Nunca me considerei particularmente bonito. Nem irremediavelmente feio. Me acho “normal”, seja lá o que isso queira dizer. Sempre tive consciência de que meu corpo não atendia aos requisitos para ser capa de revista. Mas isso nunca me incomodou muito, até porque também nunca achei muita graça nos corpos que são exibidos nas capas de revista. Meu público-alvo sempre foi outro.
Quando criança e adolescente, eu era magrela, para não dizer esquálido. Nas raras vezes em que olho fotos minhas da minha adolescência e juventude, vejo um aprendiz de faquir no qual não me reconheço. Depois, a partir dos 30 anos, mais ou menos, comecei a ganhar peso e sobretudo barriga e meu corpo foi tomando a forma que tem hoje. Continuo não me considerando um deus da beleza (estou bem mais para Mister Buda do que para Mister Universo), mas certamente me sinto muito mais à vontade no meu corpo atual do que no meu corpo de 30 ou 40 anos atrás.
Estou seguro de que isso contribui para que meu processo de envelhecimento não esteja sendo difícil ou doloroso. Diria até que pelo contrário. Sinto-me hoje muito mais em paz comigo mesmo do que jamais me senti nos meus 15, 20, 30 ou 40 anos. Pois, para mim pelo menos, isso não tem nada a ver com beleza. E eu diria até que não tem muito a ver com a tão valorizada auto-estima.
Falando assim, pode parecer que eu não fui, como a maioria das pessoas, senão todas, um jovem atormentado e cheio de dilemas existenciais. Fui demais. Mas creio que os meus conflitos interiores estavam menos relacionados com minha adequação a padrões de beleza do que com uma sensação mais geral de inadequação ao mundo que me cercava, combinada a um sentimento de invisibilidade.
Em colunas anteriores, já falei dessa sensação de inadequação, do desconforto que ela provoca e de como pode também ser fonte de um olhar singular sobre o mundo (é interessante como, depois de um tempo, a gente vai percebendo como o que escrevemos circula sempre em torno de alguns temas recorrentes).
Paralelamente a isso, eu também sentia o sentimento de ser invisível. Houve muitas noites em que saí sozinho e voltei para casa com a sensação de que ninguém tinha me visto nos lugares em que havia estado. Lembro-me de várias noites passadas na Papagay, no Rio, dançando sozinho na beira da pista, fechado no meu mundinho imaginário, como na música do Pet Shop Boys. E sem pegar ninguém. Eu era apenas mais um corpo no meio de todos aqueles corpos, e todos me pareciam mais interessantes do que eu, ou pelo menos mais visíveis.
É bem verdade que, com o tempo, eu percebi que parte do problema era que os lugares que eu frequentava (que eram os lugares que eu conhecia) eram lugares onde o meu tipo de corpo não chamava a atenção. Fui aos poucos descobrindo outros lugares onde as pessoas reparavam em mim e, para ser honesto, eu também reparava mais nas pessoas. Sei que hoje muita gente torce o nariz para a ideia de uma comunidade bear (e entendo e concordo com quem acha que o que nasceu como um espaço inclusivo para pessoas fora de um padrão acabou se tornando um espaço com os seus próprios padrões e mecanismos de exclusão). Mas o fato é que, no seu tempo, ter tido a sensação de pertencer a um grupo onde eu não me sentia mais invisível foi muito importante para mim.
Sentir-me mais visível não afetou muito minha sensação de inadequação, mas me ajudou demais a tornar-me mais visível para mim mesmo e a perceber meu corpo como um corpo desejável. E quando digo desejável, não digo necessariamente bonito. São coisas diferentes. E compreender essa diferença me parece fundamental. Vincular a percepção positiva do próprio corpo à sua adequação a padrões externos de beleza torna-nos eternamente escravos do olhar do outro, e o que é pior, um outro abstrato que não existe na vida real. Porque o que existe de verdade são OS outros.
Pois tem isso também. Perceber-se como desejável não significa que sejamos desejáveis para todos. Seremos desejáveis para alguns e não para outros. Do mesmo modo, não desejaremos todos, desejaremos alguns e não outros. E, crianças, acreditem nas palavras de um daddy experiente: o conjunto formado pela intersecção do conjunto daqueles que desejamos com aquele das pessoas que nos desejam é grande o suficiente para preencher uma vida. Desde que a gente aprenda a dar valor a ele, e não ao que fica fora dele e deixar que o lado de fora nos defina.
Ter auto-estima é legal, mas estou cada vez mais convencido de que talvez não seja o mais importante, especialmente se ela depender daquilo que você vê (e julga) no espelho. Porque tem dias em que você vai se querer bem, e outros em que você vai se querer mal. E isso é normal. Mas bacana mesmo é quando, querendo-se bem ou querendo-se mal, a gente consegue se acolher como é, sem julgar, sem medir, sem comparar. Pessoalmente, acho que o auto-acolhimento antecede a auto-estima e é muito mais valioso. É quando, como já disse uma vez, a gente se transforma no nosso melhor amigo. De quem a gente tem raiva de vez em quando, mas que nunca deixa de acolher de braços abertos. Com suas qualidades e defeitos.
No fundo, o que importa não é me olhar no espelho e me achar uma grande gostosa. É sentir-me bem e confortável dentro do meu corpo sem precisar olhar no espelho. O espelho me diz coisas diferentes em dias diferentes. E eu digo de volta para ele: esse é o meu corpo, meu bem. É o que tem pra hoje. Nem bonito nem feio: meu. Já proporcionou muitas alegrias, a mim e a outros. E, se tudo der certo, vai continuar proporcionando por muitos anos ainda. E por isso eu cuido dele e vou continuar cuidando, não em função de números ou taxas disso ou daquilo, mas porque ele merece ser tratado com carinho.
Não foi fácil chegar a esse ponto. Foram anos de terapia, de encontros e desencontros comigo mesmo e com os outros, muitas travessias do deserto e longos períodos à deriva sem terra à vista. Tive e tenho a sorte de ter amigos de longa data e outros que foram chegando com o tempo. Tive e tenho a sorte de ter encontrado um lugar onde pude reatar meus laços com a dimensão do sagrado sem precisar negar o profano. Mas, sem nenhuma modéstia, acho que também fiz a minha parte. E posso dizer sem hesitar que tem valido a pena.
Estou saindo de férias no final dessa semana. Volto em meados de setembro.
Até a próxima!
PS – As músicas de hoje foram escolhidas a dedo: “Diamante Verdadeiro”, de Caetano Veloso, na voz de Maria Bethânia; a clássica “Perigosa”, com as Frenéticas, que todo viado da minha geração dublou, cantou e dançou em frente ao espelho antes de sair pra noite; e “The Boy Who Couldn´t Keep His Clothes On”, uma das minhas preferidas do Pet Shop Boys.