Resumo: Este ensaio apresenta uma crítica ao capitalismo contemporâneo ao tratar o dinheiro como objeto de adoração em um culto moderno. Inspirado nas reflexões de Walter Benjamin e Karl Marx, interpreta o capitalismo como uma religião sem descanso, no qual o consumo e a ostentação de símbolos de status assumem o papel de rituais de fé. A metáfora bíblica do bezerro de ouro é central para a análise, ilustrando a transformação do dinheiro em um ídolo, cuja adoração gera uma perpétua sensação de dívida e insatisfação. A argumentação destaca o papel da mídia como um agente disseminador dessa religião, moldando valores e comportamentos ao propagar a idolatria do consumo. A teologia da prosperidade e os coaches contemporâneos, que atuam como novos sacerdotes, reforçam a crença de que o sucesso financeiro é o único caminho para a realização pessoal. Contrastando essa lógica, o ensaio invoca o discurso de José Mujica na ONU, em que o ex-presidente do Uruguai desafia o culto ao dinheiro e clama por uma vida baseada na simplicidade e na solidariedade. Finaliza com uma reflexão sobre o impacto desse culto na subjetividade moderna, defendendo a necessidade de uma revolução ética que priorize o bem-estar humano e a sustentabilidade, em vez da acumulação incessante de riqueza.
“O capitalismo é provavelmente a mais extrema forma de um culto de adoração que jamais existiu. Dentro deste sistema, o culto é contínuo e incessante, sendo celebrado sem descanso e sem misericórdia, não sendo limitado a dias específicos, mas sendo uma atividade diária e constante. O capitalismo é um culto puramente celebrativo, sem ‘dogma’ ou ‘teologia’. Ele só conhece o culto, e os seus participantes vivem numa incessante tentativa de se conformar às suas normas e expectativas, numa perpétua sensação de dívida, que não pode ser expiada e da qual não há redenção.” (BENJAMIN, 2012, p. 364).
O mito, ao longo da história humana, tem desempenhado um papel fundamental como uma poderosa metáfora da condição social. Os mitos não são apenas narrativas antigas ou lendas, mas reflexos simbólicos e arquetípicos das complexidades e desafios enfrentados pelas sociedades em diferentes períodos históricos. Joseph Campbell define mito como: “Um mito é uma história que se refere a um evento que ocorreu no tempo primordial, quando o mundo ainda não havia adquirido a forma que conhecemos hoje, e que revela verdades eternas.” (Campbell, 1990, p. 37).
Os mitos frequentemente abordam questões profundas sobre a vida, a morte, o bem e o mal, o destino humano e o papel dos indivíduos na sociedade. Eles proporcionam um meio através do qual as sociedades exploram e dão sentido às experiências humanas universais. Muitas vezes, os mitos são reinterpretados ou subvertidos para criticar as estruturas de poder, as injustiças sociais e os problemas contemporâneos. Autores e artistas frequentemente utilizam os mitos como metáforas para comentar sobre a condição humana e os dilemas éticos enfrentados pelas sociedades modernas.
Mito não é apenas uma história do passado distante; é uma poderosa metáfora simbólica que continua a moldar nossa compreensão da condição social e cultural, oferecendo insights profundos sobre quem somos, de onde viemos e para onde podemos estar indo como sociedade.
No livro do Êxodo, capítulo 32 do Antigo Testamento, encontramos um relato emblemático que ilustra a condição humana em relação aos mitos. Após Moisés subir ao monte Sinai para receber os Dez Mandamentos de Deus e se ausentar por quarenta dias, o povo de Israel, impaciente com sua demora, solicitou a Arão, irmão de Moisés e sumo sacerdote, que fizesse um ídolo para adoração. Arão então instruiu o povo a trazer suas joias de ouro, das quais derreteu o ouro e moldou um bezerro. Ao ver o bezerro de ouro, o povo proclamou: “Este é o teu deus, ó Israel, que te fez subir da terra do Egito” (Êxodo 32:4).
Os israelitas então ofereceram sacrifícios e realizaram uma festa em adoração ao bezerro de ouro. Deus, vendo esta idolatria, ficou irado e disse a Moisés que descesse imediatamente, pois o povo havia se corrompido. Moisés desceu do monte, viu a idolatria do povo e, com grande indignação, quebrou as tábuas dos Dez Mandamentos que havia recebido de Deus. Ele queimou o bezerro de ouro, moeu-o até virar pó, misturou com água e fez os filhos de Israel beberem da água contaminada pelo pó do bezerro.
Após isso, Moisés convocou aqueles que ainda estavam fiéis ao Senhor e comandou que eles passassem pelo acampamento matando cada um o seu irmão, amigo e parente para que a maldição sobre eles fosse retirada do acampamento do povo.
A história do bezerro de ouro no livro do Êxodo é um exemplo clássico de idolatria. Idolatria, de acordo com a teologia, é o ato de atribuir a uma imagem, objeto ou entidade criada pelo homem a adoração, devoção ou reverência que é devida somente a Deus. No contexto bíblico, idolatria é vista como uma grave transgressão contra o mandamento de não ter outros deuses além do Deus verdadeiro.
No caso do bezerro de ouro, os israelitas se desviaram de Deus ao adorarem uma imagem feita por mãos humanas, mesmo após terem sido testemunhas dos grandes milagres e da libertação que Deus lhes concedeu do Egito. A idolatria não se limita apenas a imagens esculpidas; pode incluir qualquer coisa que substitua ou desvie a devoção e a lealdade exclusivas a Deus, como riquezas, poder, fama, ou mesmo ideologias e filosofias que são colocadas acima dos princípios e mandamentos divinos.
A história do bezerro de ouro no livro do Êxodo oferece uma emblemática ilustração da condição na sociedade contemporânea. Ao adorar o bezerro de ouro, os israelitas não apenas desobedeceram ao seu Deus, mas também demonstraram como a espiritualidade pode ser distorcida para saciar a ambição. Essa narrativa mítica pode ser usada como uma metáfora para a idolatria do dinheiro na sociedade contemporânea
Assim como os israelitas atribuíram poder divino a uma estátua de ouro, muitos na sociedade atual atribuem um valor sagrado e mágico ao dinheiro. O dinheiro, como o bezerro de ouro, é uma criação humana. No entanto, ele frequentemente é visto como a solução para todos os problemas, a chave para a felicidade, e o principal objetivo da vida. O culto ao dinheiro é uma forma de idolatria moderna.
Ao adicionarmos o conceito de fetiche, aprofundamos nossa compreensão de como o dinheiro pode ser investido de significados que vão muito além de seu valor material. A idolatria, conforme descrito na história do bezerro de ouro, é o ato de atribuir uma devoção excessiva a algo criado, deslocando a reverência que deveria ser reservada ao divino. Na sociedade contemporânea, o dinheiro frequentemente ocupa esse lugar, sendo visto não apenas como um meio de troca, mas como um fim em si mesmo, capaz de proporcionar poder, status e segurança.
O conceito de fetiche, por sua vez, é amplamente discutido por Karl Marx em seu estudo do fetichismo da mercadoria. Marx argumenta que, no capitalismo, as mercadorias são fetichizadas quando o valor social das relações de produção é transferido para os objetos produzidos, de modo que as relações entre pessoas assumem a forma de relações entre coisas. Assim, o dinheiro e as mercadorias ganham um poder quase místico, sendo vistos como portadores de valor intrínseco e poder: “A forma mercadoria é, na verdade, o fetiche característico deste modo de produção.” (Marx, 2017, p. 76).
Quando aplicamos o conceito de fetiche ao dinheiro, entendemos que o dinheiro não é apenas um meio de troca ou um indicador de valor econômico. Ele se torna um objeto investido de significados que vão além de sua função prática. O dinheiro, nesse sentido, é fetichizado quando as relações sociais e o trabalho humano que ele representa são ocultados, e o próprio dinheiro é visto como a fonte de valor e poder.
Os cartões de crédito de alta classe, como os cartões de platina ou diamante, são vistos como símbolos de status. Possuir um desses cartões não é apenas uma questão de conveniência financeira, mas uma demonstração de sucesso e prestígio. O valor simbólico do cartão supera sua função prática de pagamento. Mesmo sem acesso a cartões de crédito exclusivos, muitas pessoas da classe média baixa e dos pobres aspiram possuir tais símbolos de status. Elas podem se endividar em busca de cartões de crédito que ofereçam benefícios, acreditando que isso eleva seu status social. Instituições financeiras frequentemente oferecem crédito fácil a essas populações, atraindo-as com a promessa de acesso a um estilo de vida mais elevado. Isso leva ao endividamento, com as pessoas acreditando que possuem mais poder financeiro do que realmente têm.
Um relógio de marca como Rolex é frequentemente associado ao sucesso e à riqueza. Embora sua função prática seja marcar o tempo, seu valor como símbolo de status e poder social eclipsa seu uso funcional. A busca por relógios de marcas renomadas, mesmo que sejam réplicas baratas, reflete o desejo de se associar ao luxo e ao sucesso. Esses itens são comprados não pela funcionalidade, mas pelo que representam socialmente.
Carros como Ferrari, Lamborghini ou Tesla são comprados não apenas pela sua utilidade como meio de transporte, mas como símbolos de status e poder. O proprietário de um carro de luxo é muitas vezes visto como bem-sucedido e influente, independentemente de quanto ele realmente utilize o carro. publicidade e a cultura popular glorificam a posse de carros luxuosos, criando um ideal aspiracional. Mesmo que não possam comprar esses carros, muitos gastam além de suas possibilidades em veículos que possam exibir como símbolo de status. A indústria automotiva oferece financiamentos longos e prestações acessíveis para atrair consumidores de menor renda, levando muitos a se comprometerem financeiramente para adquirir um carro que simbolize sucesso.
Itens de grife, como roupas da Gucci, Prada ou Louis Vuitton, são valorizados não apenas pela qualidade, mas pela associação com um estilo de vida luxuoso e exclusivo. A posse dessas roupas é uma maneira de demonstrar riqueza e bom gosto. A pressão para se vestir com roupas de grife, mesmo que compradas em liquidações ou de segunda mão, é intensa. Muitas pessoas da classe média baixa e dos pobres investem em roupas de marca para parecer bem-sucedidas e aceitas socialmente. Compras a crédito de roupas de marca podem levar ao endividamento, tudo para manter uma aparência de sucesso e estilo.
