O Sexo na prateleira do algoritmo

Como é que o sexo se torna objeto de desejo nos dias atuais? Será que o sexo sempre foi desejado da mesma forma como o experienciamos hoje?

Para responder a isso, não é necessário percorrer séculos de história. Basta olharmos para 10 ou 20 anos atrás para começarmos a articular uma reflexão sobre como o desejo — e a forma de desejar o outro sexualmente — mudou. E, nesse percurso, não podemos desconsiderar o impacto das redes sociais em nossas vidas e produção das subjetividades.

A maneira como o sexo é representado nas mídias sociais parece sempre reforçar a ideia de um corpo-objeto, que também é um corpo-empresa: um corpo que se vende, que é esteticamente belo — ou, ao menos, dentro de uma estética do que se entende como belo. Esse corpo ocupa sempre um espaço que nos parece distante da vida cotidiana, mas que se apresenta como um lugar de desejo. Um desejo que, muitas vezes, está situado além do alcance da classe trabalhadora. São corpos e cenários de luxo, quase inatingíveis.

Esse contexto nos envia uma mensagem nada subliminar: se desejamos possuir o objeto outro — e, por consequência, o sexo —, precisamos agora nos tornar esse outro. Um corpo instagramável, desejável, que habita lugares que nós meros proletários não podem ocupar. O sexo, então, passou a exigir a construção de um bem de consumo. Para que se possa vivê-lo, é preciso ocupar um lugar estético e performático, legitimado socialmente.

Com isso, produz-se em nós uma constante sensação de falta, de inadequação, de distância em relação ao ideal. E esse ideal promete, como recompensa final, quase como um troféu, uma vida sexual plena, repleta de prazeres — prazeres reservados àqueles corpos esculpidos por horas e horas de academia, dietas infindáveis, procedimentos estéticos. Só esses corpos, aparentemente, são dignos de gozar.

Isso nos leva à percepção de que o sexo, como objeto de desejo hoje, está sempre no futuro, nunca no presente. Ele está além do agora. Torna-se uma promessa, um prêmio, não mais algo que se desfruta pelo prazer, pela espontaneidade, pelo jogo do olhar, do flerte, do acaso. Não é mais a maravilha de descobrir o corpo do outro — seja esse corpo gordo, magro, alto, baixo — mas sim um ideal estético e social a ser conquistado.

Se outrora desejávamos corpos folheando revistas — como se escolhesse um produto num catálogo da Avon —, hoje vivemos o auge do neoliberalismo e da produção de corpos consumíveis, altamente comercializáveis. Essa é a nova lógica. Essa é a nova subjetividade.

O que estou dizendo é que estamos fabricando uma subjetividade que vai além da questão do sexo, pois já não basta apenas corresponder às nossas próprias expectativas e desejos. Precisamos também incorporar, aparentar e vender, em nós, expectativas externas. Precisamos nos tornar visualmente desejáveis — corpos que se oferecem como mercadoria.

Os aplicativos de relacionamento, especialmente no meio gay, escancaram essa lógica. Nas descrições de perfis, vemos uma prateleira infinita de corpos a serem desejados. Corpos entregues por algoritmos, organizados em catálogos e categorias. Eu, você, todos nós escolhemos com base em atributos que nos agradam — como quem seleciona um novo eletrodoméstico, comparando funcionalidades, buscando aquele que melhor atenda às nossas necessidades. O sexo deixou de ser descoberta. Passou a ser produto. Um produto que precisa satisfazer, exclusivamente, a expectativa individual. Ou seja, ele ainda precisa ser altamente personalizado dentro de uma pasteurização que deve se encaixar dentro de um aplicativo.

Na era em que vivemos, o sexo passou a ser sobre atender às exigências do desejo individual, um desejo moldado por ideais de consumo, estilo de vida e ascensão social. O sexo, articulado pelas redes, também virou capital: fonte de renda, influência, status. Torna-se mercadoria. E com isso, nossa subjetividade perde o lugar da descoberta. Questões essas que já fogem da categoria da prostituição, por exemplo, e que agora adentram um patamar diferente chamado: criador de conteúdo 18+. Percebe?

Vivemos, então, uma transição em que o sexo deixa de ser encontro e passa a ser performance. Não há mais espaço para o mistério, para o imaginário, para o desejo que nasce do não saber. Tudo está exposto — e essa exposição não é, necessariamente, vulgar, mas sim literal: o corpo está à mostra. Não imaginamos mais o contorno de um seio, o tamanho de um pênis, a textura da pele, o som do prazer, se quer podemos imaginar cheiros e gostos. Basta olhar. Basta acessar. Estamos nos mostrando — muitas vezes sem perceber — e, nesse movimento, esquecemos que o erotismo nasce, sobretudo, da imaginação. Estamos matando o erotismo?

Acredito que não estamos apenas matando o erotismo, mas o adiando. Adiando-o para um futuro idealizado. Pensamos: “quando eu tiver o corpo certo, a conta bancária certa, o cenário certo, então poderei gozar como aquele cara do OnlyFans, como aquela pessoa que cria conteúdo de sua vida sexual nas redes”. Por enquanto, resta-nos merecer. O sexo tornou-se meritocrático.

Se há um antídoto para isso, acredito que está em nos posicionarmos criticamente diante do que vemos nas redes sociais.

Precisamos romper com o sexo estético e resgatar o sexo sensorial — aquele que envolve os sentidos, mas também a imaginação.

Ver pornografia, acessar OnlyFans, consumir corpos nas redes não significa, necessariamente erotismo. Precisamos evitar e ir além desse olhar viciado e desenvolver a capacidade de fantasiar. Imaginar o corpo do outro, flertar com a possibilidade, criar imagens a partir de nossa própria subjetividade, e não a partir de referências que nos são impostas.

Sexo acontece dentro de nós. É o encontro entre aquilo que há de gozo em nós com aquilo que há de gozo no outro. Essa troca é que desperta os sentidos. Por isso, é fundamental lembrarmos: o sexo habita duas instâncias — a sensação e a imaginação. Precisamos resgatar uma subjetividade sexual que esteja distante, e desarticulada, da lógica neoliberal de produção de si.

– Sérgio Tadeu Lourenço Junior, Psicólogo Clínico e Terapeuta Sexual.

Foto de KoolShooters

Respostas de 2

  1. Excelente a reflexão que você aponta.Realmente esse sexo quase que inatingível exposto em corpos idealizados e em performaces, muitas vezes engessadas, mata qualquer possibilidade de viver o erotismo e o prazer de forma plena.Tudo, afinal das contas em nosso tempo neoliberal é transformado em mercadorias e nós consumidores.

    1. Olá minha irmã, obrigado pelo carinho de comentar e principalmente em ler o meu texto. Obrigado. Fico contente que meu texto tenha lhe ajudado a refletir sobre isso.

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