No dia 15 de outubro, celebra-se, no Brasil, o Dia do Professor. Eu normalmente não ligo muito para essas efemérides, mas esses dias me peguei pensando em alguns professores e professoras que influenciaram profundamente minha forma de ver o mundo. E achei que era uma oportunidade de prestar-lhes uma homenagem.
O primeiro deles foi o Karydakis. Professor de literatura e “civilização” na Aliança Francesa, eu lembro-me dele sentado à mesa, fumando desbragadamente (naquela época, isso era completamente normal) e falando sem parar. Fui seu aluno em vários cursos e cheguei a participar da montagem de uma peça teatral dirigida por ele, o Don Juan de Molière.
Numa das primeiras aulas que tive com ele, ele pegou um poema, acho que era do Victor Hugo, e apresentou três diferentes interpretações dele: uma de inspiração estruturalista, a outra baseada em Bachelard, a terceira de uma perspectiva marxista. Todas faziam absoluto sentido e eram completamente consistentes. Nenhuma mais verdadeira que a outra. Eram olhares igualmente possíveis sobre um mesmo texto. E provavelmente diferentes do olhar que o próprio poeta teria sobre sua criação.
Saí da aula fascinado. Com a inteligência extraordinária do Karydakis, lógico, mas sobretudo com essa revelação mágica de que um mesmo objeto contém inúmeras possibilidades de leitura. E que limitar-se a uma única possibilidade empobrece a experiência daquele objeto.
Além disso, fascinou-me também perceber o prazer com que o Karydakis se entregava àquele exercício. Havia uma alegria no seu jeito de destrinchar textos e ideias que me marcou para sempre. Pensar pode (deve) ser divertido. Eu nem sabia quem era Nietzsche nessa época, mas creio que, de certa forma, o Karydakis foi o mais nietzscheano dos meus professores.
Em seguida, teve a Luíza. Foi minha professora de história do Brasil no São Vicente, onde estudei da 5ª série do 1º grau até o 3º ano do 2º grau (o que corresponderia hoje à segunda metade do ensino fundamental e o ensino médio). Fui aluno da Luíza nos dois últimos anos, acho. Com certeza no 3º ano, de preparação para o vestibular.
Até hoje, quando estudo e leio sobre história do Brasil, lembro-me das aulas da Luíza. De como ela nos explicava os processos históricos de forma clara, mas sem escamotear a sua complexidade. E sem diminuir a importância dos atores nem exagerá-la. Suas aulas eram divertidas viagens no tempo. Devo a ela muito do interesse que ainda tenho por história e a consciência da singularidade de cada época e de cada momento.
Na universidade, tive alguns bons professores, mas nenhum se compara ao João Luiz, meu professor de Linguagem Cinematográfica. Nunca mais consegui ver filmes da mesma maneira depois de ser seu aluno. Atualmente, sou bem menos cinéfilo do que era naquela época, mas os conceitos que aprendi com o João Luiz ainda me acompanham e me ajudam a perceber como se constroem narrativas, na tela ou fora dela.
Creio que, se o Karydakis me despertou para o prazer da exploração das possibilidades do significado de uma obra, o João Luiz me ajudou a descobrir um outro prazer, que é o prazer da técnica e da carpintaria narrativa, de suas muitas ferramentas e dimensões, e para o fato de que essa técnica também produz significado.
Finalmente, no mestrado, fui aluno da Ieda. Fiz com ela um curso sobre o pensamento de Clement Rosset, Gilles Deleuze e Michel Foucault, que causou uma impressão tão forte em mim que acabei convidando-a para ser a orientadora da minha dissertação. Das suas aulas, lembro-me especialmente do seu caderno, onde ela trazia todas as aulas preparadas e que ia percorrendo ao longo de duas horas que passavam sempre rápido. Lembro também da sua voz rouca e da evidente paixão que ela tinha por aqueles pensadores e suas ideias.
Paixão contagiante, pelo menos para mim. Foi no curso da Ieda que comecei realmente a descobrir as obras de Foucault e de Deleuze, que acabaram sendo fundamentais não somente para a minha dissertação, mas que transformaram minha vida. Foi como se um novo mundo se descortinasse para mim, um mundo no qual eu me sentia finalmente em casa. E creio que não poderia ter tido uma guia melhor para me introduzir a esse novo mundo do que a Ieda.
Curiosamente (mas, no fundo, não tão surpreendentemente) vim a descobrir depois que a Ieda também tinha sido aluna do Karydakis e era sua fã incondicional. Foi como se um círculo tivesse se fechado. Se eu tivesse que escrever um romance de formação sobre a minha educação intelectual, teria que terminar a história nesse ponto. O que veio depois (e veio muita coisa depois) não teria sido possível sem essas fundações.
Pensando nesses professores e professoras em conjunto, percebo que tinham em comum um evidente prazer de estar ali, lecionando. E esse prazer se espalhava pelo conteúdo do que ensinavam e lhe dava mais vida. Mais do que isso, fomentavam a curiosidade e o desejo pelo conhecimento.
Sabemos que a escola pode ser uma máquina de reprodução de padrões e modelos (hey, teacher, leave them kids alone!). Mas ela pode ser também uma janela para o mundo, um convite para ultrapassar os limites estreitos da família e ampliar nosso campo de possibilidades, através do conhecimento, um conhecimento entendido como fonte de prazer, não um acúmulo de saberes bolorentos e estéreis.
Tive a sorte de encontrar no meu caminho professores como o Karydakis, a Luíza, o João Luiz e a Ieda, que despertaram em mim essa vontade de me aventurar, no pensamento e na vida, sem nunca perder de vista a dimensão da alegria e do prazer. A eles todos, meu respeito, minha admiração e minha gratidão eternas.
Porém, não nos esqueçamos que ser professor, por mais nobre que seja, não é um sacerdócio. É uma profissão. Não basta louvar e exaltar os professores. Há também que lhes proporcionar condições dignas de trabalho e uma remuneração adequada. Nesse Dia do Professor, saibamos valorizá-los não somente com palavras, mas também, e sobretudo, com ações, escutando e apoiando suas lutas e reivindicações.
Até a próxima!
PS – As músicas de hoje são escolhas meio óbvias, mas de certo modo incontornáveis: “To Sir with Love”, tema do filme com o mesmo nome, e “Another Brick in the Wall”, clássico do Pink Floyd.
Respostas de 2
Obrigado Paulo André! Um relato comovente e sincero sobre seus mestres. Fiquei muito tocado.
Um grande abraço!
Poxa, Evaldo, muito obrigado! Outro grande abraço pra você!