Bitcoin e outras criptomoedas são frequentemente vistas como portadoras de um valor quase místico. A volatilidade e a especulação em torno das criptomoedas tornam seu valor mais uma questão de fé no sistema do que de seu valor intrínseco ou utilidade. As criptomoedas atraem muitas pessoas de baixa renda com a promessa de enriquecimento rápido. A falta de conhecimento e a esperança de uma mudança rápida de vida fazem com que invistam em criptomoedas, muitas vezes sem compreender os riscos. A vulnerabilidade financeira pode levar muitos a caírem em esquemas fraudulentos relacionados a criptomoedas, na esperança de escapar da pobreza.
Propriedades em locais exclusivos, como mansões em Beverly Hills ou apartamentos em Manhattan, Leblon ou Brooklin são valorizadas não apenas pelo espaço e conforto que oferecem, mas pelo status que conferem a seus proprietários. A posse de imóveis em áreas valorizadas é um sonho alimentado por muitas pessoas de baixa renda. Elas se comprometem com longos financiamentos, acreditando que a propriedade de um imóvel de luxo trará estabilidade e prestígio.
Viagens a destinos exóticos e estadias em hotéis cinco estrelas são vistas como sinais de sucesso. O valor dessas experiências está Mesmo que não possam bancar viagens luxuosas, muitas pessoas da classe média baixa e dos pobres fazem sacrifícios financeiros significativos para realizar viagens que possam exibir nas redes sociais, buscando a validação e o prestígio associados a essas experiências. tanto na ostentação da capacidade financeira quanto no prazer real das viagens. Utilizar crédito para financiar viagens, mesmo que modestas, é uma prática comum, levando muitas vezes ao endividamento.
Participar de eventos exclusivos, como leilões de arte ou festas de elite, é uma forma de demonstrar status. A presença nesses eventos é uma maneira de se associar a uma classe social elevada, e o dinheiro gasto é visto como uma demonstração de poder e influência. Participar de eventos exclusivos, mesmo que isso signifique gastar além das possibilidades, é uma forma de sentir-se parte de um grupo privilegiado. A busca por inclusão social leva ao investimento em experiências que simbolizem status.
O fetiche do dinheiro exerce um poderoso fascínio sobre a classe média baixa e os pobres, que, na busca por ascensão social e reconhecimento, se envolvem em práticas de consumo e endividamento que refletem a adoração moderna ao dinheiro. A pressão para possuir e ostentar símbolos de status leva muitas pessoas a sacrificarem sua estabilidade financeira, perpetuando um ciclo de consumo e dívida. Reconhecer esses mecanismos é essencial para promover uma visão mais crítica e equilibrada sobre o verdadeiro valor das coisas e a importância das relações humanas e da saúde financeira.
Assim como os israelitas viram no bezerro de ouro uma divindade, a sociedade moderna muitas vezes vê no dinheiro uma fonte de poder e significado quase místicos. Esse fetiche do dinheiro obscurece as relações sociais e de produção que o dinheiro representa. O valor do trabalho humano, a exploração, e as desigualdades estruturais que permitem a acumulação de riqueza são ocultados pela aparência de poder e valor do dinheiro em s A idolatria e o fetiche do dinheiro têm profundas implicações na sociedade moderna. A idolatria do dinheiro leva à ganância, ao consumismo desenfreado e à corrupção moral. Pessoas são valorizadas pelo que possuem em vez de quem são, e a busca incessante por riqueza pode levar ao esgotamento pessoal e ao isolamento social.
O fetiche do dinheiro agrava essas questões ao ocultar as relações de exploração e desigualdade. Quando o dinheiro é fetichizado, as injustiças econômicas e sociais são naturalizadas, tornando-se invisíveis ou inevitáveis. A desigualdade é vista como uma consequência natural das diferenças individuais de mérito ou esforço, em vez de ser reconhecida como uma construção social e econômica. Quando idolatramos o dinheiro e os bens que ele pode comprar, esquecemos das pessoas e dos processos que tornam esses produtos possíveis.
Há também uma correlação entre o patriarcado machista é um sistema social e cultural onde o poder e a autoridade são predominantemente detidos por homens. Esse sistema perpetua a desigualdade de gênero, reforçando estereótipos e papéis tradicionais que subjugam as mulheres e exaltam características associadas à masculinidade hegemônica, como a agressividade, a competitividade e a dominação. Tanto a idolatria do dinheiro quanto o patriarcado machista promovem valores de competitividade e dominação. No patriarcado, a masculinidade hegemônica é frequentemente definida pela capacidade de dominar e controlar, seja em relações pessoais ou no espaço público. De forma similar, a idolatria do dinheiro promove a ideia de que o sucesso financeiro é alcançado através da competição e da dominação dos outros.
No patriarcado machista, as mulheres são frequentemente objetificadas e vistas como submissas aos homens. Essa objetificação se reflete também na idolatria do dinheiro, onde tudo pode ser monetizado e reduzido a um objeto de troca. A lógica do mercado transforma relações humanas e valores éticos em meras mercadorias, perpetuando uma visão utilitarista das pessoas.
