BIPOLARIDADE

Duas cabeças

Há exatos 20 anos, eu voltava às aulas, na faculdade, para terminar de cursar algumas disciplinas da minha graduação em Letras. Era licenciatura, eu precisava fazer estágio, TCC e cursar duas disciplinas em sala, pelo menos. Quinto ano de um curso de quatro. Eu havia atrasado o cronograma e não mais me graduaria junto com a turma com a qual iniciei. Nem convidado para a formatura deles eu fui, de fato. Mas, por quê?

Ab ovo

Tudo começou aos 14 anos. Eu me lembro de começar a estudar no Ensino Médio, numa escola nova, embora quase toda a minha turma tenha me seguido e se encontrasse espalhada pela turmas de primeiro ano. Era 1995, eu era muito criança, a escola era muito longe da minha casa, andávamos de ônibus ou até mesmo a pé para chegar lá. Muito estudo, muitos problemas, foi uma difícil adaptação. Acabei conhecendo pessoas novas. Era a melhor escola de Ensino Médio da cidade e era pública. As escolas privadas não tinham essa modalidade. Muitos riquinhos mudavam para a capital ou para cidades maiores para estudar. Mas os só metidos a ricos tinham que estudar com os pobres ali. Era um tempo mágico. Eu me descobri tanto em tão pouco tempo. E descobri a bipolaridade de um jeito muito complicado.

Um dia, tudo acordou cinza, sem graça. Passei semanas numa depressão profunda, todo mundo me odiava, eu odiava todo mundo. Um dia, nosso professor de história faltou porque ele bebia muito. E passamos uma aula inteira sem fazer nada. Nesse dia, eu senti tanto ressentimento em ver todos os que eu conhecia vivendo bem, sorrindo, enquanto eu olhava para mim e me odiava. Profundamente. Depois isso transitou para uma fase de verbalizar, dizer tantas coisas, comunicar-me com todo mundo. Eu passava o dia inteiro falando, falando, falando. Todo mundo tentava me silenciar, todo mundo dizia o que eu deveria dizer, meus irmãos me hostilizavam, meus pais estavam estranhos comigo. Mas na verdade eu estava estranho com todo mundo.

Isso se repetiu no outro ano, no mesmo padrão, um momento de introspecção e tristeza, depois um surto de sentimentos intensos, mas que saíram completamente do controle. Totalmente. Finalmente o meu comportamento mostrava meu cérebro neuroatípico em ação: eu não conseguia ir à escola, ou conseguia e não conseguia me sentir bem ali. Um dia eu saí da sala de aula e fui embora. No outro eu não quis ir. Minha mãe me levou num médico que disse que eu precisava dormir bem, receitou comprimidos de passiflora que não adiantaram, mas um dia a inquietação toda passou. Tarde demais. Eu era o doido. A meu respeito corriam histórias idiotas na escola: eu era louco, havia traduzido a Bíblia do inglês para o português, era um gênio, dava aula para os professores. Na verdade, não era nada disso. Eu era só uma criança sofrendo com um mal para o qual já existia remédio.

Sexualidade

Foi dificílimo lidar com sexualidade nesse turbilhão. Mas eu consegui me segurar bem até os 17 anos, até que eu me sentisse, de fato, responsável por meus atos. Nesse meio tempo, não lidava bem com o que sentia. Um irmão de um amigo, um dia, me deu uma cantada. Eu me senti muito mal e ofendido, embora eu já soubesse bem o que eu queria. Tinha muito medo, de deus, do mundo, de apanhar até morrer por ser gay (ainda tenho). No entanto, e apesar disso, ano de 1997 tinha transcorrido sem problemas. Foi um ano feliz em que eu não tive crises estranhas e nem tomei remédios duvidosos. Então em 1998, eu começo a faculdade, descubro-me como homem gay, passo a querer exercer a minha sexualidade da forma que fosse possível. Foi muita pressão. Passei a ter um comportamento diferente. Em vez de ter um momento de depressão e depois de agitação, a euforia começou aos poucos, até que ela se instalou sem que eu percebesse exatamente quando ela havia começado. Foi o pior ano da minha vida. De uma hora a outra, o pastor da igreja onde eu ia, que eu considerava meu amigo, chegou na minha casa e conversou coisas com minha mãe. Encaminharam-me a uma consulta com um psiquiatra que jamais falou mais que duas palavras comigo. Saí de lá com uma receita de remédios psiquiátricos. Ameaças, dificuldades. Eles achavam que eu era um tipo esquizofrênico que poderia ameaçar as pessoas. Não me lembro de ter acontecido nada disso, mas não dá para acreditar, antes de tudo, num cérebro em surto.

