A Substância.

Então… passei dias, na verdade semanas até pensando em como eu iria começar a escrever esse texto. Mas acho que a melhor forma de começar a escrever ele é exatamente dizendo o propósito dele. Eu assisti ao filme A Substância, aquele com a Demi Moore, que muitos estão dizendo que é um dos novos expoentes do Body Horror, gênero que costuma impressionar com, como o próprio nome diz, cenas relativas ao corpo, exagerando por demais e chocando o público. Esse filme… me acertou, mas acertou de uma forma tão precisa, que eu fiquei mal por alguns dias, esse filme me fez olhar para dentro de mim mesmo, pensar em coisas das quais eu percebi que estava negligenciando demais, mas que cedo ou tarde acabariam vindo à tona e precisaria ser trabalhado em alguma conversa, com alguém ou até mesmo com meu psicólogo. Já já retorno nesse assunto, porque preciso primeiro falar do filme em si. 

Em A Substância, Demi Moore interpreta Elisabeth Sparkle, uma celebridade lindíssima que trabalha num programa de vídeos de ginástica, daqueles com direito a maiô, séries de repetição e tudo mais. O diretor desse programa, interpretado pelo Denis Quaid, acaba por acidente deixando que Elisabeth Sparkle o ouça dizendo que ela já era, que precisa de uma nova celebridade e isso faz com que a vida de Elisabeth vire de ponta cabeça, e eis que por um acaso do destino, é oferecida a ela a chance de experimentar a “Substância” do título do filme, o qual gera, digamos que… uma nova versão da personagem, jovem, linda e… perfeita… a única regra para o procedimento? Que cada sete dias Elisabeth faça a troca dos corpos.
Falar mais do que isso implicaria em ter que dizer spoilers pesadíssimos sobre o filme, e eu recomendo que você o assista se puder, mas por favor, o faça ou sozinho, ou com apenas adultos próximos, o filme tem cenas que podem impressionar aos mais sensíveis.

Se falei de Elisabeth Sparkle, não posso deixar de falar da Sue, a versão aprimorada de Elisabeth, interpretada aqui pela atriz Margareth Qualley que também está sensacional. A atriz demonstra o vigor, a energia, a autoconfiança, a espetacular autoestima. Ela é a representação do ápice do que se busca com relação a satisfação de um ideal de beleza, talvez seja até pouco restringir a apenas beleza nesse caso, digo isso porque se o brilho, o glamour, que vem através da Sue, o oposto, a decadência, a baixa autoestima, a frustração, está toda do outro lado, com a Elisabeth. E essa disparidade entre as personagens, que no fim das contas, são lados opostos da mesma moeda, é apenas mais uma das coisas que faz o filme brilhar.

O filme tem cenas muito bonitas, e a fotografia é muito direta no que se quer dizer, por exemplo, na sala imensa da personagem, há um quadro do tamanho quase que inteiro da parede com uma foto da Elisabeth, e esse quadro aparece como um lembrete dos tempos áureos, e ao decorrer do filme, é exposto num outdoor, o novo programa da Sue, com o rosto dela estampado. Mas falando não apenas da fotografia, é importante notar que é um filme que se faz perceber muitas analogias, o diretor em uma cena de almoço com a Elisabeth é mostrado de muito de perto, com aquele ângulo de câmera em que distorce um pouco o rosto, isso dá uma sensação de incômodo, de invasão do espaço pessoal, já em outros momentos, esses closes são exageradamente próximos do corpo de Sue, pela câmera do programa, nos lábios, na cintura, nos movimentos, é quase uma coisa sexual.