Ambos os sistemas perpetuam desigualdades profundas. A idolatria do dinheiro exacerba a desigualdade econômica, criando uma divisão clara entre os “bem-sucedidos” e os “fracassados” economicamente. Da mesma forma, o patriarcado machista cria e mantém uma hierarquia de gênero que privilegia os homens e marginaliza as mulheres. Essas desigualdades se reforçam mutuamente, com mulheres frequentemente encontrando barreiras adicionais para alcançar sucesso econômico devido a discriminações baseadas em gênero.
Ambos os sistemas resultam em alienação e desumanização. A idolatria do dinheiro pode levar à alienação das pessoas de seu próprio trabalho, de seus relacionamentos e de si mesmas, visto que a busca incessante por riqueza se torna o objetivo principal. Da mesma forma, o patriarcado machista aliena homens e mulheres de suas capacidades e potencialidades humanas plenas, ao confinar ambos a papéis restritivos e estereotipados.
A cultura de consumo, impulsionada pela idolatria do dinheiro, também reforça ideais de masculinidade hegemônica. Produtos e serviços são frequentemente comercializados de forma a apelar aos desejos de poder, controle e status, que são valores centrais na masculinidade hegemônica. A publicidade e a mídia promovem esses ideais, perpetuando um ciclo de consumo e dominação que beneficia o patriarcado machista.
Nesse cenário emerge a “religião a la carte” em que a questão religiosa passa a ser opcional, de acordo com a preferência do indivíduo uma vez que assistimos ao desaparecimento das verdades de fé e ao crescimento da emergência da subjetividade para normatizar a experiência religiosa que passa a ser privatizada oferecendo ao fiel-consumidor no mercado religioso bens como: cura de doenças, realização no amor, sucesso dos negócios, cotidiano sem angústias, superação de problemas e o sentido da vida. Trata-se da Religião do consumo conforme a reflexão de Frei Betto:
Essa apropriação religiosa do mercado é evidente nos shopping-centers, tão bem criticados por José Saramago em A Caverna. Quase todos possuem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. São os templos do deus mercado. Neles não se entra com qualquer traje, e sim com roupa de missa de domingo. Percorrem-se os seus claustros marmorizados ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Ali dentro tudo evoca o paraíso: não há mendigos nem pivetes, pobreza ou miséria. Com olhar devoto, o consumidor contempla as capelas que ostentam, em ricos nichos, os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode pagar à vista, sente-se no céu; quem recorre ao cheque especial ou ao crediário, no purgatório; quem não dispõe de recurso, no inferno. Na saída, entretanto, todos se irmanam na mesa “eucarística” do McDonald’s.(Betto) [1]
Na sociedade moderna, o dinheiro é elevado ao status de divindade. Esta nova religião é o capitalismo, onde o sucesso e a riqueza representam a utopia, o equivalente ao Reino de Deus. O consumo se torna o ritual central, e a ostentação de símbolos como cartões de crédito, carros luxuosos, joias e outros objetos de consumo são os ícones sagrados. O sacrifício exigido é o trabalho incessante e, muitas vezes, o endividamento. A teologia da prosperidade serve como a teologia dessa religião, enquanto coaches e pastores modernos atuam como os novos sacerdotes.
O dinheiro, como um Deus, é visto como a fonte última de poder, segurança e felicidade. Ele é onipresente nas aspirações das pessoas e onipotente na sua capacidade de transformar vidas. A devoção ao dinheiro guia decisões e ações, prometendo uma vida de abundância e prestígio para aqueles que lhe dedicam sua fé e esforço.
O capitalismo, a religião dominante, estabelece dogmas que definem o sucesso em termos de acumulação de riqueza. Este sistema promete um Reino de Deus materializado na forma de sucesso e riqueza, uma utopia onde a felicidade é comprada e a realização pessoal é medida pelo saldo bancário. O objetivo final é alcançar esse estado ideal, muitas vezes apresentado como um destino universalmente desejável.
O consumo é o ato ritualístico central desta religião. Participar do consumo é uma forma de adoração, um meio de se conectar com o Deus Dinheiro e buscar a utopia prometida. As compras frequentes, a aquisição de bens e a exibição desses bens são atos de fé que reafirmam a crença no poder do dinheiro. Cada transação é uma oração, cada compra uma confirmação da fé.
Os símbolos sagrados desta religião incluem cartões de crédito, carros de luxo, joias e outros objetos de consumo. Exibir esses símbolos é uma forma de adoração pública, um sinal visível de sucesso e de benção recebida do Deus Dinheiro. A ostentação é tanto um ato de devoção quanto uma demonstração de status, reforçando a hierarquia social baseada na riqueza.
Para alcançar a utopia prometida, os devotos são chamados a fazer sacrifícios. O trabalho incessante, frequentemente em detrimento da saúde e das relações pessoais, é um desses sacrifícios. O endividamento, visto como um meio necessário para participar dos rituais de consumo, é outro. Assim como os sacrifícios religiosos tradicionais implicam renúncia e sofrimento, os sacrifícios exigidos pelo capitalismo podem levar ao desgaste físico e emocional, e à escravidão financeira.
