Nessa última semana, celebramos o dia das crianças e como rememorar é criar, resolvi compartilhar as lembranças de um corpo trans/travesti em alguns versos.
Tive a sorte de ser criada pelos meus avôs maternos, cercada por muito amor, carinho e cuidados. Lembro do abraço forte do meu avô, do sorriso largo, do bigode bem cuidado e por vezes sinto o cheiro do seu perfume amadeirado. Vivenciei uma infância muito protegida, não saia para brincar na rua como as outras crianças. Acredito que meus avôs já soubessem que naquela criança habitava uma feminilidade espontânea e tentaram me blindar da cruel sociedade.
Fui uma criança que amava as festas de aniversários, exceto pelos presentes indesejados que eu sempre recebia – carrinhos, caminhões e tratores. Lembro da minha decepção ao abrir os embrulhos grandes e bonitos, na esperança de ter uma boneca dentro deles. Esses brinquedos chegavam e já iam direto para uma caixa de papelão que ficava totalmente isolada no canto da casa. Minha maior diversão – aquele telefone de plástico, que nada mais era do que uma embalagem de um suco horrível vendido na feira do bairro. Com esse telefone me transformava numa senhora secretária, que “trabalhava” em vários consultórios médicos agendando consultas. Tive também um baralho, onde as cartas eram animais de uma floresta. Dei nome a todes, a empoderada dona jacaroá (a mais linda do baralho), sempre muito bem vestida e maquiada, era minha fiel expectadora nos mini shows musicais que eu promovia com o repertório da Eliana.
Como é emocionante pensar na inocência de uma criança e ao mesmo tempo triste, pois a sociedade impõe valores e ideologias descabidas que matam aos poucos a criança interior. Quando somos pequeninos não existem preconceitos, vemos todes iguais, afinal o que importa é a brincadeira e a diversão.
O CIStema rege as regras desde muito cedo e infelizmente não permite “o nosso” brincar. As meninas são condenadas a brincarem com suas cozinhas cor-de-rosa na missão de servir. Os meninos em seus carrinhos e caminhões desbravando o mundo pelo empoderamento machista e opressor. Traumático é pensar que vivemos em um mundo onde cores definem identidade de gênero. Oxalá nos permita que um dia possamos vestir o arco-íris sem que isso interfira em nossa existência.
Nessa sociedade intolerante, usar o lúdico foi uma das formas de sobrevivência. Tive que aprender a empurrar portas com minha dor e amor e usei muito dos artifícios infantis para me fortalecer na jornada. Pensava que dona jacaroá, com seu batom vermelho, estaria vibrando por cada conquista minha.
A complexidade se torna real com a vida adulta, as obrigações, o trabalho, as frustrações com o outro, mas muitas vezes esquecemos que somos responsáveis por essa dificuldade demasiada. Nesse momento, ouço a criança dentro de mim gritando que as coisas são simples, que podemos criar maneiras de seguir mais leves na jornada. Nosso tempo é tão curto para tanta complexidade, então permitam o brincar com olhos voltados ao amor e inclusão.
Desejo a todes brincadeiras divertidas, sorrisos largos e liberdade de existência. Permita-se!
Por Paola Valentina Xavier
para a coluna Paola COM VIDA.
Foto de Karolina Grabowska no Pexels
Respostas de 3
O olhar interior transforma o externo. Lindo texto, bela reflexão ????
???????
Excelente texto, tocante. Saber como pessoas trans pensam e agem na infância e permitir que sejam o que são é um importante passo de reconhecimento e amor.