Não fui mais a essa igreja enquanto esse pastor lá esteve, e na outra em que eu passei a ir, o pastor era psicanalista (sem ser psicólogo) e passou a me tratar a preço exorbitante. Fiz três anos de terapia com ele, tratamentos naturais com placebos e, quando a coisa apertava, ele me conseguia uma receita com alguém para eu tomar tioridazina, um antipsicótico que foi retirado do mercado porque causava arritmia cardíaca. Nesses três anos, eu dei seguimento à minha vida, consegui passar num concurso público e trabalhar num banco, do qual fui demitido três meses depois, sob alegações que eu nunca consegui entender de fato. Mas sofri muito assédio moral e perseguição antes disso, por parte de um gerente, entendi o quanto a gente está sozinho num ambiente de emprego, o quanto é difícil ganhar o pão de cada dia. Era o ano de 2001 e eu surtei, meses depois dessa demissão, mas surtei mesmo, de verdade. Fui novamente encaminhado a uma clínica, só que dessa vez eu fiquei lá por 21 dias.

Manicômio

Não quero comparar a minha experiência com a de ninguém. Eu estava muito dopado para perceber as coisas. Mas no final desses 21 dias, eu me lembro de receber visitas de pessoas que queriam que eu fosse louco de vez para deixá-los em paz. Eu me lembro também de alguém me bater no dia de tomar sol no pátio. Também me lembro de fazer terapia ocupacional, horrível. Sem sentido. Eu me lembro também de um enfermeiro moendo comprimidos num almofariz de alumínio, como esses que se tem nas cozinhas, e dar para as pessoas beberem o pó, dissolvido em água. Eu me lembro de darem injeção num moço que não queria comer. Lembro-me de nós loucos, jogados, pelados, lembro-me de uma porta sem maçaneta, fechada, com um buraco na sua folha de madeira, cheio de comprimidos, lembro-me de mostrar isso a um enfermeiro ou enfermeira. Lembro-me de sair e voltar para casa, lembro-me da promessa do médico que dizia que eu estaria de volta ao manicômio em menos de um mês: casos como o meu não tinham cura.

O filme Mr. Jones, de 1993, estrelado por Richard Gere, mostra a vida de um bipolar estigmatizado que sofre com pesados surtos de mania e depressão.

Vida nova(?)

Nunca mais voltei para a internação. Em casa, tomei todos os comprimidos religiosamente, com a ajuda da minha mãe. Era dezembro. Em janeiro, eu recebi a incumbência de retornar aos estudos. E isso foi a vinte anos. Foi um mês ruim. Depois foi um ano ruim. Mas consegui um emprego. Depois consegui outro. Consegui me formar, também. Sempre tomando um comprimidinho e me cuidando parcialmente, porque eu desobedeci até o ano de 2020 a prescrição de fazer terapia, de emagrecer, fazer exercícios físicos e a promessa da obesidade e do diabetes se cumpriram… Hipertenso eu já era, continuei com louvor. Então mergulhei numa carreira quase insana de ser um professor medíocre, sem prêmios, sem projetos reconhecidos, sem destaque, mais um tijolo na parede, algo que me dá um certo prazer. Mas bipolar, neuroatípico, dependente de medicamentos.

Em 2007, assumi-me como gay para a minha família, não mais morava com eles. Mas precisava me abrir para eles. Havia arrumado um namorado. Na verdade um encosto, como dizem por aí. Uma pessoa que notou que rapidamente eu passei a amá-lo e obedecê-lo. Então fomos infelizes por quase onze anos juntos, acumulando dívidas em meu nome e um enorme desgaste emocional que levou a ambos a níveis muito sérios de adoecimento mental. Ele tornou-se alcoólatra. Eu passei a ter episódios recorrentes de depressão, desenvolvi ansiedade e TOC. A relação acabou depois de uma briga, momento em que eu abandonei minha casa com tudo dentro e voltei depois para buscar apenas objetos pessoais. Recomecei tratando a saúde mental pelo mais urgente. Depois por outros problemas menores de saúde física. Até que eu me vi, pressionado pela pandemia, a procurar ajuda psicológica.

