O brasileiro diz “celebrar” seus povos nativos, e coloco assim mesmo entre aspas, pois não há essa celebração de fato. Se duvidar, basta ver o que fizemos com eles desde a invasão portuguesa, que ficou maquiada por muito tempo como “descobrimento”. Quase um conto de fadas, não é mesmo? Ainda mais quando éramos crianças e aprendemos a “brincar de índio”.
Portanto, a maneira que interpretamos os indígenas é de uma inocência infantil e etnocêntrica que produziu silenciamento e apagamento de seus paradigmas e modo de vida.
E através desse silenciamento violento sobre os indígenas perdemos também outro referencial de sexualidade que era vivida e celebrada por eles antes da invasão.
A gênese da sexualidade brasileira, a partir da invasão, foi construída pelo estupro e violência e moral eurocêntrica, sendo assim, foi os portugueses que revestiram de vergonha os corpos nativos que aqui encontraram.
João Silvério Trevisan em sua obra “Devassos no Paraíso” (2018) apresenta que ao chegar aqui os colonizadores se depararam com um cenário de fluidez sexual e gênero, tendo a homossexualidade e o travestismo dos índios os chocado, sem ainda mencionarmos a poliandria e a poligamia.
Logo os colonos-invasores trataram segundo sua moral cristã, de educar esses “selvagens”, produzindo sobre seus corpos toda projeção moral “civilizatória”. Por educação não parto do princípio que hoje concebemos, no sentido da aquisição de conhecimentos, mas no sentido em que se impõe sobre um modo de vida, doutrinando corpos por meio do silenciamento e demonização de suas práticas religiosas e sociais.
Com o passar dos séculos muitos povos nativos acabaram por incorporar esse novo paradigma, sobretudo, sobre suas sexualidades, tornando práticas que outrora eram naturalizadas entre eles um tabu e até mesmo extintas e puníveis.
É interessante notar isso, pois revela como ocorre a violência do pensamento eurocêntrico que se coloca como superior moral e epistemologicamente, que naturaliza a heterossexualidade (ideia e conceito que foi produzido a partir do século XIX) e a toma como referência universal que, quando posta sobre os índios, os revestem de uma similaridade infantil e por isso necessitariam da intervenção de uma educação civilizada, do mesmo modo que se faz com as crianças.
O pensamento eurocêntrico sobre os indígenas instaurou o paradigma português da moral baseada no judaísmo-cristão, lógica essa bem distinta das inúmeras cosmologias dos povos nativos que aqui habitavam. Essa lógica cria o pecado sobre outras práticas sexuais, que não a idealizada, que produziu o sexo correto de um sexo criminoso e por isso punições para se manter a nova norma. E a herança desse controle que temos hoje se deve muito a esse pensamento, pois de algum modo sempre estamos esperando que se puna a “promiscuidade” e que assim se limpe a sociedade seus pecados nefandos, não é mesmo?
Portanto, ao olharmos para a nossa história podemos contemplar um cenário muito triste e de opressão sobre a sexualidade brasileira, que em sua originalidade pelos povos nativos oferecia paradigmas muito mais fluidos e generosos do que foi trazido pelas caravelas. E essa opressão não se deu somente no que podemos chamar de práticas sexuais, mas também encontramos o eurocentrismo sobre a produção científica antropológica que apaga a presença das práticas homossexuais em seus relatos etnográficos, criando uma espécie de cenário que nega a sua existência para confirmá-la como anormal e antinatural quando surge na sociedade civilizada. Do mesmo modo que a biologia retirou muitos estudos do comportamento homossexual na maioria dos mamíferos, nos passando a ideia de que o natural é a heterossexualidade que se destina somente a reprodução.
Sendo assim, todos nós, como sociedade perdemos muito quando deixamos que somente o pensamento epistemológico europeu colonizador tivesse a palavra final sobre os nossos corpos e sexualidade. O que nos leva a pensar: que tipo de ganhos se teria, se tivéssemos tido nortes diferentes na produção do conhecimento e das práticas sexuais a partir do ponto de vista nativo? Será que teríamos produzido uma sociedade mais fluída e menos binária? Será que ao invés da culpa seríamos conduzidos para as possibilidades? Será que a lgbtfobia existiria?
Para ver mais textos de Sérgio Lourenço, confira sua coluna Queer-se.
Imagem de TNeto por Pixabay
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