Linn da Quebrada, a cantora trans, que se autointitula, com orgulho, travesti, bicha e outros termos que, na sua boca, perdem a pejoração que têm quando usado por conservadores e hipócritas, foi (já não é mais) a grande atração da edição desse ano do Big Brother. O programa dispensa apresentações, mas é importante defini-lo como um jogo entre hóspedes numa casa que simula entre eles as dificuldades da convivência diária. Todos dormem em espaços coletivos, exceto o líder (temporário), eles precisam merecer o acesso aos benefícios da casa e até mesmo à comida que comem. Nesse meio tempo, a rotatividade no jogo é definida por jogos em firma de atividades físicas ou intelectuais realizadas ali dentro pela produção.
Mas a atração é conhecida por esse nome: “jogo”, não exatamente por ser gamificada, por ter provas, quizzes e outras formas de demonstração de habilidades físicas e intelectuais, mas pelo jogo das relações humanas, das amizades, alianças, conchavos, mentiras, falsidades, puxadas de tapete, entre outras coisas. O enredo que se desenrola na atração é minimamente escrito pela produção, que organiza os atores em cena e deixam que eles, por si, façam o resto. Por isso o Big Brother é tão permeável a tudo: preconceitos, dilemas humanos, problemas enfrentados por pessoas na sociedade entram para dentro da casa, cuja direção escolhe, a cada dia que passa, elencos cada vez mais diversos e variados.
Aparentemente, não há nenhum controle em como assuntos, demandas e lutas podem ser abordados e discutidos ali dentro. Ao colocar pessoas negras, brancas, de outras etnias, de diversas orientações sexuais e de gênero, o debate ferve. Mas dessa vez, deixou muito a desejar. Embora muitas dessas discussões tenham esquentado a Internet, fora da casa, dentro, alguns embates de fato se apagaram ante os reais combates psicológicos. Os egos estavam à tona. Nesse mise en scene, Linn da Quebrada, a Lina Pereira dos Santos, teve pouco espaço para mostrar seu protagonismo e sua força.
Coube a ela ocupar uma posição de honra. Foi uma mulher forte no meio de tantas outras fortes. Essa edição do programa se marcou por mostrar na prática como homens silenciam mulheres no dia-a-dia, por meio de atitudes muito próximas do gaslighting e abusando muito do mansplaining, como estratégia de intimidação. O blablablá e o zunzunzum dos machos da casa é constante. Do vitimismo de Arthur Aguiar às sabotagens de Douglas Silva e Paulo André Camilo, passando pelo comportamento intimidador de Gustavo Marsengo, o hétero top. Todos os personagens masculinos, inclusive os gays e os que se aproximaram mais solidariamente das mulheres, foram duramente criticados por suas posturas em vários momentos.
Tiago Abravanel mostrou um ar de elitismo e saiu correndo do programa, quando se sentiu preterido na casa por ser gordo. Não quis testar a sua popularidade da prática. Vinny é um exemplo de que quem ficou à sombra de uma personagem masculina, por quem desenvolveu um amor platônico aparentemente desinteressado, por Eliézer, que tentou, por sua vez namorar Natália, outra personagem controversa por suas posturas fora da casa, mas alguém de quem esperávamos mais, por ser negra, por ter vitiligo, por mostrar o corpo e sua beleza com desenvoltura e sem medo.
Na verdade, o grupo “da diversidade” na casa, mostrou um monte de perfis complicados, de pessoas com dificuldades íntimas e relacionais, que se apagaram sobre os gritos paleolíticos dos supostos machos alfa do programa. Para piorar, o perfil das pessoas colocadas na casa ainda incluem muitas pessoas que se envolveram em questões e discussões políticas e sociais, posicionando-se a favor do governo ou contra a diversidade. Só que isso não parece, de fato, ajudar ninguém. Era de se esperar que o apoio a Tiago, Linn e Vinny fosse intenso. No enanto, a população LGBTQIA não se sentiu representada. Os gordos não comemoraram como deviam o corpo desnudado de Tiago de sunga, sem a burca do julgamento alheio. Passou de largo também a força, o poder da obra de Linn da Quebrada, sua história, suas letras de música contundentes, seus questionamentos profundos. De fato, nem parece que eram Linn, Vinny ou Tiago ali.
Eles foram reduzidos a uma essência desnecessária: a fraqueza de suas opiniões, a miudeza de suas imagens em frente aos monólitos masculinos escolhidos para que as pessoas desejassem: o ator chorão, meninão, o empresário imponente, o ator popular e negro, assim como o atleta negro e sorridente. Linn foi a primeira a questionar a opção dos negros da casa pelos mais fortes, os elos de profunda amizade instantânea criados pelo machismo deles, como eles fizeram seu Clube do Bolinha e passaram a se relacionar com as sisters de maneira interesseira, como passaram a hostilizar os homens que não se alinhavam a eles e transformaram o BBB numa questão de força, de agilidade, de desempenho físico, de coisas em que culturamente, colocaram o homem na frente da mulher.
Nessa live com o Chico Barney, pessoas ligadas ao jornalismo de mídia comentam os participantes antes do início da casa. Nada melhor para marcar a decepção e frustração com as pessoas envolvidas no elenco que não apresentaram todo o potencial de trama, mas claramente apostaram em estratégias externas, na assessoria de imprensa:
Por fim, a anuência do público. Depois de edições fantásticas e com participação protagonista do público, que se orientou a favor das minorias e mulheres. Agora a decepção é total. Os participantes que puderam montar boas equipes de redes sociais, como Arthur Aguiar, orientam suas torcidas na batalha digital dos votos contra e a favor, mostrando que, para além da dinâmica da casa no BBB, ainda há um desenvolvimento de estratégia de fora, manipulando aquilo que sai na mídia, criando novas narrativas sobre a ação dos paticipantes, mobilizando votações e escolhendo alvos.
Esse programa paga pouco para quem já está no mercado do entretenimento, que vive de sua arte, mas dá visibilidade. No caso de Vinny e Linn, isso já aconteceu. Mas é triste como suas demandas, lutas e histórias ainda continuam desimportantes nesse cenário em que o mainstream da Rede Globo, usa a diversidade como uma personagem coadjuvante e descartável nas suas produções.
Nada de novo no cenário. A esse fenômeno, eu chamo de “o engodo da tolerência” por meio do qual o entretenimento capitalista investe na diversidade como forma de diversão de diversos modos, trabalha a tolerância como possível, como real, mas de fato não se trata disso. Aliás, nem passa perto disso. A intolerância reina e consegue, em espaços como a televisão, em que precisa ser dissimulada, encontrar outros caminhos de opressão e intimidação dos mais fracos.