Talvez alguns dos leitores desta coluna lembrem-se da Zebrinha, um quadro exibido no Fantástico no final da década de 1970 e em boa parte dos anos 1980, que anunciava os resultados da Loteria Esportiva. A Loteria Esportiva ainda existe (chama-se Loteca agora), mas deixou de ser a febre que foi um dia. E a Zebrinha virou coisa de almanaque. Mas, durante algum tempo, mesmo pessoas sem nenhum interesse em futebol, como eu, reconhecia aquela vozinha que era um dos sinais que marcava o fim do domingo e antecipava o início de uma nova semana.
Na lógica da Loteria Esportiva, a coluna do meio era aquela que devia ser marcada quando se queria apostar num empate entre dois times. E quando um dos jogos efetivamente terminava empatado, a Zebrinha dizia “coluna do meio”.
Normalmente, quem gosta de futebol não gosta muito de empates. E o termo “coluna do meio” passou a ser empregado para referir-se a pessoas que não tomam posição, que não são assertivas, que ficam em cima do muro. Além disso, começou a ser usado, também de forma pejorativa, para descrever homens gays: fulano é coluna do meio.
“Coluna do meio” chegou a ser o nome de uma coluna pioneira sobre o mundo gay assinada pelo jornalista e produtor Celso Curi e publicada no jornal carioca Última Hora na segunda metade dos anos 1970.
Por algum motivo, essa expressão emergiu outro dia do meu depósito de lembranças aleatórias. E, desde então, eu tenho pensado nela e em todas as associações que ela evoca, especialmente no que se refere à sexualidade e, de forma mais abrangente, às características que costumamos vincular ao masculino e ao feminino.
Para começar, não deixa de ser curioso que a coluna relativa ao empate seja conhecida como coluna do meio, e não como coluna dois das três colunas que compõem o formulário de apostas da loteria. Como se o empate não fosse um resultado de pleno direito, uma das possibilidades concretas do jogo. Como se o jogo só pudesse ser considerado um jogo de verdade se tiver um ganhador e um perdedor. Como disse antes, o empate não goza de muita simpatia.
Por analogia, o gay também não é visto como um homem de verdade (estou falando aqui da minha experiência como homem gay cisgênero). Nossa masculinidade é defeituosa e incompleta. Não a honramos. Mas também não somos mulheres. Ficamos no meio do caminho, sem uma posição clara entre dois extremos claramente delimitados, que não admitem uma zona cinzenta. Estamos em cima do muro, o que é mais uma maneira de trair a nossa condição masculina, que deve ser assertiva e inequívoca. Sem ambiguidades.
Devo dizer que, na minha fantasia, o futebol (e os esportes competitivos de um modo geral) seriam muito mais interessantes se, ao invés de lutar pela vitória, as equipes promovessem uma grande orgia em campo, sem ganhadores ou perdedores, mas com muito mais prazer ou, pelo menos, com um prazer muito mais bem distribuído entre todos os envolvidos. Na minha incauta e herege opinião, o empate é potencialmente uma oportunidade de gozo democrático e igualitário.
Deixemos o futebol de lado. O que eu pessoalmente acho mais estimulante nessa ideia de ser “coluna do meio” é justamente o que normalmente é encarado de modo negativo: a ambiguidade, a falta de clareza, a zona cinzenta, a indefinição. O não ser nem uma coisa nem outra e, por isso mesmo, poder ser os dois. Ou mais. Ser E não ser, eis a questão.
O caminho do meio é um tema muito importante nas filosofias orientais. Para alguns, a ideia do meio traduz-se na moderação e na busca do equilíbrio entre opostos. Gosto mais da abordagem proposta pelo filósofo francês François Jullien com base na sua leitura do pensamento chinês e do taoísmo. Para ele, estar no meio não significa ocupar um lugar fixo e equidistante entre dois polos extremos, o yang masculino e o yin feminino. É permanecer disponível para mudar de lugar conforme as circunstâncias, navegando entre o masculino e o feminino. “O sábio não tem ideias”, diz Jullien, o que não quer dizer que ele não pense, e sim que ele não se deixa aprisionar por nenhuma ideia fixa ou definitiva. Ele está aberto à mutação.
Mas nem precisamos ir tão longe. Os saberes de matriz africana carregados à força para o Brasil e reinventados na outra margem do Atlântico valorizam a figura de Exu, o mensageiro dos deuses que vive imerso na ambiguidade e cuja morada são as encruzilhadas, lugares de encontros, misturas e encantamentos, com resultados sempre surpreendentes (e fica aqui minha saudação ao professor Luiz Antônio Simas, com quem tenho aprendido a articular melhor o rico pensamento que emerge das encruzilhadas).
Vivemos mergulhados numa cultura que valoriza as identidades fixas e excludentes (ou você é homem ou você é mulher, ou você é “masculino” ou você é “feminino”), sem muito lugar para os empates e as colunas do meio. Ao mesmo tempo, vivemos também atormentados pela suposta obrigação de nos alinhar da melhor maneira possível aos papéis e ao desempenho esperados das identidades que nos foi assignada (Sou homem o suficiente? Estou realizando direito a minha “jornada do herói?”). Resta pouco espaço para a infinita diversidade de casos singulares e concretos que se distribuem ao longo do espectro que separam as identidades pré-fixadas.
Nesse contexto, ser “coluna do meio” traz um estigma, é claro. Não é fácil lidar com o preconceito e com a violência física e simbólica gerados pela homofobia. Mas creio também que a coluna do meio oferece uma oportunidade (que, como toda oportunidade, pode ou não ser aproveitada. Cada um lida com isso como melhor lhe aprouver.): a de não se deixar prender em nenhuma categoria estática, a de ser assumida e conscientemente ambíguo. E, mais que isso, a de questionar, a partir desse lugar intermediário, as próprias concepções do que sejam o masculino e o feminino. Embaralhar ainda mais as cartas. Transformar a zona cinzenta entre os gêneros num imenso arco-íris cujas extremidades se dissolvem no horizonte.
Naturalmente, há algo de radicalmente utópico nessa oportunidade. A divisão entre o masculino e o feminino apoia-se em práticas e condicionamentos milenares. Pensar fora dessa lógica binária exige a criação de novas categorias e talvez mesmo de um jeito diferente de pensar. Não é uma tarefa de curto nem de médio prazo.
O que não nos impede de tentar ensaiar alguns passos nessa direção ou, pelo menos, abrir algumas janelas para que entre um pouco de ar e luz nesse ambiente que pode se tornar um tanto claustrofóbico. Talvez uma transformação dessa magnitude seja efetivamente utópica na esfera coletiva. Mas talvez também tê-la como um horizonte nos permita criar espaços de experimentação e de mais liberdade a nível individual.
Podemos começar, por exemplo, repensando a transposição desse esquema binário de gênero para o universo gay. Ativo ou passivo? Essa deve ser uma das perguntas mais correntes nos aplicativos de encontros entre homens. E sabemos que, no fundo, ela não implica apenas uma preferência legítima no exercício do desejo de cada um. Ela tende a definir papéis e lugares que reproduzem uma ordem binária e patriarcal, onde o masculino se demarca claramente do feminino, e se impõe a ele como superior. Será que não podemos imaginar outras formas de nos relacionar que fujam a esse padrão?
Embora continue a me considerar um homem cis, sinto-me cada vez mais próximo daqueles que se definem como não-binários. E sonho com o dia em que, seja qual for a nossa expressão de gênero, possamos todos ser um pouco pós-binários. Não mais colunas do meio, mas inteiros na nossa diferença singular, móvel e fluida.
Até a próxima!
PS – “Mal Necessário”, com o Ney Matogrosso, não poderia faltar na seleção musical de hoje. E também “Eu Sou Neguinha”, uma das muitas obras-primas do Caetano Veloso, que tem um dos meus versos preferidos de todos os tempos: “Bunda de mulata, muque de peão”.
Para ver mais textos de Paulo André Lima, confira sua coluna Bons momentos e quem sabe algo mais
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