A escalada de Bolsonaro ao poder não foi obra dele, nem somente de sua suposta e contestável genialidade política. No entanto, desde o início de seu governo, sua principal atividade é atiçar o ódio que o colocou no poder, fazer declarações estúpidas e chocantes. Sua relação direta com o pseudofilósofo Olavo de Carvalho fez com que figuras incompetentes e improváveis ocupassem cargos de chefia e ministérios, dando ao governo do país uma máscara de ingerência e atraso. Nesse contexto, esporadicamente, notícias, escândalos e declarações estapafúrdias acompanham, nos noticiários, a luta da população contra o adoecimento em massa e os problemas causados pela falta de gestão federal da crise.
De fato, o presidente criou ao seu redor a ficção de que governar é lutar pelas ideias ridículas que supostamente o colocaram no poder. Sem conhecimentos básicos do que seja, de fato, governar, o poder que lhe foi dado escapa-lhe entre os dedos por causa das tragédias que se sucedem e do descontrole que ele mostra. Com uma legião de seguidores vociferando pelas redes sociais e disseminando paranoia e mentiras, o segundo ano de seu mandato termina como o pior governo que tivemos, fazendo frente aos anos desastrosos da época da Ditatura ou aos piores momentos da redemocratização durante os anos de 1980 e 1990. Mas o momento presente não deve ser esquecido. Inflação que retorna, crise na saúde, acirramento de diferenças, intromissão ideológica e religiosa no poder (cristãos evangélicos e católicos fundamentalistas), relações internacionais abaladas. Tudo vai mal.
O país tem mais de cinco milhões e oitocentos casos de infecção por COVID-19, e quase cento e setenta mil mortes. A pandemia tem aprofundado uma grande crise econômica, aumentado o desemprego e trazido desesperança para os mais pobres. Os custos com alimentação, combustíveis, vestuário, o custo de vida em geral têm aumentado com uma alta de preços, uma inflação que não se via há três décadas. A cada momento, notícias ruins são entrecortadas com declarações estúpidas e desastrosas do presidente. Uma das mais recentes diz que a as preocupações com a pandemia vem do fato de somos um país de maricas. “Temos de deixar de ser um país de maricas”.
Não é preciso dizer que “maricas”, no singular ou no plural, é um termo homofóbico. Na mente doentia do presidente da república, e na nossa formação cultural deturpada, de onde ele aciona esse significado, por meio do qual ele é compreendido completamente por todos, isso significa ser fraco. Associação entre maricas e fraqueza, infelizmente, deriva do entendimento de que homens gays são fracos porque são femininos. Isso respinga também nas mulheres. Maricas ou mulheres, somos todos fracos aos olhos de um cretino. Uma opinião, no entanto, não é o problema, mas todas as opiniões que confluem para o esgoto que sai da boca do presidente. Embora ele seja terrivelmente criticado por todos os lados, ele nunca parece cometer um erro que seja fatal. Já estamos acostumados a vê-lo destruir os protocolos, ser grosseiro, ofender as pessoas e isso tudo passa incólume. Chegamos ao ponto de concluir que, de fato, somos um país, não de maricas, mas de pessoas totalmente condescendentes. Ainda temos mais de dois anos até que seu governo acabe. O fundo do poço ainda parece longe. E aparentemente, temos dado a entender que aguentamos muito mais. Mas será que aguentamos mesmo?
Na verdade, isso tudo é efeito da divisão que sofremos. Passamos por anos sendo bombardeados por mentiras oriundas de técnicas específicas de convencimento espúrias. Nosso país está desgovernado não por causa de uma mente tenebrosa em particular, mas por uma mentalidade de classe. A classe média é uma contradição em si. Formada pelo proletariado que tem acesso a melhores salários, em países capitalistas, a classe média é um dos maiores focos das ações de consumo em massa.
