Crônica embaçada

Da janela do ônibus que me leva ao trabalho, eu vejo uma manhã embaçada. Nem fria, nem quente, nem mais, nem menos. Um dia como outro qualquer, no clima caótico do cerrado goiano. É abril. Um mês de um ano em que a Páscoa é depois do dia quinze de abril. Feriados se acumulam nessa semana, gerando cinco dias de folga para os funcionários da educação. Estou acordado desde as cinco, mas só me levantei vinte e cinco minutos depois, levando meu corpo acordado de cômodo a cômodo do apartamento, até que me vi na rua, no ponto de ônibus, pegando mais uma vez a condução numa manhã esquisita, nublada, mas ainda não chuvosa. Um vento frio me fustiga, mas nem compensaria ter colocado agasalho, pois eu sei que o calor tornaria a manhã desconfortável demais para usar mangas longas. Meus olhos veem a paisagem que já conheço da janela, sob o filtro do dia que insiste em não nascer, detrás de cortinas de nuvens ainda incertas.

Desço do ônibus para trocar de linha, pego um atalho de cinco minutos de caminhada para evitar tumultos num terminal caótico, lotado. Mais uns cinco minutos e já estou na rua de novo. Gotas sutis de um chuvisco marcam a mais vespertinas das manhãs. Parece que estou à rua, às seis da tarde, com o pôr do sol no lugar errado. Isso me parece estranho. Não é uma manhã chuvosa, daquelas úmidas, cheias de água sobre o solo. É uma manhã fria. Mas um frio que não se estabelece. Dez minutos de caminhada e estou quase às portas de meu trabalho. Um calor já me toma o corpo.

Ao chegar na escola e me sentar à mesa, uma colega me presenteia com uma caneca fumegante de café sem açúcar. Já tomei café hoje, mas aquele me convida a uma carga extra. O perfume do líquido castanho me entra nas narinas e o gosto amargo, porém suave do líquido me redesperta. Eu saio daquela onda de torpor causada pela manhã de luz incerta, de luz de abajur. Olho para o céu e nesgas azuladas saem detrás de fiapos de nuvens escuras. A previsão é de tempestades. Mas não agora. O piso molhado pelo chuvisco levanta um cheiro: o suor da terra molhada. Da terra e suas coberturas: asfalto, concreto, plantas, telhados, tudo molhado cheira a chuva, mas ela se vai e o sol nos esquenta de novo. O primeiro período da manhã na sala de aula é de clima ameno, turma pequena, estudantes calmos. O café já circula nas minhas veias, fazendo-me mais desperto e disposto. É mais um dia que começa como sempre, mas de um jeito totalmente diferente.

Agora, antes do meio dia, o sol lança um jorro de luz forte sobre tudo. O calor se estabelece lembrando-me de que eu vivo no Planalto Central. A rotina diária do viver, trabalhar, ser e estar parece perturbada por esses movimentos estranhos do clima outonal. Por aqui o outono não é clichê. É um despedir-se das chuvas, um avizinhar-se de um curto e seco período de frio. Porque, de fato, o inverno há de ser seco e quente. Quando eu era criança, sentia falta da chuva, ficava triste de abril a outubro, vendo as águas se irem e o sol reinar sem piedade sobre o sertão goiano. Hoje em dia, eu não me preocupo tanto. Recebo a luz intensa desses dias com amor e doçura. Uma camada generosa de filtro solar sobre braços, pescoço e rosto e já me sinto pronto para andar sob a rajada fotônica da estação outono/inferno do Centro-Oeste. É a luz que há de queimar nossos pastos, enrijecer os troncos do cerrado, secar folhas, diminuir a água dos mananciais, tostar telhados, bronzear nossos habitantes.

Ess luz vem tímida, mas só hoje, pedindo licença entre massas de nuvens úmidas. Mas logo há de ser onipresente durante onze, doze, treze horas, até que a primavera se torne verão novamente, trazendo águas que sabemos ser incertas, numa época de mudanças climáticas intensas. O clima me chama a atenção. O tempo me fascina. A atmosfera me incita à observação. Isso tudo me torna menos capturado por telas, anúncios e outras armadilhas cotidianas. Observar a natureza ao meu redor, sem idealizá-la, torna-me uma presa difícil ao poder que tenta me humilhar por meio do meu trabalho e de minhas obrigações diárias. Eu continuo de olhos abertos, ouvidos atentos, ouvindo o piado forte dos joões-de-barro, olhando as flores da estação, a variação dos tons de verde, de árvores que estarão daqui a meses pedindo misericórdia por chuva e menos calor. Eu vejo tudo e me sinto eu mesmo no meio dessa visão da natureza. É meu nicho, meu ninho, minha terra, meu sol, meu calor, meu vento seco, crestando meus lábios, desidratando a vida que sofre sob o sol dos trópicos continentais.

E a vida segue, eu sigo resistindo, de olhos abertos, bem abertos. E meus olhos hão de resistir à secura de tudo, do mundo, das dores de ser eu mesmo e estar onde estou. É tempo de poupar lágrimas, a seca se reaproxima.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Foto de capa: Image by Romilson de Queiroz @romilsondequeiroz from Pixabay

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *