Li recentemente um livro que me fez pensar bastante: “Conundrum”, de Jan Morris. A autora é uma mulher transexual que, segundo relata, se percebeu como mulher muito pequena, aos três ou quatro anos de idade, mas que só iniciou seriamente sua transição de gênero muito mais tarde, depois dos trinta. Em 1972, aos 46 anos, submeteu-se a uma cirurgia de readequação sexual (na época, ainda conhecida como operação de mudança de sexo) e desde então passou a viver plenamente como mulher até sua morte, no ano passado. O livro é um depoimento sobre sua trajetória da infância ao pós-cirurgia, e foi publicado pela primeira vez em 1974.
Trata-se de um livro pioneiro, por ter sido um dos primeiros relatos em primeira pessoa sobre a experiência da transexualidade, sobre a certeza de ter nascido “em um corpo errado”, como afirma a autora logo no início da obra, e de ter de conviver com esse paradoxo durante longos anos. Antes de iniciar sua transição, Jan Morris já era uma jornalista e escritora reconhecida (ainda que com que seu nome de homem e com sua aparência masculina) e seu talento contribui, sem sombra de dúvida, para fazer do livro uma leitura fascinante.
Ao mesmo tempo, o livro causa uma certa estranheza. É um depoimento de uma era pré-identitária, na qual todo o vocabulário de que dispomos hoje para descrever e discutir a diversidade sexual e de gênero ainda não havia sido desenvolvida pela militância política e pelos estudos queer, ou ainda se encontrava num estágio muito embrionário. Imediatamente antes de Conundrum, eu havia lido um romance lançado este ano e escrito por outra mulher trans, Torrey Peters, chamado “Detransition, Baby”, cujo enredo gira em torno de duas transexuais e de um mulher cis. É outra linguagem e outro universo.
Talvez por isso mesmo, as reflexões propostas pelo livro com base na experiência pessoal da autora tenham um certo frescor que, ainda que possa parecer um pouco datado, nos permite ter uma perspectiva diferente das questões relacionadas com o gênero e com a sexualidade.
Penso, especialmente, na divisão entre o masculino e o feminino, e nas características associadas a cada um desses pólos. Penso, mais especificamente, na ideia de que exista de fato uma essência do masculino e uma essência do feminino, e em todos os efeitos de poder que essa ideia pode produzir e tem produzido ao longo da história. Para mim, um homem cis branco e gay (e escrevo isso achando curiosa e sintomática a necessidade de fazer esse disclaimer), para além de toda a dimensão de afirmação dos direitos humanos e do direito à diversidade, o tema da transexualidade é fascinante pelo que abre de possibilidades de ampliação desse “campo problemático” em torno dos estereótipos de gênero.
Parêntesis metodológico: como bom discípulo de Foucault, eu costumo ter muito mais interesse nas perguntas que um determinado problema coloca ou permite colocar do que nas respostas encontradas, que são sempre inscritas num momento histórico e que cedo ou tarde se calcificam em certezas sempre limitantes. “Problematizar”, para mim, é justamente ampliar o campo de possibilidade das perguntas a partir da identificação e do eventual questionamento dos pressupostos que subjazem às respostas. É isso que eu chamo de “campo problemático”.
O que me pareceu instigante no livro de Jan Morris é que, sem recorrer (e sem poder recorrer) ao vocabulário ainda inexistente da identidade e da expressão de gênero, ela reflete sobre o que significa ser homem e ser mulher, e sobre o que seriam, afinal, essas essências do masculino e do feminino. Os trechos em que ela descreve como, sentindo-se mulher, vivia num universo masculino quase como uma espiã, são maravilhosos. Assim como o é sua intuição um tanto utópica de um futuro no qual o gênero, que ela define como psicológico, cultural e sobretudo espiritual, se sobreporia ao sexo biológico e predominantemente binário. Há um paradoxo no livro, que não se resolve, entre uma crença nos atributos da masculinidade e da feminilidade, e uma aspiração à superação desses limites. Paradoxo que, creio eu, transcende a questão da transexualidade e no qual continuamos mergulhados até hoje.
