Hoje, 20 de novembro de 2024, completo 60 anos.
Sempre gostei de comemorar aniversários. Acho que é uma oportunidade de celebrar a vida: a vida que já me foi dada viver, a vida que me resta a viver, o simples fato de estar vivo. Gosto de receber presentes, mas creio que o maior presente, no fundo, é o próprio aniversário. É como se, a cada ano, nessa data, eu renovasse meu pacto com a vida. Enfim, meus aniversários costumam ser dias felizes.
Este ano, o 20 de novembro é uma data particularmente significativa para mim. Fazer 60 anos me parece ser um marco importante. E não só porque, a partir de hoje, vou poder entrar nas filas preferenciais (pessoalmente acho um pouco prematuro para isso, mas não pretendo abrir mão desse privilégio). Faz uns anos, nesse espaço, escrevi sobre a ideia do “terceiro ato” desenvolvida pela Jane Fonda, de acordo com a qual o terceiro ato de nossas vidas começaria aos 60 anos, abrindo um ciclo que pode constituir o clímax de nossa presença no mundo.
Eu tendo a concordar com a visão da Jane Fonda. E, como havia dito naquele texto, sinto que, de alguma forma, venho me preparando há alguns anos para esse momento.
Chego aos 60 anos num momento de transição. Há quase quatro meses, voltei a morar no Brasil depois de sete anos e meio vivendo no exterior (em Portugal e no México). Estou trabalhando num ambiente novo. Ainda não tenho uma nova morada “permanente” e estou vivendo num Airbnb (na verdade, o segundo desde que cheguei ao Brasil no final de julho). Minha casa está embalada em caixas, a caminho do porto de Santos. Quase tudo na minha vida hoje é provisório.
É uma sensação que causa certo desconforto. Mas que, ao mesmo tempo, me parece apropriada para o momento que estou vivendo.
Quando decidi voltar para o Brasil, sabia que essa nova etapa seria uma fase que, para além das turbulências previsíveis nesses processos de mudança, representaria uma transição maior no arco da minha trajetória. Do lugar onde estou hoje, vislumbro minha aposentadoria e, mais do que isso, um novo ciclo de vida, e vejo-me diante da iminência de uma série de definições que apontarão para como irei viver os próximos (e, sejamos claros, últimos) anos da minha vida.
Meu pai dizia que, quando fizesse 60 anos, iria largar tudo para ir viver num barco nos canais de Amsterdam. Quando ele fez 60 anos, saímos para almoçar um dia, e eu perguntei para quando era a mudança. Ele riu e desconversou. Não sei se ele voltou a pensar nisso nos 18 anos que viveu depois dos 60. Mas eu nunca esqueci dessa conversa e, sobretudo, dessa fantasia nunca realizada por ele.
Devo dizer que tenho muito orgulho do caminho que percorri até agora. Volta e meia pego-me espantado por ter vivido tudo o que já vivi. Creio sinceramente que experimentei tão plenamente quanto possível as alegrias e as dores de cada idade. E sinto-me quase pronto para prosseguir viagem.
Digo quase porque, por um lado, a gente nunca está totalmente pronto para o que está por vir e, como diria o Gilberto Gil, “mistério sempre há de pintar por aí”. Perceber que não temos controle absoluto (e, muitas vezes, nem relativo) sobre o que nos acontece e saber dar as boas vindas ao inesperado, seja ele bom ou ruim, é uma lição que a vida me ensinou e que eu procuro não esquecer, nem sempre com sucesso.
E, por outro lado, saber-me diante de uma mudança que pressinto ser profunda e radical tem reativado medos e inseguranças ancestrais. A diferença agora é que talvez eu me sinta mais capaz de lidar com esses fantasmas de forma consciente e, porque não, madura. Voltei para a terapia depois de muitos anos. Tive a sorte (ou será sincronicidade?) de encontrar um terapeuta junguiano que, acredito, poderá me acompanhar nesse momento crucial do meu processo de individuação.
