Gostaria de começar este texto pedindo licença para falar sobre a não-binariedade, sendo um homem gay cisgênero. Mas considero importante que todos possam falar sobre os diversos temas da atualidade, pois todos possuímos um lugar social. Claro, e quero frisar isto, que a experiência é importante e é o ponto de partida e não deve ser deslegitimada por malabarismos argumentativos, mas todos devem reconhecer seus locais sociais para fazer um amplo debate que realmente questione as estruturas sociais que mantêm o status de dominador e dominado. Com isso quero dizer, um homem branco pode falar em racismo, mas nunca deslegitimar o que é racismo desconsiderando a fala e vivência de uma pessoa negra, por exemplo. Deve ele, antes de tudo, aprender sobre o racismo e ao falar compreender seu local social de homem branco que, direta ou indiretamente, se beneficiou/ia das estruturas racistas que predominam na sociedade brasileira. Dito isto, prosseguimos.
O que hoje tento refletir sobre a não-binariedade é o uso de pronomes neutros para nos referirmos as pessoas que se consideram não-bináries. Muito tenho visto na internet sobre e decidi expor aqui algumas considerações.
A língua portuguesa, assim como outras línguas, é um sistema regrado, ou seja, sua gramática usa-se de regras que nos indicam como a língua se porta e como a devemos usar. Este é um preceito importante para considerar um sistema como língua, tanto que os EMOJIS, ainda que sejam uma linguagem, e isto não podemos negar, não ser considerado (ainda) como uma língua justamente por não compor de um conjunto de regras e ordenamentos. MAS, a questão é que este sistema regrado não é pétreo, ou seja, ele pode ser mutável de acordo com a necessidade da sociedade e sua oralidade. Ora, até alguns anos atrás não tínhamos a palavra presidenta e há alguns anos, regras que antes existiam passaram a não existir após o acordo ortográfico.
A língua é, portanto, algo vivo que carrega toda uma cultura e história daquela sociedade que a fala. Ela possui diversas inferências extralinguísticas e com isso queremos dizer que fatores sociais importam no ato de comunicação que é essencialmente um ato social. É claro que conhecer as regras gramaticas e o uso da norma culta é importante, mas tão mais importante é entender que para além desta convenção, existem outras variações linguísticas que são válidas e fazem parte da complexa sociedade que vivemos. A língua assim reflete a oralidade e não o contrário.
Devemos também refletir como a língua sempre foi uma das múltiplas fontes de dominação, haja vista que as classes dominantes sempre se apropriaram da forma culta de modo a inviabilizar o acesso a ela por classes mais baixas e, ainda por cima, deslegitimar a fala desta classe como sendo algo errado, de menor valor e rude. Há também uma reflexão sobre como a língua auxilia na dominação simbólica do machismo.
O símbolo, que vem de signo, tem referência em sentido, em representação. Pierre Bourdie fala da dominação simbólica do masculino sobre o feminino como aquela dominação que ocorre nas representações sociais, nos simbolismos que cremos serem naturais, frutos de uma espécie de cosmovisão. Ou seja, criados por uma ordenação da natureza, quando na verdade são produtos sociais que visam estabelecer uma ordem do dominador ao dominado, assim sendo, criando uma relação dicotômica de superioridade e inferioridade e não de complementaridade. Embora Bourdie não se debruce especificamente na linguagem, podemos fazer inferências quando pensamos em algumas situações.
A língua portuguesa, como tantas de origem latina, possui em sua gramática uma separação entre gêneros, as palavras representam o masculino e o feminino. Mais do que isso, ela possui um valor qualitativo, não no sentido de adjetivação. Perceba, se em uma sala de aula temos 30 alunos, sendo 10 meninos e 20 meninas, a oração que usaríamos em uma determinada situação seria a seguinte: “todos os alunos estão na sala de aula”. Aqui pouco importa se a maioria seja do gênero feminino, pois o feminino na língua portuguesa é marcado por sua ausência, quanto muito, é marcada pela diferenciação, neste caso não havendo um elemento masculino, eu diferencio na língua. O masculino não precisa de impor, a sua presença é legítima.
Neste caso, é preciso haver uma profunda reflexão em como a fala é marcada por símbolos que deslegitimam a vivência de indivíduos e mantem o status de dominação da classe dominante. Se o gênero neutro não existe na gramática, como dito, ele pode existir a partir do momento que a sociedade, em sua transformação, em sua contínua formação cultural-histórica assim o exigir para legitimar a oralidade daqueles que vivenciam uma nova forma de expressão de gênero que não está em conformidade com um padrão binário entre o que entendemos como masculino e feminino.
Ao usarmos palavras neutras temos um poder simbólico de representação, damos um caráter de corporeidade porque reconhecemos e legitimamos aquele corpo social que se expressa de outra forma. Ele sempre existiu, claro está, mas ele passa a existir num campo simbólico e semântico. Portanto devemos pensar na constituição social da língua e não nos apoiarmos apenas na constituição gramatical de modo a inviabilizarmos a visibilidade não-binárie.
Compreendo que haja um estranhamento e uma confusão inicial, isto faz parte de algo novo, mas é preciso um esforço de entendimento e tudo passa pelo diálogo e empatia de entender algo. Também é preciso ter coragem de enfrentar o mau caratismo que tenta ridicularizar, como tenho visto nas redes sociais, a linguagem não binarie. Não, você não vai começar a falar “este camisete é bonite”. Mas você poderá começar a usar termos neutros como “pessoal”. Só que em um ato comunicacional, em uma conversa, uso de palavras neutras podem, e será, difícil de manter de forma coesa, para isso você deverá usar o “e” ou “u” em palavras para adequar o discurso, você pode também perguntar a pessoa como deve trata-la, o nome e tudo o mais.
Assim, você pode dizer a uma pessoa não binarie “Nossa, você está linde, maravilhose.” Ao invés de somente “incrível”. Perceba que as alterações são poucas e visa garantir a autoestima, a identidade e a vivência do outro sujeito.
Por fim eu recomendo que busque mais informações, leiam/vejam/sigam pessoas não-bináries para compreender através da experiência que “elu” expressa. Procurar como pode adequar a sua fala quando for interagir com uma pessoa não-binarie. O mundo só pode ser um lugar melhor se no ato do diálogo lembramos que a empatia é imprescindível para que isto ocorra.
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Foto de Jameson Mallari Atenta no Pexels
Uma resposta
Interesante e importante reflexão, que o entendimento supere todas as barreiras de comunicação m