Há muitos anos, eu estava conversando com um rapaz no canal dos ursos do Mirc e ele contava-me como seria o seu encontro romântico ideal. Não lembro bem como era, mas sei que havia muitos detalhes e, em algum momento, os dois estariam sentados numas almofadas (acho que ao por do sol) bebendo vinho branco. Depois que ele terminou de me descrever essa cena idílica, eu perguntei: e se o príncipe encantado preferir vinho tinto ou cerveja, não serve? Ele parou de falar comigo na mesma hora.
Essa semana, essa conversa veio-me à lembrança por conta de algumas coisas que li e comentei nas redes sociais que, de alguma forma, estavam relacionadas com o que costumo chamar de “a questão das condicionalidades”: em que medida, ao criar uma enorme quantidade de exigências em relação aos outros e às situações em geral, não estamos ao mesmo tempo criando obstáculos para que encontros verdadeiros e gratificantes possam realmente acontecer? Em que medida levamos demasiado a sério nossas fantasias e sabotamos assim nossas possibilidades concretas de felicidade?
Já escrevi nesse espaço sobre como as expectativas que os outros depositam em nós, e que muitas vezes assumimos como nossas, podem desviar e bloquear o nosso crescimento e trazer ansiedade e sofrimento, e sobre como abrir mão dessas expectativas pode tornar nossa vida mais leve (pelo menos, foi o que aconteceu comigo). Hoje, gostaria de inverter um pouco essa perspectiva e refletir sobre como as expectativas e fantasias que criamos em relação aos outros e ao mundo podem também ser prejudiciais para nós mesmos. E nos impedir de viver o presente e a realidade sempre surpreendente dos encontros de forma mais plena.
Naturalmente, todos nós temos nossos gostos, preferências e sonhos, e devemos reconhecê-los e respeitá-los. Há coisas que consideramos inegociáveis num relacionamento de qualquer natureza. Eu, por exemplo, não sinto nenhuma atração física por homens muito magros. De um modo geral, o corpo considerado padrão não me diz muita coisa em termos sexuais. Meu desejo tem outro tipo de objeto. Na esfera dos relacionamentos, a lealdade é essencial para mim. Não ligo para a fidelidade (entendida como um contrato de exclusividade sexual), mas dificilmente perdoo um ato de deslealdade. Sem falar em alguns traços básicos de caráter, claro, como honestidade e senso de humor. Entretanto, fora disso considero-me uma pessoa bastante flexível tanto nas minhas relações amorosas, sexuais, de amizade e em suas várias combinações possíveis. Sempre achei que é menos estressante adaptar-me à realidade do que esperar que a realidade se adapte aos meus desejos, fantasias e expectativas.
O fato é que não há nada de errado em ter fantasias e preferências nem em manifestá-las. O problema começa, creio, quando começamos a criar uma lista interminável de exigências e condicionalidades para nos envolver em algo, o que normalmente leva a uma decepções em série seguidas de amargura e de um sentimento de que a vida é só desilusão. Às vezes, temos dificuldade de aceitar a ideia de que a perfeição não existe e de que a vida e as pessoas não estão aí para atender nossas expectativas. A vida está aí para ser vivida. E se você adora a Lady Gaga e seu crush prefere a Madonna, se você coloca ketchup na pizza e seu crush come cachorro quente com purê, se você é fã da DC e seu crush curte a Marvel, se você gosta de filmes de ação e aventura e seu crush cultua o cinema iraniano, se você toma vinho branco e seu crush bebe cerveja, ainda assim é possível viver bons momentos e quem sabe algo mais com ele. Vai por mim.
E mesmo que as diferenças acabem revelando-se irreconciliáveis, isso não significa que as coisas tenham dado errado. Nem tudo tem vocação para ser eterno, a começar pela própria vida. A eventualidade de algo terminar não apaga o fato de um dia ter existido e possivelmente ter sido muito bom. A exigência de compromisso com a duração é outra das condicionalidades (e fantasias) que nos impedem muitas vezes de viver experiências novas, ricas e surpreendentes. E a verdade é que, normalmente, a melhor maneira de fazer algo durar não é tentar manter as coisas como estão, e sim alimentar e acompanhar o fluxo das mudanças que virão de qualquer forma, quer queiramos ou não.
Estabelecer tantas condicionalidades e ficar preso às suas fantasias de como as coisas deveriam ser é um pouco como andar por uma cidade desconhecida sem sair do itinerário proposto nos guias de viagem, privando-se do possível prazer de descobrir algo inesperado, de deixar-se surpreender, de encontrar o novo.
Para mim, o grande encanto dos relacionamentos (e de estar no mundo, de uma maneira geral) não está em seguir um roteiro pré-determinado que atenda a todas as minhas expectativas do que deva ser uma relação e sim em permanecer aberto para ser transformado de maneiras que eu nem suspeitava. Como todo mundo, adoro ter uma fantasia realizada. Mas poucas coisas na minha vida foram tão intensas quanto descobrir possibilidades de prazer que eu não sabia que existiam, simplesmente por não ter me tornado prisioneiro do que eu já conhecia. E creio ser melhor não gostar de algo depois de tê-lo pelo menos experimentado do que erguer previamente barreiras para que possa acontecer.
Considero que uma postura menos condicional e mais aberta ao desconhecido pode ser especialmente relevante para nós, gays, como também para outras minorias sexuais. Conhecemos bem, por vivê-las na pele diariamente, com maior ou menor intensidade, todas as dificuldades e obstáculos que temos que enfrentar para podermos ser quem somos. Sabemos também que os modelos dominantes do que são e devem ser os relacionamentos nos excluem desde sempre.
Creio que é perfeitamente legítimo que muitos de nós aspirem a ser incluídos nesses modelos e que, nesse sentido, assumam como seus as expectativas e as exigências em relação ao que deve ser um parceiro ideal. Os mitos do príncipe encantado, da alma gêmea e da metade da laranja que nos completa e realiza todas nossas fantasias em seus mínimos detalhes têm muita força e nem sempre é fácil percebê-los como o que realmente são: mitos. Contudo, não existe amor ou relação perfeita e, sobretudo, não existe amor ou relação que venham prontas para consumo imediato. Os aplicativos de paquera não são um serviço de encomenda e entrega do príncipe encantado em domicílio.
Por outro lado, se nos permitirmos abrir mão de tantas condicionalidades e exigências, se deixarmos nossas fantasias tranquilas no mundo da fantasia ao qual pertencem, ao invés de esperar que elas moldem a nossa realidade, talvez possamos descobrir a beleza imperfeita mas muito real do amor que vai se construindo aos poucos, dos encontros e desencontros, das harmonias e dissonâncias, da dança das fantasias que interagem, se transformam e se renovam. Talvez possamos ampliar nossas possibilidades de alegria, de felicidade e de prazer, e estar no mundo de maneira mais intensa e, quem sabe verdadeira.
Até a próxima!
PS – Naturalmente, “Como Eu Quero”, do Kid Abelha, não poderia faltar na nossa seleção musical de hoje. E incluí também uma música dos Carpenters, “Love Me For What I Am”. “Horizon”, o disco de onde foi tirada a música, é um dos meus favoritos de todos os tempos. E considero a Karen Carpenter até hoje uma das vozes mais bonitas e suaves do pop mundial.
Para ver mais textos de Paulo André Lima, confira sua coluna Bons momentos e quem sabe algo mais
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Respostas de 4
Ótimo… concordo tudo q vc falou… acho q as diferenças no relacionamento é q promovem o crescimento pessoal… meu casamento com meu ex durou 14 anos ( mas com cara de 28 / era full time.. morávamos e trabalhávamos juntos)… e éramos bem diferentes em quase tudo… gostos musicais, filmes , bebidas e acho q foi isso q fez funcionar, pois cada um foi absorvendo o.mundo do outro para fazer o nosso… bjs
Obrigado!
Valeu, Edu!
Muito bom Paulo, precisamos baixar o nivel de atividade do nosso firewall.