Os valores da classe média merecem um texto à parte. Eles se marcam pela contradição permanente. Por ser uma classe voltada ao consumo e suas possibilidades, a classe média é aberta para as novidades da modernidade. De fato, a classe média gestou as principais mudanças culturais do país no último século, ligadas ou não à política. Descomplicando. A classe média é desonesta por atacado. O comportamento da classe é de manutenção de privilégios. Assim como a classe inferior a imita, a classe média imita a classe alta, mas não é capaz de acessar seu padrão de vida. Geralmente as classes altas são agnósticas, moralmente falando, a manutenção de seus privilégios não conhece limites, deuses, leis, sentimentos, nada os impede de continuarem ricos. Isso a classe média tenta imitar, mas não consegue, porque sua identidade é proletária. Valores que os criaram são caros e precisam continuar para darem sentido às suas existências. Isso fica patente no apego a esses valores
Isso explica a cabeça de Bolsonaro e de sua família. A narrativa de honestidade e combate a corrupção pode conviver, contraditoriamente, com a prática desenfreada de desonestidades, porque isso é permitido. Bolsonaro é o filho da classe média brasileira que chegou ao poder. É um fraco, débil e incompetente, mas acha que demonstrar força chamando uma nação inteira de “maricas” por estarem ficando desempregados, doentes, morrendo e sem recursos é algo típico do imaginário político e socioeconômico da classe média. A família é o núcleo básico da sociedade mediana e baixa, sua existência e proteção é uma das tarefas do Estado. E talvez por isso haja uma tendência de colocá-la nas negociações de manutenção de coisas. Os valores familiares são uma importante forma de pressionar os poderes, porque acima de tudo, a família traz coesão, organiza a vida e a economia de produção de indivíduos cujos corpos se devotarão ao trabalho. Várias ideias de esquerda botam em cheque o modelo defasado de família em que impera o machismo e a opressão dos corpos.
De fato, a família tradicional brasileira aponta para a existência de disfunções em sua microfísica, isso é mais comum do que o contrário. Pais ausentes, filhos desassistidos, dependência cada vez maior de serviços estatais de educação e cuidado, que liberam os progenitores para o trabalho, núcleos desfeitos, economia cruel de uso do corpo para o prazer com notória tendência à interdição do corpo feminino, essa é a realidade das famílias. Os valores estão em crise, se não já morreram. Mas, de fato, sua existência presumida são uma das maiores bandeiras do bolsonarismo. Isso só faz sentido porque há toda uma classe que acredita nesses valores, os deseja, identifica sua crise e espera seu retorno, como se fosse uma questão específica de combater quem demonstra que estejam em crise. A classe média se ressente de quem mostra a ela seus defeitos, em vez de buscar superá-los. É como diz o clássico adágio: “Em caso de más notícias, mate o mensageiro”.
Por isso o “país de maricas” começa a fazer sentido. É um país de pessoas que não conseguem se gerir sozinhas: não podem se manter vivas, produtivas sem a ajuda do Estado, porque entre elas e essa instituição há um contrato. As pessoas pagam pela manutenção do Estado e ele garante aquilo que as pessoas precisam, um mínimo. O mínimo que o presidente de um “país de maricas” entende que não deve fazer. Devemos superar essa “fraqueza” em prol de que mesmo? Não dá para saber, de fato é um problema. A ideologia de Bolsonaro não reconhece que a sociedade precisa constantemente se aprimorar para continuar democrática.
Homofobia. “Maricas” ou “marica” é uma designação homofóbica. Maricas significa homossexual afeminado e ao mesmo tempo, é sinônimo de pessoa fraca e frágil. Isso atinge a homens gays e mulheres ao mesmo tempo. Vivemos um século difícil para provar que gênero e orientação sexual não são determinantes para nada. Mulheres, gays, lésbicas, pessoas trans ou agêneras não são fracas, por definição, não são frágeis, não precisam de proteção mais do que quaisquer outras. São pessoas normais, em condições normais podem se desenvolver a contento.
De fato, mulheres e “maricas” na nossa sociedade, demonstram uma força incomum, chefiando famílias, existindo apesar do ódio que os combate, tentam justificar sua presença em cada nicho possível de existência e enfrentam preconceito diário por causa disso. Homens como Bolsonaro e pessoas como suas seguidoras estão em posições confortáveis demais para terem a primazia de apontarem quem são as mais fracas.
Basta de homofobia e machismo no desgoverno desse biltre. É uma pena que essa classe média e seus valores deturpados estejam onde estão fazendo o que fazem da forma como fazem. Essa classe traz em si a possibilidade eterna de haver exploração política das pessoas, sua existência é um problema de saúde política e mental coletiva. Isso mantém esse problema no poder e provavelmente justificará a sua presença até o final de seu mandato.
Mas sigamos, quem sabe consigamos, no final, fazer prevalecer valores reais de justiça e amor em que todos possam estar incluídos.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos