A mãe de Ana se ocupava com a massa de biscoitos que ainda insistia pegajosa em suas mãos. Achou melhor colocar mais farinha. Amassou, até que homogênea e amarelada a massa ganhasse vida. Na mesa, aguardava a menina, sorridente e ansiosa para logo mais provar o sabor adocicado das bolachas de manteiga.
Aquele gesto simples, entre mãe e filha, tinha se tornado tradição íntima e silenciosa entre elas. Sábado a tarde era o dia de fazer biscoitos.
Aquele momento na cozinha tinha amigas, mas só nas palavras, lição de casa e escola, mas só nas palavras… Era nas palavras que Ana e a mãe se entendiam.
Quando a mãe levou a massa de biscoito à mesa e pegou as forminhas junto do rolo de madeira, Ana, ao ver que uma das formas lembrava um formato humano, lembrou-se, como um relâmpago, quase a palavra sendo mais rápida que a memória:
— Eu tenho uma amiga que é menino.
“Amiga que é menino?!” pensou a mãe. Por um momento ela respirou, procurando ali na massa do biscoito alguma resposta:
— É mesmo filha? E como chama essa amiga especial?
— É amigo mamãe!
— Ah, é amigo… Então como ele chama?
Ana respondia tudo com tanta naturalidade que sua mãe ficou emocionada pela leveza que emanavam dos poros de sua menina, por um instante segurou um choro que tinha se esquecido, e ouviu com muito carinho o nome do amigo da filha:
— João, mas quando ele nasceu a mamãe dele chamou-o de Joana, mas ele não se importa com isso…
Já embargada em lágrimas falou a mãe:
— É verdade filha, pois o que importa é o amor! – e lhe deu um beijo doce de manteiga na testa.
Ainda não satisfeita, a filha perguntou:
— Mamãe, o que é gene… Genera…
— Você quer dizer, Gênero?
Ana tinha orgulho de ser sabida e respondeu:
— Era isso que estava dizendo mamãe!
A mãe riu por dentro, e achou ser o momento ideal de contar a filha algumas coisas importantes da diversidade que é a vida, por isso, foi até despensa pegar corantes para colocar na massa.
Ana olhava tudo com curiosidade e certa impaciência, pois além de sua mãe estar silenciosa com a resposta ainda trazia na mão cores que lembravam um arco-íris.
A mãe pegou farinha e jogou na mesa, com uma mão pegou um pouco de massa que primeiro enrolou nas mãos e depois foi aberta sobre a mesa enfarinhada com o rolo de madeira. Pegou a forma que lembrava uma pessoa e cortou a massa retirando o homúnculo de trigo, açúcar e manteiga e o colocou de lado. Pegou pequenas porções de massa e as dividiu em quatro pequenas partes, colorindo-as em azul, verde, vermelha e amarelo.
A essa altura Ana estava afoita, quase que emburrando por não ter recebido sua resposta.
Sua mãe sentou na sua frente e mostrou o bonequinho de biscoito cru e disse:
— Esse biscoito é menina ou menino?
Ana muito apressadamente respondeu:
— É menino, ele não tem saia!
— É verdade, mas quando você toma banho filha você toma banho de saia?
A menina levou à mão a cabeça e respondeu: não.
Pois é filha, no fundinho todo mundo é esse biscoito amarelado de manteiga.
Ambas riram, e Ana ainda insistia em sua resposta. E pacientemente sua mãe a conduzia:
— Quando você nasceu a chamamos de Ana, já que o sexo biológico…
— Sexo biológico?
— Sim, filha, sexo biológico é como nascemos… Algumas pessoas nascem com vulva – a mãe de Ana fez uma bolinha de massa vermelha para representar a vulva e em seguida um rolinho para representar – e outras nascem com um pênis!
— Piu-piu e pepeca?
A mãe riu:
— Sim filha, mas o nome certo é vulva ou pênis.
— Então meu amigo João foi chamado de Joana por que ele nasceu com vulva?
— Sim, filha, foi assim… Mas só esse dois pontinhos – ela colocou as massinhas na parte onde ficam os genitais no biscoito – Não são tudo o que a gente sente, pois tudo o que a gente sente está aqui – colocou uma massinha azul no coração do boneco – e também aqui – e com uma massinha amarela colocou uma bolinha de massa na cabeça do boneco!
A filha, ao seu jeito, entendia não entendendo, como se não precisasse entender, mas simplesmente ser e deixar ser, porém muito envolvida com a explicação da mãe.
— Você viu filha que as cores são diferentes entre os pontinhos?
A menina balançou a cabeça afirmativamente.
— Então, seu amigo João é assim, ele tem um pontinho de uma cor embaixo e um pontinho de outra cor na cabeça, o pontinho da cabeça e do coração diz o que ele sente, mesmo que o que ele sente não esteja relacionado ao que ele tem ali embaixo.
A menina estava encantada.
— Têm pessoas minha filha, como a mamãe e o papai que os pontinhos são da mesma cor – e ela fez dois biscoitos de bonequinho com pontinhos monocromáticos – mas tem pessoas que tem os pontinhos coloridos.
Ana então indagou:
— Gênero são pontinhos em nós?
A mãe riu e simplesmente respondeu:
— São pontinhos sim filha, pontinhos que a gente sente que a gente ama que a gente se vê como menina ou menino, já que no final sabe qual pontinho que importa?
Dessa vez foi Ana quem respondeu com um gesto ao apontar o pontinho dos biscoitos a sua frente, todos coloridos e no coração.
Ela abraçou a filha orgulhosa de estar vendo um ser humano ímpar, de uma geração linda, tão diferente da sua.
Ambas colocaram os biscoitos coloridos para assar e depois comeram com chocolate quente, e riram a tarde inteira.
Ao final daquele dia, quando Ana estava na cama, sua mãe chorou secretamente por ver um mundo de pontinhos coloridos, já que um dia ela também teve uma amiga que por seus pontinhos serem coloridos foi assassinada de forma cruel por três homens que diziam ter todos os seus pontinhos monocromáticos, e embora todes fossemos apenas massa de biscoito amarelada, ainda a sociedade matava pelos pontinhos alheios… Por isso, vivam os pontinhos coloridos!
Para ver mais textos de Sérgio Lourenço, confira sua coluna Queer-se.
Ilustração: Leandro Almeida.
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Respostas de 2
Lindo!!! ♥️♥️♥️???
Olá Fábio, Sérgio aqui, autor do texto, fico contente que tenha gostado. Obrigado pelo carinho e pela leitura.