Uma das coisas que Marx usava como argumento para a revolução proletária que ele tanto queria é o predomínio da razão científica sobre o arcabouço ideológico alemão que nascia em Kant, passava por Hegel e chegava até ele por meio dos seus contemporâneos modernos: socialismo utópico, anarquismo, babovismo. O comunismo nasceria então como uma proposta científica de compreensão da sociedade: um esforço das ciências sociais (que estavam no embrião) e a economia política de entender como funciona a humanidade, a distribuição dos bens e da riqueza, cruzando isso tudo com direitos humanos de inspiração iluminista.
Embora a proposta de Marx não fosse exatamente a de sentar-se, conversar e negociar com a burguesia o fim da exploração do trabalho humano, a ideia era um mundo igual para todos. Mas um mundo igual enxergado pela miopia do pensamento europeu do século XIX. Quem eram esses iguais? Certamente o racismo, o sexismo e o atraso no reconhecimento da diversidade prevaleceriam por mais de um século após a modernidade alemã que levou ao socialismo marxista. O mesmo após a modernidade francesa, inglesa etc. Toda a Europa industrial do século XIX se erguia sobre o alicerce da exploração humana cruel. Os europeus não poupavam os brancos mais pobres, o que fariam então aos não-europeus ao seu redor. A resposta, a própria história nos dá. Marx é contemporâneo do neocolonialismo, mas seu projeto de estado proletário realmente pensaria em dispensar os recursos coloniais e libertar todos os povos e credos do jugo europeu e de sua sanha de lucro capitalista dos anos de 1800? Eu, pessoalmente, creio que não. Quase cem anos após Marx começar a publicar suas ideias é que seu pensamento de fato deu frutos concretos em prol da diversidade. O pensamento europeu, por mais emancipatório que fosse, ao longo do século XIX e XX reconhecia, principalmente, o homem branco, europeu e heterossexual como cidadão pleno de direitos.
A ciência dos anos de 1800 é muito complicada. Ela se apressou em atender as demandas do seu patrono: o estado burguês. E com isso, traz em si os valores burgueses não-científicos. Esse é o motivo de a ciência médica, por exemplo, ter criado categorias patológicas que coincidem com os pecados cristãos. O comportamento “histérico” das mulheres, a homossexualidade como doença, o crime quase sempre como uma degeneração psiquiátrica, além de, claro, motivos médico-biológicos para discriminar por etnia. Não devemos nunca nos esquecer da extrema medicalização e adoecimento da deficiência, algo que até hoje é difícil de superar. Hoje em dia, o adoecimento científico continua atendendo as demandas estatais, embora tenha se afastado da religião, mas isso é assunto para outro texto, outro dia.
Vamos retornar aqui ao esforço científico de agradar o patrão. Isso é muito ciência no início de sua existência como saber nos séculos anteriores. Claro, o rigor científico e filosófico sempre tende a escapar das exigências de quem financia o trabalho científico. Isso porque a ciência do século XIX não pretendia descobrir um mundo para se viver, mas concretizar os ideais burgueses do século XIX, nos quais não cabia o mundo inteiro. Daí o planeta ter de virar o quintal, a oficina, a lavoura e a mina de ouro da Europa. Claro que isso não aconteceu com o sucesso que eles queriam, por isso as guerras mundiais são europeias, a fome mundial tem origem na Europa e tudo mais de ruim que tem acontecido no mundo passa pelo modo europeu de desenvolver seu estilo de vida e consumo.
Nenhum regime de verdade, de fato, depende de um conceito absoluto e transcendente de certeza. Nenhuma verdade existe por si só, ela precisa de duas coisas: um saber positivo que a ratifique, que a comprove e possa atuar nas consciências dos sujeitos, convencendo-os por quaisquer meios. A verdade precisa também de apoio dos poderes instituídos no grupo social. É a tríade verdade-saber-poder que legitima o conhecimento que rege uma sociedade, que fundamenta a sua economia política, que sustenta a sua administração e que promove o bem-estar coletivo. Quando um regime de verdade desses tem uma mudança brusca, tudo pode desmoronar. Por isso que crenças anticientíficas atentam contra a vida, assim como a o poder abusivo justificado pela ciência também atenta contra a vida; do mesmo modo, se o poder não se basear numa verdade viável, as coisas desandam.
E o que isso tem a ver com a luta pelo reconhecimento, pela legitimação da diversidade? Tudo. O reconhecimento da diversidade vem da superação do modelo europeu predatório de pensar e constituir a sociedade, a partir de valores burgueses que usam o cristianismo e as leis civis como forma de legitimação ideológica de modos de pensar e agir ao longo dos séculos que se mostraram muito diferentes do modo científico de compreender a vida.
Por agora, por exemplo, vivemos a ideia falaciosa de que vivemos num mundo individualista. De fato, o individualismo é um efeito de superfície que revela exatamente o oposto. Não podemos ser individuais, termos nossas particularidades e características num mundo regido pelo capitalismo. Ao contrário. O capitalismo nos categoriza, nos coloca em lugares determinados de existência como sujeitos, nos franquia alguma liberdade de escolha e nos constrange quando queremos usá-la com forças sociais mais ou menos intensas, dependendo do caso específico do uso de liberdade que o sujeito deseja. Ao nos fazer individualistas, na verdade, o capitalismo nos coloca numa situação de miopia social. Enxergamos a nós mesmos e a nossos corpos a partir das possibilidades específicas de consumo dadas pelo próprio sistema capitalista. Então não há como viver separado disso, porque não há como se isolar do mundo (prova de que o individualismo é inviável), mas ao mesmo tempo, precisamos acreditar que o desejo que produzem em nós é uma expressão da individualidade e de que temos total controle sobre um mínimo de ações, algo que pode ou não ser verdade, de fato.
Por outro lado, já estamos em via de superar, pelo menos em parte, as crenças supostamente científicas em torno da raça humana, do gênero e da nossa ontologia biológica que justificavam o racismo e o sexismo. Isso é devido ao pioneirismo da luta feminina pela igualdade, cujo impacto na sociedade ainda vai ser sentido por muito tempo. A igualdade entre homem e mulher nos fez perceber que há mais do que dois lados nesse embate e isso permite que hoje possamos lutar para que a diversidade humana possa escapar das bolhas do biologismo, do racismo, do preconceito de gênero e sexualidade, do capacitismo, que envolve tudo isso também. A ciência do século XIX, a mesma que nos trouxe ideias revolucionárias e importantes, precisa ser superada para que entendamos um mínimo do que seja ser humano. Isso não significa negar os ganhos, mas evitar os problemas inerentes a isso.
Para tal, o importante não interromper o trabalho da própria ciência, que se autorregula. É importante também que o financiamento da ciência não se resuma à busca de lucro capitalista ou à sustentação de regimes de poder. A ciência não pode ter peias muito fortes. Mas precisa ter uma muito resistente: a peia da ética. Cabe, portanto aos seus patronos: governos, instituições de ensino de quaisquer naturezas, empresas e outros, o desejo de continuar a desenvolver a ciência, sem medo da verdade. O poder só se amedronta com a ciência quando uma classe quer se sobrepor a outras, e isso, infelizmente, define nossa era mais do que qualquer coisa.
Imagem de Bianca Van Dijk por Pixabay (capa).
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos