Bloco na Rua

Máscara e bloco de ruas para lembrar dos Secos e Molhados e de Ney Matogrosso

Eu tinha de 8 para 9 anos quando vi o Secos & Molhados pela primeira vez. Foi no final de 1973, logo depois que o grupo lançou o primeiro dos seus dois discos. O Fantástico tinha estreado fazia pouco tempo na Globo. Numa noite de domingo, eles apareceram cantando no programa. A imagem que eu guardo é a do Ney Matogrosso dançando e cantando O Vira, o rosto todo pintado, o corpo num movimento frenético mas totalmente ajustado à música. Aquilo me fascinou. Naquele final de ano, fomos visitar os meus avós no interior de Santa Catarina e depois passamos uns dias em Porto Alegre na casa de amigos dos meus pais. E a minha brincadeira favorita com os meus primos e amigos era imitar o Ney Matogrosso. Lembro ainda que, em algum momento daquele verão, eu ganhei o disco – com a foto da cabeça dos integrantes do grupo servidas em pratos, como num banquete – e ouvia-o sem parar.

Desde então, eu tive a oportunidade de ver o Ney Matogrosso no palco algumas vezes. A mais recente delas foi em novembro do ano passado, quando ele esteve em Lisboa para apresentar o show Bloco na Rua, no qual cantou várias músicas da década de 1970 que me pareceram absurdamente atuais. Em comparação com o escândalo causado pelos Secos & Molhados em plena ditadura, a atuação do Ney em cena hoje pode certamente parecer menos extravagante. Mas a sua vitalidade permanece a mesma, só que mais depurada e elevada à sua máxima potência. Foi um show maravilhoso.

Para mim, desde que o vi pela primeira vez naquele longínquo ano de 1973, Ney Matogrosso tornou-se um símbolo e um modelo de liberdade. Naturalmente, naquela época eu não tinha consciência plena disso, mas com o tempo fui percebendo que o impacto profundo que os Secos & Molhados tiveram sobre mim foi o de revelar-me a possibilidade de poder ser aquilo que eu desejasse ser e de dar corpo e expressão a esse ser.

Transformar essa possibilidade em realidade tem sido o projeto de uma vida. Com idas e vindas, avanços e retrocessos, sucessos e fracassos, prazeres e dores.

Quando eu fazia teatro na adolescência, no início de cada ano, antes de começar a trabalhar num novo projeto, a gente sempre fazia uma série de laboratórios de expressão corporal. Um dos mais conhecidos era aquele da semente que se transforma em árvore. A gente começava o exercício todo encolhido, como semente, e aos poucos ia expandindo o corpo e se desenvolvendo, até virar uma árvore. Eu lembro que foi num desses exercícios, creio que não exatamente o da semente, mas algo parecido, que eu tive um primeiro vislumbre claro da minha orientação sexual e afetiva, que só veio a desabrochar plenamente alguns anos depois.

Recentemente, esse momento voltou-me à lembrança em duas circunstâncias: a primeira foi quando eu estava preenchendo um questionário que era uma espécie de pré-atividade de uma maravilhosa oficina de escrita online dirigida a escritores gays de que estou participando. Uma das perguntas era justamente sobre quando eu comecei a me perceber como gay. A segunda foi lendo a coluna do querido Dan Barroso aqui no site, na qual ele conta como foi o momento em que tomou consciência plena da sua orientação sexual (quem não leu, por favor leia, vale a pena).

