Esse é o meu terceiro texto sobre cinema gay. Quer ler os outros? Clique aqui.
Trama
A história do filme Cachorro (Bear Cub, em inglês. Filhote, em português.), 2004, de Miguel Albaladejo mostra a vida de Pedro, um dentista gay. Devotado ao prazer, Pedro precisa dar uma pausa na sua vida de festas e drogas por causa de Bernardo, seu sobrinho. Pedro acede aos pedidos da sua irmã e resolve ficar com o menino por quinze dias, enquanto ela viaja para a Índia. No entanto, ela e seu companheiro são presos acusados de tráfico. A situação se torna permanente. Pedro adota informalmente seu sobrinho, até que a avó paterna, cujo filho já era morto, começa a demandá-lo, chantageando Pedro com evidências de sua vida lasciva. Ela, por fim, consegue seu intento. Pedro se vê longe do garoto até que ela morra, quando ambos se reconciliam.
Os detalhes do filme também chamam a atenção. Bernardo é um garoto de inteligência prodigiosa e de extrema maturidade. Por ter sido criado por uma mãe muito liberal, ele se tornara muito responsável e autônomo. O garoto sabe que o tio e a mãe são soropositivos, assim como sabe que a prisão da mãe acontece por causa de drogas. Ele encara com naturalidade a sexualidade do tio. Pedro, no entanto, passa a se limitar por causa da criança. A princípio, a ideia parece ser se conter para não dar mau exemplo. Mas vê-se que Pedro se engaja na tarefa de criar a criança de nove anos. Pedro passa a proporcionar a ele a paternidade que lhe falta.
A ruptura entre ambos é traumática. Pedro adoece de pneumonia, requerendo cuidados hospitalares, correndo risco de vida, por causa de sua condição sorológica. Já Bernardo fica triste e revoltado, expressando seu ódio por ela de maneira explicita. A irmã de Pedro cumpre pena e busca conciliar todos por meio de suas cartas.
Bear culture e drogas
A fortuna crítica que eu pesquisei sobre o filme faz vista grossa ao uso de substâncias entorpecentes no filme. Definitivamente um filme para adultos, há cenas explícitas, nudez e uso de drogas. Não há a intenção de esconder isso. No entanto, não há muita ênfase a isso nem em resenhas de usuários, nem sequer em críticas mais sérias. Parece que a assistência estava OK com o que viu. No entanto, não há como mensurar o quanto a comunidade bear se sentiu representada por aquilo. Claramente, o retrato é de que o grupo de Pedro é formado por pessoas que consomem drogas recreativamente. Mesmo que seja numa pequena festa improvisada com uma criança por perto.
Não se trata, no entanto, de um filme que tematiza o uso de drogas. E nem o sexo livre entre gays no continente europeu. É um filme sobre a formação de uma relação entre pai e filho. Por isso o título, “Cachorro”, que em espanhol significa filhote. Mas há essa tangente na obra que chama mais a atenção em alguns meios.
Talvez “Cachorro” decepcione por passar uma imagem extremamente hedonista dos bears espanhóis. Talvez o problema seja exatamente porque a representatividade gay requeira mais. Gays, hoje em dia, precisam passar uma imagem de limpeza. Não que eles tenham que ser santos. Mas têm que ser aparentemente bons moços. Não há problema em que todos saibam que pessoas usam e abusam de drogas em orgias. Não há problema em saber que um gay tem vida sexual livre. O problema é mostrar isso e atrair julgamento dos moralistas.
Se gays fazendo sexo e usando drogas incomoda, é porque muitos de nós somos moralistas. Preocupamo-nos em aparentar bons moços, até que vem um filme sobre nós que mostra coisas que não gostamos no nosso meio. Mas drogas e sexo desregrados não deveriam nos incomodar. Mesmo que isso não seja do nosso acesso ou desejo. O filme nos mostra um ponto de vista sobre nós. Se o diretor não é a pessoa mais indicada para tal, seria necessário rever a obra ou contrapô-la à verdade.
Críticas
Sem exageros, falta a “Cachorro” esse tipo de crítica que questiona os lugares de fala de quem o roteirizou ou filmou. Sobram, no entanto, resenhas positivas. O filme que circula há mais de dezesseis anos é incrivelmente bem avaliado por quem o classifica ou é mostrado de maneira neutra e romantizada, como se fosse uma comédia de costumes.
Há uma coisa incômoda no filme. A ideia de que Bernardo pudesse se tornar gay por causa da influência do tio. Algo que aparentemente todos parecem supor e concordar sem muitas críticas. No entanto, isso é abandonado na história. Aparentemente Bernardo gosta tanto do tio que o quer imitar em tudo. Isso desaparece no enredo, à medida em que se reforça o drama da separação. Mas é incomodo.
Falta a “Cachorro” um pouco mais de humor. Não se deve compará-lo a produções de Almodóvar, porque embora possua cenas fortes e dramáticas, não possui o nível de ironia almodovariano. Nem seu uso poético dos planos e da luz. Não há também a presença feminina forte e decisiva no filme, nem mesmo há personagens LGBTQIA complexas. Pedro é hedonista. Mas tem só mais um lado: é um doce pai, devotado ao seu filho adotivo, disposto a se limitar por ele. “Cachorro” é um bom filme, infantilizado, apesar da crueza. Tocante.
Veja o trailer:
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Respostas de 2
Excelente considerações sobre o filme, realmente é um obra bem peculiar.
Obrigado, Fábio. Realmente não é uma narrativa comum.