Sempre me divirto com a frase que uso por título da minha crônica, porque sempre há, no dia 31 de dezembro, uma série de piadas sobre o fato. Uma das frases que eu mais gostei de ler nas redes sociais, um ano passado desses aí, já tendo passado do meio-dia de 31 de dezembro: “Já é ano-novo na Austrália, para desespero do terraplanistas”!
Agora, nesse instante, já é primeiro de janeiro no outro lado do mundo, enquanto as horas correm, meridiano por meridiano, até que, tendo passado 12 horas, seja ano-novo aqui também. E isso tudo é relativo, porque nosso planeta, de forma geóide, que se aproxima de uma esfera, gira em torno de si mesmo, fazendo que, a cada hora, depois do meio-dia ddo dia 31, um fuso horário realize a mudança de data. Isso tudo é tão óbvio, tão certo. Aprende-se na escola, aprende-se em livros e de outras tantas formas.
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Cabe algum lugar para dúvida? A piada a que faço referência, no início do meu texto, mostra que sim. Há espaço para muitas dúvidas. E o terraplanismo é um dos muitos tipos de ideias que duvidam da ciência, do conhecimento humano com finalidade de causar dúvidas, dissensões e problemas políticos. Sim, políticos. Parte da descrença nas ciências humanas, da natureza ou exatas está comprometida ideologica e politicamente com grupos de conservadores cujo objetivo é se manter no poder e defender ideias religiosas, culturais e tradicionais que concorrem com a ciência na explicação da natureza, incluindo a humanidade.
A ciência não faz projeção para o futuro baseada na fé em histórias tradicionais. Isso não significa que mitos, religiões e outras formas de conhecimento sejam equivocadas em tudo. Na verdade, há muita sabedoria nas culturas tradicionais, principalmente aquelas em que os seres humanos não tiveram escolha, a não ser conviver com a natureza com um mínimo de harmonia. E nisso há uma crítica. As crenças religiosoas da Europa antiga e medieval foram intepretadas de forma a entregar a natureza na mão dos homens. No passado, os romanos tornaram o cristianismo numa potente ferramenta civilizatória. Depois, tomando o povo europeu como predestinado, a Igreja Católica Romana (e posteriormente, as outras igrejas cristãs que saíram do seu seio) comandou um processo longo de gestação e parto do capitalismo.
Foi o que aconteceu com o Mercantilismo da época das grandes navegações. É claro que o Iluminismo, progressista e pai do capitalismo industrial, deu um tiro no peito do jeito antigo de se governar e colocou a ciência como piloto do mundo europeu. Os governos, um a um, foram optando por formas de administração baseadas em economia, medicina, geografia. Desde então, a rixa entre fé e ciência se manifesta em tudo, inclusive nessa piadinha sobre já ser ano-novo na Austrália, para desespero dos terraplanistas, que não concebem como uma superfície plana pode ter vários céus e vários meios-dias, que é quando o sol está na metade do caminho no céu. Aliás, essa minha expressão mostra que o conhecimento tradicional do observar a natureza, as estrelas, produz esse equívoco: o sol não anda pelo céu da Terra. A Terra é que gira em seu entorno.
De fato, do ponto de vista de quem observa o céu, o sol se movimenta e nós estamos parados. Mas se pudéssemos mudar de posição, perderíamos essa noção. Assim como o astronauta, que na Lua, via a Terra como vemos a Lua no céu. Assim é tudo. Precisamos ter maturidade para entender isso. Há pontos de vista estabelecidos para uma verdade ser encarada, escrutinada. Mas nunca podemos deixar de entender como as coisas realmente funcionam. O tempo, por exemplo, ele é, ao mesmo tempo, cíclico, para nós que estamos parados olhando para ele. O sol nasce e se põe, as estrelas se movimentam, a Lua. Todas voltam ao seu lugar, eventualmente.
Mas, inevitavelmente, o tempo é linear. Os anos, outro ciclo temporal, passam. E não voltam mais. Nossos corpos não voltam ao estado que estavam no início do nosso ciclo. Aliás, se há algum ciclo, é da matéria que nos constitui, não dos seres que são constituídos por ela. Mesmo árvores centenárias, um dia morrem. O tempo é cíclico, mas se visto mais de perto, ou mais de longe, se mudarmos o nosso ponto de vista, ele também é, ao mesmo tempo linear, inexorável.
Passemos o tempo, porque ele passa a nós todos, passa por nós e passa sem parar. Não temos como evitar nossos cabelos brancos, dores nas costas e pernas, cansaços… Veremos filhos crescerem, os velhos envelhecerem mais ainda e a vida se tornar frágil e fraca ante o tempo. Ficaremos velhos por causa do tempo, e esse corpo envelhecido não retornará com a nova primavera ou quando o ano recomeçar. O ano recomeça. O tempo, não.
Já é ano-novo na Austrália, hora a hora o tempo nos alcança, nos toma, começa novos ciclos e, ao mesmo tempo, avança e em espiral para frente. Estamos prontos para isso? Não. Não somos imunes à passagem do tempo. Quer acreditemos na ciência ou nas religiões e tradições, não podemos desacreditar-nos do tempo. Ele é o deus dos deuses e talvez o mais cruel de todos. Ao mesmo tempo que é o benevolente.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Capa: Image by Markus Kammermann from Pixabay
Uma resposta
Belo texto.
Feliz Ano Novo e Corpo Envelhecendo!