Depois de ler a coluna do Dan e de voltar a lembrar das situações que eu tinha descrito no questionário da oficina, eu fiquei com esse assunto na cabeça, mas foi só quando comecei a escrever esta coluna que ficou evidente para mim que eu falar eu precisava falar sobre isso. E que isso tem tudo a ver com a semente do desejo de liberdade que a visão dos Secos & Molhados contribuiu de forma tão decisiva a fertilizar em mim, e que era o tema central da coluna que planejara escrever inicialmente

Perceber a minha orientação sexual e afetiva foi um processo lento para mim. Durante a minha adolescência, eu tive paixões platônicas por meninas do meu colégio. Duas foram especialmente marcantes. Mas, francamente, eu nunca cheguei a me sentir realmente atraído sexualmente por elas. Era mais um encantamento pelas pessoas incríveis que elas eram (e ainda são). E, simultaneamente, eu tinha um desejo muito forte, que na época eu não reconhecia nem como sexual nem como amoroso (eu simplesmente não sabia nomeá-lo) de estar perto de alguns amigos do colégio. Mais de uma vez, peguei o ônibus errado na volta para casa e fui parar em outro bairro apenas para ficar mais tempo ao lado de um amigo e levá-lo até a porta da sua casa. Aquilo me confundia um pouco, mas eu não associava isso a uma orientação sexual específica. Eu nem sabia bem o que era isso. Apenas sentia.

Naquele fatídico e abençoado laboratório do grupo de teatro, as peças começaram a se encaixar pela primeira vez. Eu devia ter uns 15 ou 16 anos na época. Não lembro bem como, mas na dinâmica do exercício eu e um outro menino ficamos abraçados e tivemos uma troca muito intensa de carinhos. Até que ele se assustou e foi para um canto, deixando-me sozinho com uma sensação de plenitude que eu não sabia explicar. Eu percebi que gostava daquele garoto de um jeito diferente e que queria levar aquela troca para fora do palco. Mas nós nunca chegamos a conversar sobre isso, embora tenhamos nos tornado muito próximos por um tempo.

Uns dois anos depois disso, um primo de São Paulo contou-me que era gay. Suspeito que ele esperava que eu dissesse o mesmo, mas a verdade é que eu não sabia. Mas naquele momento eu acho que comecei a perceber que aquilo que eu sentia de modo tão confuso podia ter um nome.

No ano seguinte, no primeiro dia de aulas do 3º ano do 2º grau (o que seria hoje o último ano do ensino médio), eu estava na sala quando vi entrar um dos nossos novos professores para a sua primeira aula.

Foi uma coisa fulminante. Senti meu corpo pegar fogo. Tudo fez sentido para mim naquele momento e eu tive certeza de que os homens eram o objeto do meu desejo.

Nas férias de julho, meu primo foi para o Rio e eu contei a ele o que havia “descoberto”. Ele então me revelou que nosso tio também era gay. Chegamos a ir a uma sauna no Leblon, mas nada sério chegou a acontecer lá. Fomos juntos para São Paulo, onde tive uma longa conversa com o meu tio, com quem eu já tinha uma ligação forte. Fui com ele a uma boate e acabei ficando com um grande amigo dele. Foi meu primeiro beijo na boca de outro homem e a primeira vez que entrei acompanhado de outro homem num hotel. Eu tinha 17 anos. E era gay.

Eu hoje olho para trás e fico me perguntando como eu demorei tanto tempo para tomar consciência de algo que, retrospectivamente, parecia tão evidente.

Sinceramente, eu não sei a resposta. Mas sei que descobrir-me e assumir-me para mim mesmo como gay foi apenas uma etapa de um processo muito mais amplo de transformação de semente em árvore, que acabou se revelando muito mais complexo do que podiam sugerir aqueles laboratórios de teatro.

Ainda hoje, eu às vezes me revejo naquele menino que se percebia essencialmente como inadequado e ficou fascinado pela revelação da possibilidade de um corpo e de um espírito livres. Um dia eu chego lá, no meu ritmo e do meu jeito.

Até a próxima!!!

PS – Não podia deixar de incluir uns vídeos do Ney Matogrosso. O primeiro é da época dos Secos & Molhados. O segundo, a abertura do show mais recente, Bloco na Rua.

Para ver mais textos de Paulo André Lima, confira sua coluna Bons momentos e quem sabe algo mais

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