A teologia da prosperidade serve como a teologia desta religião, pregando que a fé no Deus Dinheiro e a adesão aos rituais de consumo trarão bênçãos materiais. Coaches e pastores modernos, como Tony Robbins (aproximadamente 14,88 milhões de seguidores nas redes sociais), Brendon Burchard (aproximadamente1,1 milhões de seguidores), Marie Forleo (aproximadamente 660 mil seguidores), Mel Robbins ( aproximadamente 1,5 milhões de seguidores), Robin Sharma (aproximadamente 1,7 milhões de seguidores), Jay Shetty (aproximadamente 11,4 milhões de seguidores), Gabrielle Bernstein (aproximadamente 1 milhão de seguidores), Eric Thomas (aproximadamente 2 milhões de seguidores), Lewis Howes (aproximadamente 1,5 milhões de seguidores), Tim Ferriss (aproximadamente 1,2 milhões de seguidores), Gustavo Cerbasi (aproximadamente 1 milhão de seguidores), Flávia Melissa (aproximadamente 290 mil seguidores), José Roberto Marques (aproximadamente 250 mil seguidores), Lair Ribeiro, Paulo Vieira (aproximadamente 450 mil seguidores), Tathiane Deândhela (aproximadamente 100 mil seguidores), Roberto Shinyashiki (aproximadamente 350 mil seguidores), Ana Tex (aproximadamente 150 mil seguidores, Marcia Luz (200 mil seguidores), Pablo Marçal (aproximadamente 1,3 milhões de seguidores), entre outros, atuam como os novos sacerdotes da religião monoteísta que idolatra o dinheiro. Eles guiam os fiéis no caminho para o sucesso financeiro, prometendo que, com a atitude correta e as ações apropriadas, qualquer um pode alcançar a utopia de riqueza e prosperidade.
Os coaches, novos sacerdotes do Deus dinheiro, com suas palestras e programas de coaching, desempenham o papel de sacerdote, oferecendo ensinamentos e estratégias que prometem abrir as portas para o Reino do Dinheiro. Ele prega que o trabalho duro, a mentalidade positiva e a adesão às práticas de consumo são os caminhos para receber as bênçãos do Deus Dinheiro. Seus seguidores, como fiéis devotos, participam de seus cultos modernos, aprendendo a venerar o dinheiro e a seguir os preceitos do capitalismo.
Na sociedade capitalista contemporânea, o consumismo tem se mostrado uma característica fundamental e um valor cultural onipresente. Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro se transformar em mercadoria e ninguém pode assegurar sua subjetividade sem reativar, ressuscitar e recarregar, de maneira infinita, as habilidades esperadas e devidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito” e a maior parte do que essa subjetividade lhe possibilita alcançar concentra-se num esforço interminável para que ela mesma se torne, e permaneça, uma mercadoria vendável. (Bauman, 2008, p. 20).
Para ingressar de maneira competitiva no mercado, é preciso sair da invisibilidade, destacar-se da massa. Não causa estranhamento, portanto, que o sonho alimentado por muitos é o de conquistar fama a todo custo, como se esse fosse o verdadeiro sentido da vida e a única chance de atingir a felicidade. Ser famoso significa, simplesmente, aparecer em milhares de revistas, milhões de telas, ser notado e comentado. Isso é crucial para, finalmente, ser desejado, cobiçado, como pretendem todas as mercadorias: “numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fada” (Bauman, 2008, p. 22). Em um tempo altamente estetizado, ser invisível é equivalente à morte.
Para o indivíduo-mercadoria não é suficiente mostrar sinais de riqueza, poder e sucesso, é preciso ostentá-los. E cabe às redes sociais exibirem-nos. De acordo com a proposição de Bauman (2008), na sociedade capitalista contemporânea, o consumismo é uma característica essencial e um valor cultural onipresente. Na sociedade de consumidores, ninguém se torna sujeito sem ser uma mercadoria vendável. Para entrar no mercado de maneira competitiva, é preciso deixar de ser invisível. Desse modo, o sonho alimentado por muitos é o de conquistar fama a qualquer custo para destacar-se da massa e o primeiro passo é ser visível, é preciso ser notado e comentado, para depois ser desejado e cobiçado como todas as mercadorias. É assim que se constroem os sonhos.
Na metáfora em que o dinheiro é Deus e o capitalismo é a religião, a mídia assume o papel da “boca de Deus”, expressão usada pelo sociólogo Muniz Sodré. Ela é o principal canal de comunicação que dissemina os dogmas dessa religião, seduzindo e convertendo novos fiéis. Através de mensagens constantes e poderosas, a mídia molda percepções, valores e comportamentos, promovendo o culto ao dinheiro e ao consumo.
A frase de Muniz Sodré, que associa a mídia à “boca de Deus”, é uma metáfora poderosa que ressalta a influência e o poder que a mídia exerce na sociedade contemporânea. Na tradição religiosa, especialmente nas culturas judaico-cristãs, a “boca de Deus” simboliza a autoridade suprema e a fonte de verdade absoluta. As palavras atribuídas a Deus são vistas como infalíveis, sagradas e com o poder de moldar a realidade e a moralidade das pessoas.
Sodré utiliza essa metáfora para destacar a posição central da mídia como uma autoridade contemporânea na formação de opiniões, valores e comportamentos. Assim como as palavras de Deus são consideradas verdades absolutas para os fiéis, as informações e narrativas veiculadas pela mídia são muitas vezes aceitas sem questionamento por grande parte do público.
A mídia tem a capacidade de influenciar profundamente como as pessoas percebem a realidade. Notícias, reportagens, programas de entretenimento e publicidade moldam opiniões públicas, crenças e atitudes, de forma semelhante a como as palavras divinas moldam a fé e a moralidade dos fiéis. Como pontua Chuck Palahniuk:
O velho George Orwell entendeu ao contrário. O Big Brother não está assistindo. Ele está cantando e dançando. Ele está tirando coelhos da cartola. O Big Brother está ocupado prendendo sua atenção a cada momento que você está acordado. Ele está garantindo que você esteja sempre distraído. Ele está garantindo que você esteja totalmente absorvido. Ele está garantindo que sua imaginação murche. Até que seja tão útil quanto o seu apêndice. Ele está garantindo que sua atenção esteja sempre preenchida. E ser alimentado é pior do que ser vigiado. Com o mundo sempre preenchendo você, ninguém precisa se preocupar com o que está em sua mente. Com a imaginação de todos atrofiada, ninguém jamais será uma ameaça para o mundo. (Palahniuk, 2012, p. 157).
Em muitos casos, a mídia é vista como a principal fonte de informação e verdade. Assim como os fiéis recorrem às escrituras sagradas para orientação, as pessoas recorrem à mídia para entender o mundo ao seu redor.
Em um mundo pós-moderno no qual o sentido se dissolve como névoa, a mídia ergue-se como a ‘boca de Deus’, proclamando verdades e moldando realidades para os féis perdidos em busca de direção.
A mídia, como a “boca de Deus”, desempenha um papel crucial na propagação da idolatria do dinheiro. Através da publicidade, dos programas de TV, das redes sociais, das notícias e da cultura popular, ela dissemina e reforça os valores do consumismo e da prosperidade material. Ao moldar percepções e comportamentos, a mídia conquista mentes e corações, convertendo milhões ao culto moderno do dinheiro. Reconhecer esse poder e seus impactos é essencial para desenvolver uma visão crítica e equilibrada sobre o valor real das coisas e as prioridades na vida.
A publicidade e a propaganda são as principais ferramentas da mídia para promover a idolatria do dinheiro. Elas criam e difundem imagens de felicidade, sucesso e realização que estão intrinsecamente ligadas ao consumo de produtos e serviços.
Através de campanhas publicitárias, a mídia cria necessidades artificiais, fazendo com que as pessoas sintam que precisam de determinados produtos para serem felizes e bem-sucedidas. Produtos de luxo, gadgets tecnológicos e marcas de moda são constantemente promovidos como essenciais para alcançar o status desejado.
A mídia projeta um estilo de vida idealizado onde o consumo é central. Comerciais de carros de luxo, viagens exóticas e casas opulentas apresentam um mundo onde a felicidade e a realização são alcançadas através da posse de bens materiais. Isso cria uma pressão constante para consumir, mesmo além das capacidades financeiras.
Os programas de TV e as redes sociais funcionam como sermões modernos, onde a mensagem da prosperidade e do consumo é continuamente reforçada. Programas de TV como reality shows de luxo e programas de transformação pessoal frequentemente glorificam a riqueza e o consumo extravagante. Eles mostram um estilo de vida que muitos desejam, mas poucos podem alcançar, perpetuando o ideal do sucesso material.
Nas redes sociais, influenciadores digitais promovem produtos e estilos de vida luxuosos. Com milhões de seguidores, eles se tornam modelos a serem imitados, disseminando a mensagem de que o valor pessoal está ligado ao que se possui. Suas postagens e vídeos são sermões diários que reforçam o culto ao consumo.
A cobertura da mídia sobre negócios, celebridades e cultura popular também contribui para a disseminação da doutrina da prosperidade. A mídia destaca a vida das celebridades, enfatizando suas posses, estilo de vida e consumo. As histórias de sucesso frequentemente se concentram na aquisição de riqueza e bens materiais, apresentando a prosperidade como o objetivo final da vida. Reportagens sobre economia e negócios glorificam o empreendedorismo de sucesso e a acumulação de riqueza. Histórias de “self-made” bilionários são apresentadas como exemplos a serem seguidos, reforçando a ideia de que o valor pessoal e social está diretamente ligado ao sucesso financeiro.
A mídia também influencia a educação e a formação de valores desde cedo, moldando a mentalidade das novas gerações. Publicidade dirigida a crianças e adolescentes inculca desde cedo os valores do consumismo. Brinquedos, roupas e gadgets são promovidos como essenciais para a felicidade e a aceitação social, criando futuros consumidores fiéis. Mesmo o conteúdo educativo muitas vezes carrega mensagens subliminares sobre o valor do dinheiro e do consumo. Programas que ensinam sobre economia pessoal podem, inadvertidamente, promover a ideia de que a riqueza material é o objetivo principal da vida.
A idolatria do dinheiro na sociedade contemporânea é amplamente perpetuada pela mídia, que se torna não apenas a “boca de Deus”, mas também o maestro de um espetáculo incessante de consumo e prosperidade. Como disse Chuck Palahniu, a mídia não apenas vigia, mas entretém e seduz, capturando nossa atenção a cada momento em que estamos acordados. Ela nos distrai com imagens de riqueza e sucesso, alimentando-nos com um incessante fluxo de desejos e aspirações materialistas.