Terapia

Funciona. Demais. Não é bom, no entanto. É como tomar um comprimido que custa a descer pelo esôfago, que dá azia no estômago e diarreia no intestino. Quer queiramos ou não, o estado de neurose que torna necessária a terapia é mais organizado do que os primeiros momentos após seu início. A terapia mexe no fundo de um lago lodacento, cheio de folhas podres, lama. A água limpa de repente se torna suja, o que a gente via não vê mais. Sem falar que, depois de 20 anos de relativa negligência com a bipolaridade, apenas tomando o remédio, as coisas se complicaram um pouco. Tudo começou no consultório do psiquiatra. Eu estava tomando um antidepressivo e lítio. Ao conversar com o médico, ele suspendeu imediatamente o antidepressivo, dizendo que claramente ele já estava me fazendo mal. Quem é bipolar sabe bem o que isso significa. Mas era um daqueles psiquiatras raros: o médico palestrinha. Geralmente psiquiatras não falam tanto. Mas esse falava. E explicava, e dava razões. E ele me convenceu de que eu não deveria mais tomar tantos remédios. Ele manteria o lítio, por causa de seus benefícios no controle da mania (euforia) a longo prazo. E depois ele me mandou emagrecer e fazer terapia. Ambas coisas com urgência.

Eu ainda demorei uns meses para procurar ajuda. E foi por causa do estresse causado pela pandemia. Odiei a primeira consulta. Odiei o psicólogo. Odiei as coisas que ele me disse. Depois eu passei a sentir uma simpatia por aquela figura ali, na minha frente, atendendo-me online, dizendo coisas perturbadoras, mesmo quando era para me ajudar. Com uns seis ou sete meses, eu já havia me acostumado com o desconforto de abrir minhas gavetas. O psicólogo é excelente, um profissional de primeira. O problema era eu mesmo, que queria manter o meu passado e presente do mesmo jeito que eles sempre foram. Eu sempre resisti a ideia de me curar por completo.

No meio desse mexe-mexe nas volutas do meu cérebro, sai finalmente o diagnóstico de diabetes: dá-lhe mais remédio e dieta. Com ajuda da psicologia eu tomei a decisão de tratar esse mal com um bypass gástrico. Antes, no entanto, que a cirurgia fosse feita, eu fiz um ano sob o tratamento psicoterápico. Aproveitei o momento para agradecer o psicólogo por ter me ajudado a tomar decisões importantes. Diferente do que eu achava no início, com um ano inteiro de terapia, eu tinha bons frutos para colher desse esforço. Nem sempre as coisas eram tão ruins. Ficou bem claro para mim mesmo o que mais me incomodava na terapia: algumas sessões funcionaram como gatilho para crises de ansiedade, para a manifestação da minha obsessão (TOC), mas nada foi tão grave que eu não pudesse lidar.

Hoje eu nem sinto isso mais, sinto outra coisa: alívio de uma depressão recorrente, desde 2015. Sinto-me mais capaz e alegre. Sinto-me grato a todos que me ajudaram. Ao psicólogo, a quem me indicou e viabilizou esse tratamento. Tenho outra vida. depois disso.

Mas né? É um processo, não um acontecimento isolado. E foi difícil, tem sido. Eu lamento um pouco por isso. Não negligenciei terapia por 20 anos apenas por não querer. Havia outros empecilhos: preço, disponibilidade de profissionais, tempo livre. Havia também o fato de que o uso de medicação psiquiátrica dá um conforto, uma segurança, no princípio. Mas é complicado. A condição da bipolaridade é sempre a de muitos prejuízos para a vida do indivíduo. Tenta-se acertar ao máximo, nem sempre isso parece ser fácil. Por muito tempo eu fui uma pessoa sem condições exatas para pagar o preço do tratamento. No meu estado, no interior, poucos psicólogos são credenciados em planos de saúde. O atendimento público na área da saúde mental sempre foi complicado, ainda mais nesse momento em que vivemos de pandemia e de descaso do governo com a saúde em geral.

Dicas de filmes para compreender a bipolaridade de um modo menos técnico.

Mas tudo vai bem, e parte desse “bem” vem do fato de que a psicologia acrescentou um pouco mais de conforto na minha vida. A doença mental é um importante foco dos poderes a partir da invenção da medicina social, no século XIX. A partir da caracterização do que é mentalmente normal ou não é que se distribuem os poderes e flui a economia do uso do corpo em sociedade. As mentes atípicas demandam controle e normalização. É um pouco revoltante pensar na psiquiatria e na psicologia como parte dessa forma de normalização por meio de um esforço de mudança que produz dor e desconforto.

Mas, por outro lado, a vida do neuroatípico, neurodivergente ou qualquer nome novo que inventem para me classificar, a vida de quem tem transtorno mental sem ajuda médica não é, de forma alguma, confortável e prazerosa. Apesar das dificuldades do tratamento, sem a psiquiatria e a psicologia, bipolares não conseguem viver com qualidade. Então, esses saberes médicos são responsáveis pela humanização de nossa existência. Todos nós que temos transtornos mentais sofremos psicofobia, o preconceito que nos torna automaticamente loucos ou incapazes na cabeça de alguns. A psicologia não só nos ajuda a nos compreendermos a nós mesmos, mas permite que o mundo nos compreenda melhor.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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