Jorge abriu os olhos de forma lenta e temerosa. Levou a mão ao peito, esperando a segunda leva de dor, mas esta recusou-se a vir
— Eu… morri? – Indagou para si mesmo, mas outra pessoa respondeu.
— Pois é. Seja bem-vindo ao Além, Pós-Vida, Outro-Lado, ou como bem preferir.
Uma senhora com longos cabelos brancos que se perdiam entre suas vestes límpidas aproximou-se, lançando-lhe um sorriso pacífico e estendendo a mão para ajudá-lo a se levantar.
— E quem é a senhora? Um anjo? Uma deusa?
— Não usamos essas nomenclaturas terrenas por aqui, muito menos as religiosas. No entanto, se preferir, pode me chamar de Rosa.
— Rosa… Minha avó se chamava Rosa.
— Ela cuidou de você durante quase toda a sua vida. Farei o mesmo durante a sua morte.
Agora, ambos caminhavam lado a lado, sem pressa, enquanto Jorge tentava digerir as novas informações.
— Você parece decepcionado. – Constatou a senhora, como se fosse um sentimento comum entre os recém-chegados. O que de fato era, apesar de Jorge manter-se alheio ao fato.
— É que, bem, eu ainda tinha tantas coisas para fazer! Por exemplo, acabei de criar um projeto educacional para as crianças da comunidade, minha filha anunciou uma gravidez há poucos dias e meu filho está prestes a se formar na faculdade. E eu não estarei presente em nenhum desses eventos! Tantas coisas que eu ainda poderia ter feito…
A senhora apenas assentiu com a cabeça.
— Por que este lugar é tão vazio? – Suspirou, sentindo a brancura ao seu redor causar-lhe um certo desconforto.
— Este lugar é o reflexo daquilo que sentimos, da nossa realidade individual. Este pode ser o seu paraíso, como pode também ser seu inferno. Todos nós temos o poder de alterar a percepção de mundo ao nosso redor de acordo com aquilo que guardamos em nossos corações e em nossas almas.
— Sinto falta das estrelas… – Sussurrou, melancólico. Foi surpreendido mais uma vez, quando a brancura deu lugar a um campo aberto, iluminado apenas por incontáveis e brilhantes estrelas.
O homem ergueu os olhos ao céu, sentindo-os marejar com o misto de sensações que desabrochava em seu peito.
— Eu já fui uma encarnada também, sabia? – Segredou Rosa, sorrindo de forma cúmplice. — Mas nunca tive medo da morte.
— Nunca? – Perguntou ele, surpreso.
— Nunca. Eu tinha uma missão e a cumpri. Eu sempre soube qual era o meu propósito de vida; ajudar pessoas. Ironicamente, meu propósito além dela continua o mesmo. – Diz, uma expressão satisfeita em seu rosto. — Ao contrário de você. Estou certa?
— Eu sempre pensei nas coisas que deixaria para trás na hora da minha partida. Não posso dizer que me agrada a ideia de não dar prosseguimento aos meus projetos ou aproveitar tudo o que um dia eu plantei.
— Sabe, filho, quem planta tâmaras nunca chega a colhê-las. Você cumpriu seu propósito. Foi um bom neto, um bom marido, um bom pai e um ótimo professor. Plantou suas sementes, e mesmo que não vá provar de seus frutos, outras pessoas irão. E não há nada mais honrado.
Jorge parou para refletir sobre o que Rosa havia lhe dito. Naquele momento, tudo o que havia feito em sua vida lhe passou pela mente.
Ambos se sentaram na grama macia, apreciando o vento morno que acariciava suas faces.
— Algumas estrelas são como nós, sabia? – Comentou Rosa.
— Como nós? – Indagou o homem, confuso.
— Meros fantasmas do que algum dia já existiu. Mas que apesar de terem morrido, ainda hoje conseguimos ver o reflexo de seu brilho. Mesmo que por telescópio. – E ao ver a expressão ainda interrogativa de Jorge, continuou. — O seu projeto vai ser um ponto de partida para muitas pessoas. Uma equipe voluntária vai tomar as rédeas, o que vai ser uma grande oportunidade de evolução para seus integrantes. Isso sem contar das inúmeras crianças que se beneficiarão com isso. Seu filho só concluiu os estudos porque tinha você como fonte de inspiração, e depois de um tempo, dará continuidade e crescimento ao seu projeto. Seu neto (e os que ainda virão), crescerá ouvindo histórias incríveis sobre o avô. Seus frutos serão doces e suculentos. Ainda se arrepende de tudo o que não pôde fazer, ou se alegra por aquilo que pôde?
Jorge olhou para o céu mais uma vez, e sem que percebesse, um sorriso satisfeito brotou lentamente em seu rosto.
— Você está pronto. – Constatou ela finalmente, passando os olhos pelo rosto de Jorge com atenção.
Não mais surpreso, pois nada mais poderia fazer com que sentisse tal sensação, o mesmo notou que havia uma porta de pé no meio do campo.
Os pés nus do homem caminharam decididamente até ela. Seus dedos giraram a fechadura com firmeza e seu corpo atravessou a porta com confiança, sendo engolido pela luz que saía de dentro.
Do lado de fora, a senhora sorria com orgulho. Então, cruzou o batente, juntando-se a Jorge.
Aonde? Isso teremos de continuar plantando tâmaras para descobrir, não é?