Assim como Orwell observou, o Big Brother moderno não está apenas nos observando, mas nos mantendo ocupados e absorvidos. Ele manipula nossas mentes, garantindo que nossa imaginação murche ao ser constantemente preenchida com imagens pré-fabricadas de felicidade e realização através do consumo. Enquanto somos alimentados com entretenimento e desejos moldados pela mídia, nossa capacidade de pensar criticamente e imaginar alternativas é atrofiada.
Nessa era de consumo desenfreado, ser alimentado pelo espetáculo da mídia é mais insidioso do que ser simplesmente vigiado. Estamos inundados por uma realidade fabricada, onde a busca incessante por riqueza e status nos distrai das questões mais profundas sobre o sentido da vida e a verdadeira realização pessoal. Com nossas mentes ocupadas e nossa imaginação controlada, tornamo-nos peões em um jogo onde o dinheiro é o deus supremo e o consumo seu ritual sagrado.
Portanto, é crucial reconhecer o papel da mídia como um agente central na propagação da idolatria do dinheiro. Somente ao questionar as narrativas e imagens que nos são constantemente apresentadas podemos começar a recuperar nossa capacidade de pensamento crítico e imaginação.
A epígrafe desse ensaio foi extraída do livro “Capitalismo como Religião” de Walter Benjamin. Nele, o filósofo alemão oferece uma perspectiva única e provocativa sobre o capitalismo. Ao reinterpretá-lo como uma forma de culto religioso, Benjamin não apenas critica o sistema econômico dominante de sua época, mas também fornece uma ferramenta analítica poderosa para entender as dinâmicas contemporâneas do capitalismo global. Sua análise ressalta a necessidade de repensar e desafiar as formas como vivemos e nos relacionamos com o mundo econômico, buscando alternativas que valorizem a dignidade humana e promovam uma vida mais equilibrada e sustentável.
Benjamin propõe uma visão inovadora e crítica do capitalismo ao tratá-lo como um fenômeno religioso. Benjamin argumenta que o capitalismo não é apenas um sistema econômico, mas uma forma de culto que permeia e estrutura a vida social de maneira abrangente e constante.
Benjamin sugere que o capitalismo é “a mais extrema forma de um culto de adoração que jamais existiu”. Diferentemente das religiões tradicionais que têm dias específicos para práticas religiosas, o culto capitalista é contínuo e incessante. Ele invade todos os aspectos da vida cotidiana, exigindo adoração constante e conformidade às suas normas e expectativas.
O culto capitalista é celebrado “sem descanso e sem misericórdia”. Isto significa que, ao contrário de outras religiões que oferecem momentos de pausa, reflexão e misericórdia, o capitalismo exige um compromisso contínuo e implacável. Esse culto incessante resulta em um ciclo perpétuo de consumo e produção, onde os indivíduos estão sempre buscando mais, sem nunca encontrar satisfação plena ou descanso.
Benjamin observa que o capitalismo é um culto “puramente celebrativo, sem ‘dogma’ ou ‘teologia'”. Não há uma doutrina específica ou um conjunto de crenças que os seguidores do capitalismo devem aderir. Em vez disso, o foco está na celebração do próprio ato de consumir e acumular riqueza. Esta ausência de dogma significa que o capitalismo pode se adaptar e absorver diversas culturas e contextos, tornando-se uma força global e versátil.
Uma das características mais marcantes do culto capitalista, segundo Benjamin, é a “perpétua sensação de dívida”. No capitalismo, os indivíduos e as sociedades estão constantemente em dívida, seja financeiramente ou em termos de expectativas sociais e pessoais. Esta dívida não pode ser expiada e não há redenção. Isso cria um estado contínuo de ansiedade e insuficiência, onde as pessoas sentem que nunca fazem o suficiente, nunca têm o suficiente, e nunca são boas o suficiente.
Ao caracterizar o capitalismo como uma religião, Benjamin faz uma crítica profunda ao sistema capitalista. Ele destaca como este sistema cria um estado de alienação e desespero, semelhante ao que Max Weber descreveu como a “jaula de ferro” da racionalidade burocrática. A crítica de Benjamin se estende à forma como o capitalismo transforma todas as esferas da vida humana em mercadoria, minando valores humanos essenciais como solidariedade, compaixão e espiritualidade.
A Heresia de Mujica: Desafiando a Religião do Dinheiro na ONU
Toda religião cria seus sacerdotes, mas, também cria, em oposição seus hereges. A palavra “heresia” tem suas raízes no grego antigo hairesis (αἵρεσις), que originalmente significava “escolha” ou “opção”. No contexto religioso, ela passou a designar uma escolha ou doutrina que se desvia dos ensinamentos oficiais ou ortodoxos de uma determinada religião.Na tradição cristã, heresia refere-se especificamente a crenças, ensinamentos ou práticas que contradizem os dogmas estabelecidos pela Igreja. Ao longo da história, indivíduos ou grupos que propunham ideias consideradas divergentes da doutrina oficial eram rotulados como hereges e muitas vezes perseguidos por isso.
O conceito de heresia vai além da religião, podendo também ser utilizado em contextos filosóficos, políticos ou sociais, sempre com a ideia de que o herético está indo contra uma verdade ou consenso amplamente aceito por uma instituição ou grupo dominante.
No palco global da Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2013, um dos discursos mais memoráveis foi proferido por José “Pepe” Mujica, então presidente do Uruguai. Em um mundo onde o capitalismo é frequentemente tratado como uma religião e o dinheiro como seu deus supremo, Mujica apareceu como um herético, ousando desafiar as normas estabelecidas e questionar os valores centrais da sociedade moderna.
Mujica, com sua simplicidade característica, apresentou uma crítica contundente ao consumismo desenfreado e à idolatria do dinheiro. Ele chamou a atenção para a absurda contradição de um sistema que promove o crescimento econômico incessante às custas do meio ambiente e da dignidade humana. Em suas palavras, “Parece que fomos nós que nascemos para o desenvolvimento e não o desenvolvimento para nós.”
Neste contexto, a metáfora da “religião do dinheiro” se torna particularmente poderosa. O capitalismo, com suas catedrais de consumo e seus rituais de compra e venda, estabelece um dogma onde o sucesso é medido pela acumulação de riqueza e o valor de uma pessoa é determinado pelo seu poder de compra. Mujica, ao criticar essa lógica, se coloca como um herege, alguém que desafia as verdades sagradas do sistema econômico predominante: “Gastamos dinheiro que não temos em coisas que não precisamos para criar uma impressão que não vai durar em pessoas que não nos importam.”
Aqui está um trecho marcante do discurso: “”Nós sacrificamos nossos dias, nossa saúde, nossa natureza, nossas emoções, para ganhar dinheiro. E então, o dinheiro, o que é? Um meio ou um fim? Um meio! Mas parece que se converteu em um fim, e o pior é que o objetivo de vida é ganhar dinheiro. E nós não nos perguntamos: e depois o quê?”(Mujica, 2013).
Mujica argumenta que a verdadeira felicidade e realização humana não podem ser encontradas na busca incessante por bens materiais. Ele propõe, em vez disso, uma vida de simplicidade e solidariedade, onde o bem-estar coletivo é colocado acima dos interesses individuais. Seu apelo é por uma revolução ética que coloca a humanidade e a natureza no centro de nossas preocupações, substituindo o culto ao lucro pela busca do bem comum: “Quando compramos algo, não pagamos com dinheiro, pagamos com o tempo de nossas vidas que tivemos que gastar para ganhar esse dinheiro.”
O discurso de Mujica ressoa como uma heresia precisamente porque ele desafia a ortodoxia de um sistema que idolatra o dinheiro. Em um mundo onde o sucesso é frequentemente medido pela riqueza acumulada, Mujica propõe uma visão radicalmente diferente: uma sociedade onde o valor é encontrado nas relações humanas, na preservação ambiental e na qualidade de vida de todos os seus membros.
Este discurso não apenas questiona a legitimidade da “religião do dinheiro”, mas também convoca uma reflexão profunda sobre nossos próprios valores e prioridades. Mujica nos lembra que o verdadeiro desenvolvimento não é apenas econômico, mas também humano e ecológico. Sua heresia é, na verdade, um chamado à razão, uma súplica para que despertemos do transe consumista e reconectemos com o que realmente importa.
Ao desafiar a sacralidade do dinheiro, Mujica nos oferece uma visão de um mundo onde a felicidade não é comprada, mas cultivada através de comunidades fortes, justiça social e harmonia com a natureza. Seu discurso é uma ousada declaração de que outro mundo é possível, um mundo onde a vida é valorizada mais do que o lucro e onde o amor e a solidariedade triunfam sobre a ganância e a idolatria do dinheiro: “Os pobres não são aqueles que têm pouco, mas os que querem muito.”
Na catedral do capitalismo, onde o dinheiro é adorado e o consumo é a liturgia, resta saber se seremos capazes de erguer altares a valores mais elevados, que nos guiem para além da superficialidade material. Enquanto os novos profetas do ouro pregam o evangelho do consumo, é essencial perguntarmos se poderemos reacender a chama dos valores espirituais, que iluminam o caminho para uma existência mais plena e significativa. O culto ao dinheiro pode parecer irresistível, mas é na coragem de desafiar esse ídolo dourado e abraçar valores eternos que encontraremos a verdadeira redenção de nossas almas. Se o dinheiro é o novo Deus e o capitalismo sua religião, a grande prova de nossa era será abandonar esses ídolos e redescobrir a sacralidade em princípios que transcendem o materialismo desenfreado.
Assim como um oceano em tempestade, onde as ondas de ganância e consumismo tentam nos arrastar, Mujica nos lembra que a verdadeira riqueza reside na simplicidade das águas calmas, onde a vida floresce em harmonia. Se o dinheiro é a âncora que nos prende ao materialismo, suas palavras são o vento que nos guia de volta à essência humana, onde o valor está na dignidade, na solidariedade e na busca por um propósito que transcende o mero acúmulo de riquezas.
À sombra dos templos dourados do consumo, a verdadeira revolução será abraçar valores que nutrem o espírito e desafiar a supremacia do dinheiro como único propósito de vida.
Jorge Miklos
Outubro de 2024
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Jorge Zahar Ed., 2008.
BENJAMIN, Walter. Capitalismo como Religião. In: Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas, v.1. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
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[1] BETTO. Frei. Disponível em https://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed238/opiniao.htm. Acesso em 07.jul.2024.
Foto de capa por Abner Lobo retirado de Pexels