Curiosamente (ou não), estou lendo o livro de memórias do transexual João Nery, “Viagem Solitária” (esse título também me parece muito significativo), que aliás recomendo muito. Na epígrafe de um dos capítulos, João Nery cita essa frase do teólogo Paul Tilich:
“Coragem de ser é uma atitude ética e filosófica na qual o homem afirma seu próprio ser, a despeito daqueles elementos do seu meio e de sua existência que entram em conflito com sua autoafirmação essencial.”
Há pouco mais de 30 anos, quando eu me aproximava do que a Jane Fonda chamaria de segundo ato da minha vida, eu escrevi e defendi minha dissertação de mestrado, que tinha como título “Rimas do Mundo: o Ethos Fabulador”. Nela, eu sugeria, entre outras coisas, a partir de um comentário do Roland Barthes, que a vida nos apresenta encontros (que eu chamava de rimas) que produzem efeitos em nós e aos quais procuramos dar sentido, o que desencadeia em nós o processo fabulador (a “função fabuladora” é um conceito proposto originalmente pelo filósofo francês Henri Bergson e que eu procurava desenvolver na minha dissertação).
Hoje, escrevendo esse texto no limiar dos meus 60 anos e do meu “terceiro ato”, eu reencontro essa ideia das rimas do mundo nas pequenas e grandes “coincidências” com que continuo a esbarrar, e que sempre me surpreendem. Mas, sobretudo, reencontro lá atrás sinais de alguém em quem ainda me reconheço, embora ao mesmo tempo eu tenha mudado tanto e minha vida tenha dado tantas voltas desde então. E fico me perguntando em que medida meu ser tem-se afirmado não somente a despeito dos elementos do meu meio e da minha existência, mas também tem se deixado moldar por esses elementos, sem, contudo, perder algo que, por falta de palavra melhor, chamaria de essência. Que eu não vejo como algo duro e imutável, mas como um campo de possibilidades que podem ou não se realizar. Algo que, na minha religião, o candomblé, seria identificado como o meu orí, a minha cabeça, que me acompanha desde o nascimento e estará comigo até minha morte.
Enfim, aqui estou, aos 60 anos, entre feliz e assombrado diante de um presente sempre em movimento que carrega no seu fluxo as marcas do passado e as promessas e ameaças do futuro. O que foi, o que fui, nunca deixará de ter sido. O que será, o que serei, ainda está por emergir, pois o destino só se escreve depois de realizado. Tenho a convicção de que tenho sido um ser humano decente e pretendo continuar a tentar sê-lo. Não aspiro a mais que isso. Continuo gostando da vida com seu caleidoscópio de maravilhas e horrores. E não tenho muitas dúvidas de que meu jeito de estar no mundo (meu ser?) está de alguma forma ligado ao desejo de dar meu testemunho, meu depoimento.
Tudo isso, no fundo, para dizer que meu presente de aniversário para mim mesmo é retomar essa coluna, que tem sido um lugar de prazer, reflexão e autoconhecimento para mim nos últimos anos, e pelo qual sou muito grato.
Até a próxima!
PS – A playlist de hoje traz três músicas que são particularmente importantes para mim: “Dê um Rolê”, numa versão ao vivo com Gal Costa; “Agora Só Falta Você”, com Rita Lee; e “Bloco na Rua”, na gravação mais recente de Ney Matogrosso.
Respostas de 4
Vc sempre mos brinda com belos textos, leves, sincero, redlexivo e tão delicados… é uma alegria lê-los… mais uma vez parabéns pelo seu dia… grande beijo
Muito obrigado pela leitura e pelo carinho!
Adorei, espero te ler até o final do meu terceiro ato! A playlist está sensacional, faltou “Chão de Despensa”, na voz da Bethânia, que vou escutar aqui em homenagem ao teu aniversário. Parabéns, beijão
Muito obrigado! Chão de Despensa faz falta mesmo 🤣🤣🤣