Como muitos homens gays, tenho vivido esse paradoxo ao meu modo. Quanto mais o tempo passa, mais eu acredito que aprender a lidar com ele tem sido um dos eixos estruturantes da minha trajetória nesse mundo, mais até do que minha orientação sexual “strictu sensu”. Não creio que esteja destinado a “resolvê-lo”, seja lá o que isso signifique. Mas tenho cada vez a convicção de esse é um campo problemático que me interessa explorar de forma mais consciente e refletida do que tenho feito até agora.
Desde muito cedo, eu sempre soube, ainda que de modo intuitivo, que nunca viria ser um “homem de verdade”, que nunca iria atender à expectativa às vezes explícita, às vezes silenciosa, do que um homem deve ser. E durante muito tempo tive que lidar com a culpa gerada por essa certeza íntima, sempre reforçada a cada tentativa frustrada de me tornar esse homem ideal que eu acreditava que o mundo esperava que eu devia ser.
Libertar-me disso foi um processo longo e não raro doloroso, embora com o tempo a sensação de leveza adquirida com esse movimento fosse aos poucos ocupando o lugar da culpa.
Ainda hoje, não é sempre fácil pensar nisso fora do quadro de referências fornecido pela oposição entre o masculino e o feminino. Explicar esse processo como uma progressiva aceitação e acolhimento da minha “porção mulher” em substituição à “ilusão de que ser homem bastaria”, como na maravilhosa canção de Gilberto Gil. O que era vivido com oposição tornava-se uma complementaridade, como um equilíbrio sempre dinâmico entre esses dois pólos, entre os quais eu dançava e danço sem cessar, sendo o homem que eu consigo ou desejo ou decido ser. Sendo o que eu sou. Um homem pra chamar de eu. Mesmo que seja eu.
Mas talvez tudo fique ainda mais interessante quando eu conseguir (tenho tentado) abandonar de vez a dicotomia e viver apenas o processo. Ir além do binário para ser apenas o complexo e o singular. O que não tem necessariamente nada a ver com a minha aparência ou o meu jeito de estar no mundo, e sim como a maneira de entender essa presença. Perceber o gênero como uma dimensão sobretudo espiritual, como sugere Jan Morris.
Naturalmente, não ignoro que o binarismo de gênero tem uma dimensão política que não pode ser negligenciada e que “espiritualizar” o gênero pode levar a uma perpetuação das desigualdades vinculadas às suas diferenças percebidas, como a naturalização da crença da superioridade de valores associados à masculinidade sobre os valores “femininos”, como o ativo sobre o passivo, o poder sobre a submissão, e assim por diante. Mas creio ser possível, e certamente desejável, valorizar a dimensão feminina do gênero (além, é claro, de assegurar a igualdade entre homens e mulheres de qualquer orientação sexual e identidade de gênero em todas as esferas) sem fortalecer a ideia do masculino e do feminino como uma essência abstrata e universal e sem romantizar o suposto “eterno feminino”, como acaba fazendo Jan Morris.
Não tenho bunda de mulata nem muque de peão. Às vezes eu sou neguinha, outras vezes não. Mas, como na música de Caetano Veloso, tenho a convicção cada vez mais firme de que o “mesmo signo que eu tento ler e ser é apenas um possível ou impossível em mim, em mil”.
Até a próxima!
PS 1 – As músicas escolhidas para ilustrar a coluna dessa semana são aquelas mencionadas no texto: “Eu sou neguinha?”, com Caetano Veloso; “Super Homem (A canção)”, com Gilberto Gil; e “Mesmo que seja eu”, na gravação da Marina Lima.
Uma resposta
Cada um é cada um! Mas para mim Sexualidade é mais psique e atração além do físico, mas também personalidade, do que gênero! Mesmo cisgenero aprecio o homem chamado viril! Não me é compreensível é sentir atração pelo gênero que nasceu com ele e como que rejeitou ou alega não se identificar! Me lembro que a primeira vez que um homem pelado me pareceu escultura, nossa conversa e “ficar” fluiu naturalmente! Ele até com menos pelos que eu e voz normal sem ser de “quebrar cristal” (como diz uma tia minha sobre minha voz). Ficou com ereção gostosa e era casado há mais de 10 anos! Como o ano era 1986, a paquera era discreta mas nitida a satisfação mutua nossa!