                Agora retomando o que havia dito lá em cima, esse filme me atingiu de uma forma tão certeira, porque ele lida com a leitura que fazemos de nós mesmos, o quanto nós absorvemos as informações, julgamentos externos e nos avaliamos tendo isso como uma das lentes de observação. Isso é muito cruel. Há uma cena específica, em que Elisabeth está se arrumando para ir em um encontro, e ela acaba voltando ao espelho e a baixa autoestima dela a faz repensar várias opções de dar um “up” na aparência dela, paro por aqui para não estragar a cena para o leitor que for assistir após a leitura desse texto. Comigo, o processo foi levemente parecido, mas com questão de que eu não consigo sequer me ver no espelho. É uma coisa tão simples, passar em frente a um espelho, dar aquela ajeitada no cabelo, dar uma piscadinha, mas não, não comigo, tá, é claro que me olho, não tem como, mas gostar? Aí é outra história. Ter sido gordo por mais da metade da minha vida, especialmente na adolescência, fez com que eu tivesse diferentes atitudes diante das cobranças sociais que vieram em minha direção. Hoje quase com 40 anos, pareceria mais fácil não ligar para essas coisas, mas não, aquele meu eu interior, machucado, que precisa de um acalento, ainda está lá guardadinho, as vezes até negligenciado. E como nós somos cruéis conosco… As vezes me pego experimentando uma roupa para ir para tal lugar, e já odeio como eu fico ao dar aquela conferida no espelho. São raríssimos os momentos em que olho e gosto do que vejo. É um trabalho constante e deveras cansativo acreditar que você realmente é uma pessoa bonita para si mesmo.

                O filme te faz olhar através da ficção como a personagem lida com os dois lados dela mesma, o ódio que ela sente pela sua “versão original” e o sucesso e glamour conquistado através de sua “nova versão”. Eu me peguei pensando tanto ao longo do filme quanto após, se eu teria coragem de utilizar essa substância, e a resposta é praticamente automática… SIM. Não vou inventar e soltar papo motivador do tipo “Ame a si mesmo” e afins, porque isso não é feito assim, da boca para fora, é uma construção, e essa construção precisa muito de tempo e de uma ótima rede de apoio. E quanto a isso, eu não posso negar que tenho. Portanto, mesmo após ter assistido ao filme, essa rede de apoio, me acolheu, nela consigo ser eu mesmo, sem julgamentos.

                Há algo que não pode deixar de ser dito a respeito desse filme, que é, se você conhece mesmo que minimamente a carreira da Demi Moore, você provavelmente conseguirá entender o porquê de ela ter sido escolhida para protagonizar esse filme. Demi Moore foi muito exaltada nos anos noventa, com “Ghost, do outro lado da vida” (1990) e vários outros filmes dessa época, até ela ter sido escalada para “Striptease” (1996). Ela foi sexualizada, exposta, e a crítica massacrou o filme, por se tratar de uma indústria, é importante entender que há muitas pessoas envolvidas nesse processo, será que ninguém imaginou que isso poderia vir a acontecer? Após isso, mesmo com “Até o limite da honra” (1997) as críticas foram pesadas, não tanto quanto em strip-tease, Demi foi deixada cada vez mais de canto voltando a ser notícia novamente após o casamento com Ashton Kutcher, um homem muito mais jovem que ela, casamento que teve fim em 2013.

                Enfim, há tantas nuances que esse filme pode alcançar, o simples fato de ele explicitar em tela a relação da autoimagem e seus conflitos, faz com que o telespectador, se relacione com essa questão, porque aqui sendo ousado, eu arriscaria dizer que é impossível ser feliz, mas digo feliz de verdade em um mundo com tantas ofertas de upgrade estético, seja através de produtos ou de procedimentos cirúrgicos. Será que somos escravos mesmo de uma construção de um ideal de beleza inalcançável? E que custa muito caro? Será que o capitalismo é mais uma vez o problema?

Uma resposta

  1. Emerson, eu assisti ao filme e concordo com a maioria das suas colocações, mas diferente de vc, estou em um momento muito legal no que se refere a minha autoestima, mesmo aos 56 anos. Corro, cuido da minha alimentação e durmo bem. Acredito que esta autoconfiança não veio tão fácil, precisei reconhecer que rugas, cabelos brancos e pele flácida faziam para do jogo, então procurei explorar outras características de mim mesma, como estar envolvida com novos projetos, corpo hidratado e cheiroso, e muitos encontros com amigos. Enfim, termino aqui te parabenizando, texto muito bem escrito.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *