O contexto da violência doméstica no Brasil é verdadeiramente alarmante. Somente no período da Pandemia de COVID-19, o registro de ocorrências na Polícia Militar de São Paulo cresceu 44,9%, o mesmo valendo para os feminicídios (46,2%) conforme dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Este cenário é antigo, e remonta a uma tradição social machista e associada a uma visão distorcida do papel da mulher na sociedade. Mesmo com todos os avanços nas últimas décadas, inclusive no aspecto legislativo, os números ainda são estarrecedores.
Em 2006 foi aprovada a Lei 11340, batizada de “Lei Maria da Penha” em homenagem a um símbolo da resistência, a Sra. Maria da Penha Maia, que foi reprimida pelo marido durante seis anos. Em 1983, por duas vezes, ele tentou assassiná-la. Na primeira tentativa, com arma de fogo, deixou- a paraplégica e na segunda por eletrocussão e afogamento. O réu só foi punido depois de 19 anos de julgamento, e permaneceu apenas dois anos em regime fechado.
Quanto ao feminicídio, classificado como um crime de ódio em função do gênero, foi incluso em 2015 no Código Penal como agravante do crime de homicídio, incluindo o contexto familiar.
Desde então, a aplicação desta Lei tem buscado restringir atos de violência. Se estamos falando em gênero de forma ampla, surge a dúvida: a Lei Maria da Penha é aplicável aos casos de violência doméstica em relações homoafetivas?
Aqui temos uma situação ambígua, pois o artigo do Código Penal alterado pela Lei Maria da Penha não diz explicitamente que o crime é praticado somente contra mulher; contudo, as medidas protetivas são restritas às mulheres.
Diante disso, será que é constitucional uma lei que ao saber e reconhecer que o homem também é vítima de violência doméstica, traz medidas protetivas somente para a mulher? Pode tratar de maneira desigual personagens que deveriam ser tratados de maneira igualitária?
A Constituição Federal de 1988 nos apresenta algumas chaves para corrigir esta falha legislativa – reza nossa lei maior que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”; que “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” ; e que “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
Portanto, a Lei Maria da Penha é plenamente aplicável às relações homoafetivas, e esta situação tem sido reconhecida pelos tribunais em todo o país. A partir do momento que o Supremo Tribunal de Justiça ampara o casamento homoafetivo, o entendimento de violência doméstica também passa a ter um sentido ampliado. Partimos, então, do conceito de isonomia, quando a lei deve valer para todos. A lei não deve ser interpretada isoladamente, mas dentro de um ordenamento social e jurídico, que dá proteção às uniões, indistintamente da sua configuração.
Assim, o combate à violência doméstica pode ser aplicado a homens, quando vítimas desta violência, num tratamento igualitário, como manda a Constituição.
Nesta mesma linha de pensamento, é possível a aplicação da Lei Maria da Penha no âmbito de relação homoafetiva entre mulheres, desde que a violência tenha sido praticada em contexto de relação doméstica, familiar ou de afetividade e que haja situação de vulnerabilidade ou de subordinação.
Não há mais dúvidas que as uniões homoafetivas constituem uma unidade doméstica, não importando o gênero dos parceiros. Quer as uniões formadas por um homem e uma mulher, quer as formadas por duas mulheres ou dois homens, todas configuram entidade familiar. Ainda que a Lei Maria da Penha tenha surgido para proteger a mulher, fato é que o conceito de família nos dias atuais é mais amplo, e deve portanto ser interpretada de forma mais abrangente.
Caso queira saber mais sobre este tema, assista a meu vídeo no YouTube:
.Cesar Baldon é Advogado especializado em Direitos LGBTQIA+
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