A solidão LGBTQIA+

solidão sob a luz do arco-íris

Tenho pensado muito na solidão e como vivemos em tempos em que ela vem nos definindo. Não preciso ir muito longe para perceber a solidão. Ela está aqui. Ela está nas entrelinhas de nossos likes e lives. A solidão espetacularizada.

A solidão parece ter sido companhia persistente em nossas vidas LGBTQIA+. E os aplicativos de “pegação”, sobretudo entre os homens cis gays, tornam essa experiência ainda mais abismal.

A solidão não é necessariamente uma instância de isolamento, como nos fez crer a pandemia. Não. Ela é na verdade a sensação de não ser percebida/e/o, de não ser escutada/e/o, de não ser mais objeto de afeto. Em suma, é a nossa impossibilidade de estabelecer trocas afetivas uns com os outros.

A solidão em nosso tempo tem a característica de um profundo narcisismo que precisa ser sempre reiterado, na mesma lógica dos feeds, sempre infinitamente inacabados. Portanto, a solidão em nosso tempo é um exagero do eu em detrimento do outro, já que, qual é o espaço que temos – de fato – para troca se a todo momento estamos apenas anunciando e colocando os holofotes sobre nós?

O corpo “likezado” é o corpo solitário.

A indústria da imagem, que outrora pareceu eleger uma estética lgbt, se tornou a nossa inimiga, ainda mais quando se aliou aos padrões de beleza consumíveis e embaláveis.

A experiência da solidão lgbtqia+ também traz consigo a marca de uma sociedade que ainda não legitima nossos afetos como uma relação de pertencimento social pleno. A heterocisnormatividade e sua lógica binária ainda nos exclui. Ainda muitos lgbtqia+ vivem secretamente seus afetos em espaços privados ou marginalizados, isso dá a sensação permanente de solidão, já que ela é a não-troca.

É claro que existe uma experiência positiva de solidão, que muitos preferem chamar de solitude. A solidão positiva que me refiro é aquela que nos internaliza, nos coloca em amplitude perante a nossa paisagem interior, que nos ajuda a desenvolver repertórios simbólicos mais plenos e que ocupam espaços sazonais em nossas relações a fim de as melhorar.

Mas não é essa solidão que estamos vivendo!

Outra característica que a solidão lgbtqia+ carrega, que também é a marca das relações humanas como um todo em nossa atualidade, é a liquidez dos afetos. Quando digo relações líquidas, estou fazendo deliberadamente uma referência ao pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman, que apresentou como nosso tempo, aliado ao processo de globalização em rede, propiciou modos de nos relacionarmos em que pactos mais duradouros escorrem pelas mãos, ou seja, são inexistentes.

A solidão lgbtqia+ tem também o sintoma da extrema rotatividade afetiva, na ideia de um sujeito que se vê sempre melhor e mais merecedor do que qualquer outro, ou seja “essa relação está muito ruim” ou “ele não me valoriza o suficiente”, ainda “há caras/garotas mais interessantes, bonitos/as/es que ele/ela.” Na ideia de que tudo é profundamente descartável. Sendo assim, a não consideração pelo afeto alheio e a não responsabilidade emocional vai demarcando ainda mais esse sentimento de estar sozinho/a/e.

A solidão lgbtqia+ começa logo quando o sujeito se percebe não-hétero e/ou não-cis. E essa experiência vai se ampliando cada vez mais, já que em suas primeiras relações de troca – a família – se anuncia que não há espaço para os afetos e desejos dela/dele ali. Deste modo, toda a possibilidade de estabelecer uma efetiva alteridade é quebrada. E ainda poderíamos colocar nessa conta questões de classe e étnicos-raciais que ampliam a sensação de pertença e não pertença dos sujeitos em nossa sociedade.

Portanto, a solidão lgbtqia+ é multicausal e que é esgarçada pela lgbtfobia.

Porém, é preciso nos perguntar qual é o antídoto para ela?

Acredito, sem sombra de dúvidas, que é criarmos e valorizarmos o senso de comunidade, tanto no seu sentido local como em um seu sentido ampliado – estado, nação, país e mundo.

Você já reparou o quanto alguns discursos que parecem emergir de nossa comunidade como “não sermos unidos o suficiente” ou ainda “não sou e não curto afeminados” são usados a partir da lógica lgbtfóbica, do mesmo modo que o machismo faz para desunir as mulheres as colocando umas contra as outras? Não que isso signifique passar pano para feridas internas, mas significa que elas não sobrepujam nossas vidas, reivindicações, lutas e conquistadas até aqui.

Precisamos olhar a diversidade de nossa comunidade como uma possibilidade ampliada de troca.

O antídoto é a união e alteridade. É colocarmos a causa LGBTQIA+ acima dos indivíduos, que durante a Parada LGBT fica bem evidente quando todas, todes e todos estão debaixo da bandeira, carregando-a, literalmente.

Por Sérgio Lourenço
para sua coluna Queer-se.

Foto de Barcelos_fotos no Pexels

Respostas de 2

  1. Somaria meu entendimento ao seu e estenderia essa crítica até mesmo às dificuldades em estabelecer relacionamentos amorosos, por parte de alguns, e de saber vivenciar sem maiores medos trocas afetivas entre indivíduos do mesmo gênero. Meu comentário vai mais na direção de que, talvez, pela incapacidade de autoaceitação em função de perceber a própria orientação sexual como vício libidinoso, “pecado” ou algo nesse sentido, um segmento considerável da comunidade cisgênero homossexual pode ter direcionado suas aspirações a relações superficiais, incluindo a preferência por encontros sexuais com várias pessoas em vez de se ater apenas a uma, o que, ao final, pode convergir para o entendimento de não pertencer mesmo a um coletivo maior. Acredito que uma vida inteira vivida dessa forma, somada à ausência de um senso de coletividade, não só concorre para a infelicidade na vida afetiva de muitos rapazes mais jovens que mascaram seu descontentamento com stories e posts ilustrando momentos alegres; algumas vezes em cenas de dar inveja, e para um desenvolvimento progressivo e gradual de uma solidão que, de tão forte, pode culminar em uma depressão maior. Nesse ponto, um indivíduo se torna emocionalmente vulnerável ao ponto de se permitir ser usado ou estabelecer relações afetivas descontentes, de aparências ou insatisfatórias, para tentar suprir uma necessidade maior.

    Enxergo que duas das possibilidades de mudança dessa situação passam por um processo de autoaceitação individual mais facilitado. Entendo que não se enxergar como heteronormativo não torna alguém mais ou menos digno de expressar sua afetividade e de desenvolver uma vida civil pautada por esse afeto alicerçada nos direitos conquistados pela comunidade LGBTQIAP+ com muita luta ao longo de décadas e décadas, e a partir daí, haja o entendimento por parte de cada um que uma vida vivida margeada pelas efemeridades que o individualismo proporciona concorre naturalmente para uma vida solitária. Basta perceber-se dentro dessa problemática e buscar a libertação desse ciclo que, infelizmente, ainda vai consumir e muito a vivacidade de muitas pessoas que, na verdade, não queriam ter seus corpos esculturais resumidos a uma figura libidinosa, uma conta bancária conquistada com muito trabalho, mas vista como chafariz para indivíduos que se relacionam por interesses e coisas desse tipo. Mas, sim, queriam afeto. Só que, infelizmente, uma pequena quantidade é que vai saber se enxergar, se colocar dentro dessa problemática e, a partir desse conhecimento, tomar providência em prol de uma vida mais feliz, mais satisfatória e, acima de tudo, mais afetuosa. Quisera eu estar errado quanto a essa percepção, mas é o que tudo indica todas as vezes em que abrimos apps de relacionamentos e redes sociais para tentar estabelecer novas relações.

  2. Tendo lido justamente essa “segmentação” do idoso gay para o idoso hetero! Será que de fato, há diferença, entre os dois “envelhecimentos”, em desfavor dos gays? Quando comecei a fluidez sexual com um homem de 59 anos, ele comentou, ainda que você tenha 56 anos, mas que pernas hidratadas. Ai comentei das questões “cobradas” ao hetero mesmo sendo maduro: ser provedor, alimentação com menos ingredientes saudáveis e pouco caminhar (mais dirigindo) Será que o gay maduro e idoso não esteja percebendo a baixa atratividade dos homens de sua geração? Muitas vezes a preliminar fica com o que é penetrado e paradoxalmente comandar a transa no sentido de avivar o maduro/idoso “ativo”! Com o período que já nos conhecemos temos nos entrosado melhor, intimamente!

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