Não foi nada fácil ver o poeta morrer, trinta anos atrás. Especialmente para aqueles que estavam no mesmo barco, navegando os ainda desconhecidos mares da nova doença. Éramos aqueles que haviam embarcado como clandestinos e estavam condenados a assim viver, exceto ele. Ele já havia saído em capas de revistas, por vezes tão sensacionalistas. Ele tinha uma família com recursos diversos, tratamentos nos Estados Unidos e até sangue de cavalo disseram que ele havia experimentado. Se havia um alguém que testaria algo que daria certo, era ele. E ele se foi, levando um pouco da parca esperança que nos amparava. Mas ele levou consigo também a ideia de que éramos mortos vivos, mostrando ao mundo que as pessoas que vivem com HIV também carregam consigo todo o amor que houver nesta vida.
Havia alguns anos que o HIV me rondava, fosse ao se apossar da vida de grandes amigos ou no remorso instantâneo durante uma noitada em algum parque público. Foi durante essa época, quando morava em Sampa, que fui apresentado a Cazuza em um show do Barão Vermelho no Radar Tantã. Mais uma dose, é claro que eu tô a fim. No mesmo show também conheci um repórter platinado que futuramente engrossaria as estatísticas e as notícias sobre os famosos da AIDS. O vírus chegava cada vez mais perto. Até que o amor, meu grande amor apareceu e entre um e outro segredo de liquidificador a camisinha sumiu de cena e o meu tesão virou risco de vida.
A surpresa (surpresa?) do diagnóstico, a tristeza da revelação à família, a rudeza das perícias iniciais no INSS, a dureza de uma vida sem horizontes, tudo ia criando uma estranha zona de conforto, bastante desconfortável, porém eficaz. Se os recursos eram parcos, a esperança era enorme e Cazuza tinha muito a ver com essa esperança. De suas viagens aos melhores centros médicos do mundo sempre vinha um reforço para nossas energias. Ainda estavam rolando os dados. E apesar de já haver perdido, a essa altura, vários amigos por conta da síndrome, sempre mantinha inabalável a certeza de que algo seria descoberto e daria fim ao pesadelo de nos sentirmos cobaias de Deus.
Até que aos sete de julho de 1990 ele encerrou sua temporada terrena. Foi muito difícil ver a tênue linha que nos ligava à Vida sumir assim de forma repentina, por mais que esperada. Se um imortal se foi, o que nos restava, pobres mortais? Muitos, como eu, tivemos nossas mentes turvas por esse pensamento e os excessos nos pareceram a melhor saída nessa hora. Cem gramas, sem grana. Por que é que a gente é assim? Tantos se foram nesse trem pras estrelas, mas outros ficaram para viver a vida, louca vida com HIV. Mas sua morte física, assim como a de todos os imortais, fez com que suas ideias perpetuassem. E Cazuza, como nenhum outro, nos convenceu de que o céu, realmente, faz tudo ficar infinito e que a solidão é pretensão de quem fica escondido, fazendo fita. E mostrou que a felicidade, mais que possível, é imperativa para as pessoas que vivem com HIV. Se estamos, meu bem, por um triz, é melhor fazer o dia nascer feliz.
Porque o mundo é um moinho.
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Respostas de 2
Beto, que narrativa forte, delicada, sensível e cheia de bete balanços. Gostei muito, ainda estou digerindo-a…
Parabéns e muita luz! Luta continua.