Desde que eu era adolescente minha mãe pedia para que eu fizesse as compras para ela religiosamente a cada três dias. Ao menos três supermercados diferentes estavam localizados não tão distantes de nós. Terça-feira era “Terça Maluca” na minha rede de supermercados favorita, dia de comprar frutas e legumes, já a quinta-feira era dia de comprar carnes. A gente tinha o hábito de pegar cada folheto, cada encarte e comparar os preços dos diferentes produtos. Muitas vezes seu companheiro ou eu mesmo tinha que se deslocar a pé para o outro lado da cidade para comprar somente algumas latas de óleo ou farinha. Eu gostava de ir em uma conhecida rede de hortifruti perto de casa somente para comprar peixe fresco, cerveja ou algum ingrediente exótico de uma receita qualquer.
Como fui criado por uma dona de casa muito da esperta, acabei me tornando um dono de casa experiente. Como diz o ditado: “filho de peixe, peixinho é”. Eu confesso que passar horas no supermercado pegando os produtos da prateleira para ler o que está escrito na embalagem e analisar a composição e o preço não é nenhum calvário, mas sim um grande prazer.
A potencial presença de coronavírus na superfície de embalagens fez somente com que eu evitasse de tocar em tudo a todo momento, mas nunca deixei de ir às compras. Comecei a frequentar também mercados que vendem somente produtos orgânicos ou asiáticos porque eles têm muito menos clientes. Desde março passado, ir ao mercado é ao mesmo tempo um momento de prazer e angústia. Prazer de descobrir novos produtos, experimentar diferentes frutas, legumes, temperos e ervas, e angústia por ter que se policiar para ficar a 2 metros de distância dos outros durante horas.
Na França de hoje, ao mesmo tempo que supermercados vendendo somente produtos orgânicos ou somente queimas de estoque de pequenas e grandes marcas abrem por aí, drives surgem aos montes. São modelos de negócio diametralmente opostos: em um drive você só vai colocar os pés no estacionamento enquanto em um mercado a ideia é se deslocar, escolher os produtos no local, levá-los para casa ou pedir para entregar, como sempre foi feito no Brasil. Eu prefiro o segundo.
Os consumidores (nós) podem até encomendar os pratos prontos para cada dia da semana, entregues nos chamados boxes (nada mais que uma caixa de papelão). Há também a opção de comprar boxes com carnes e hortifrutigranjeiros e as receitas vêm junto para preparar no conforto do lar, a dois ou em família. Enfim, se existe tanta oferta, é porque há uma demanda.
Como já deu para perceber, eu gosto muito de ir ao mercado. Eu acredito que é importante escolher as frutas e legumes, tocá-las, o cheirá-las e saber quanto custa porque estimulamos nossos sentidos, aprendemos novos nomes, temos novas ideias e nos tornamos abertos à novas possibilidades, e, principalmente, damos valor ao nosso dinheiro. Acredito ainda que as crianças precisam aprender desde cedo a reconhecer os diferentes alimentos para no futuro saber decidir o que é bom para elas e saber do que gostam e do que não gostam.
Quando falamos de produtos industrializados, saber do que são feitos é essencial: tem gente que não come carne de porco ou produtos de origem animal em geral, produtos açucarados ou gordurosos demais, produtos transgênicos, ou mesmo cheio de aditivos potencialmente nefastos. Mesmo que a embalagem contenha informações valiosas, muitas vezes não sabemos o que certos termos significam. Por fim, analisar a composição de um alimento industrializado é importante para saber se não estamos pagando caro por um produto de qualidade duvidosa, levando gato por lebre.
Eu entendo quem faz as compras do mês da semana ou do mês em um site qualquer e vai buscar em um drive: tem gente que tem criança pequena em casa e não quer que ela fique pedindo cada produto que vê na prateleira, que faça um escândalo, tem gente que não tem tempo sobrando para fazer compras e tem gente que simplesmente não gosta de ir ao mercado. É evidente e compreensível que a potencial presença do coronavírus no supermercado faça com que as pessoas comprem mais coisas pela Internet.
Por conta da minha criação, eu tenho dificuldades para me colocar no lugar das pessoas que compram os boxes porque elas escolhem um modo fácil de se alimentar em detrimento do poder (e talvez do prazer) de escolher. Talvez elas não saibam e não queiram aprender a cozinhar, o que as torna dependentes dos outros. Elas pagam mais e levam menos de forma consciente. Elas se abstêm de tomar decisões importantes, e, ao mesmo tempo, contribuem para que as interações sociais diminuam mais ainda (o que é aceitável durante a crise, mas em tempos normais, é no mínimo indesejável).
Por exemplo, quando a gente pede comida em um restaurante ou um lanche, a gente sabe quem está por trás da elaboração das receitas, da escolha dos ingredientes, muitas vezes essas pessoas são ou se tornam nossas amigas, nós consumimos e, de certa forma, apoiamo-las. Quando a gente compra um box qualquer, quem nós apoiamos?
Quando o Google decidiu fazer campanhas de publicidade para que as pessoas frequentem os comércios locais, o que marcou o público foi justamente o carinho dado a quem faz parte do nosso cotidiano: os comerciantes e artesões. O Burger King fez o mesmo, pedindo para que as pessoas comprem do tio da lanchonete ou da tia da pastelaria para ajudá-los. A campanha foi um sucesso nas redes sociais.
Eu acredito que no futuro, depois que a covid-19 se tornar somente uma gripezinha, a gente precisa saber quem nós apoiamos e por que o fazemos, ser mais rigoroso com aquilo que ingerimos e saber que a forma como consumimos algo pode fazer toda a diferença para o nosso presente e para o nosso futuro.
Comprar os alimentos e buscá-los em um drive, comprar boxes diversos e variados pode até ser prático, mas nos distancia e não contribui de forma satisfatória para compreendermos cada vez mais a realidade que nos cerca, nos torna dependentes, e talvez até mal informados porque as informações disponíveis nos sites de supermercados e comércios são hoje insuficientes.
Particularmente, não gostaria de viver em um mundo no qual o comércio digital é a regra e a existência de lojas físicas é uma exceção, principalmente no caso dos supermercados. Fico entristecido de pensar que as interações sociais podem se tornar tão limitadas ao ponto de vivermos dentro de bolhas, como nas redes sociais, não conhecendo pessoas diferentes de nós em todos os sentidos, não interagindo uns com os outros de forma construtiva, não se divertindo. Prefiro cruzar com amigos e conhecidos no mercado, na feira, aconselhar e ser aconselhado, conhecer gente nova e ser cada vez mais criativo.
Foto de capa por Andrea Piacquadio no Pexels