759 é que alguém se importou em detalhar em um livro de anatomia o esqueleto feminino, pois até então havia uma estrutura básica de corpo humano e sua representação profundamente marcada por uma política hegemônica masculinista.

Até o fim da década de 90, o processo de excitação do Clitóris não tinha sido entendido, enquanto que a mesma estratégia usada para analisar a estrutura interna de um exemplar vivo, já havia sido realizada para estudar a anatomia masculina na década de 70.

Ainda hoje a vagina é tratada com depreciação, por muitas pessoas, há polêmica e censura acerca da exposição de mamilos femininos, e sem dúvida, essas questões apontam para análise sobre determinações, bem como, o prevalecimento de representatividade de papéis sociais sobre nossos corpos sexuados, e a reprodução histórica das desigualdades sociais advindas daí, entre outros discursos.

Meu interesse não é supervalorizar a vagina, e conforme declarei no início, reitero aqui, meu interesse é questionar a hegemonia masculinista heteronormativa e falocêntrica enquanto discursos de poder. E perceber que tanto a ressignificação do termo sapatão, quanto de uma música que fala explicitamente sobre a vagina podem expressar o reconhecimento e exteriorização da liberdade de nossas vivências, experiências e práticas, dando-nos assim visibilidade e força diante de violências que nos entrecortam.

 

 

 

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