ESTALOS DA ALMA[1]
Jorge Miklos[2]
“Viver é muito perigoso. (…). Tem que ter coragem. O mais importante é isso. A vida quer da gente é coragem. O diabo é se acovardar.”
João Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”.
Embora curta, a frase “Viver é muito perigoso” é emblemática da jornada de amadurecimento, autonomia e autoconhecimento do protagonista Riobaldo, que enfrenta os desafios do sertão, buscando sua própria liberdade e autonomia em meio a um ambiente hostil e complexo.
O amadurecimento, a autonomia e a liberdade são pilares fundamentais no desenvolvimento humano, proporcionando uma base sólida para a realização pessoal e o sucesso na vida. O processo de amadurecimento envolve a capacidade de aprender com experiências passadas, desenvolver habilidades emocionais e cognitivas, e adquirir uma compreensão mais profunda de si mesmo e do mundo. A autonomia e a independência, por sua vez, capacitam os indivíduos a tomarem decisões conscientes e assumirem responsabilidades por suas ações, promovendo um senso de controle sobre suas vidas e contribuindo para a construção de identidades fortes e resilientes. Esses aspectos são essenciais para o crescimento pessoal, o estabelecimento de relações saudáveis e a capacidade de enfrentar os desafios da vida com confiança e determinação.
O exercício da liberdade está intrinsecamente ligado ao amadurecimento pessoal. A maturidade proporciona uma compreensão mais profunda das consequências de nossas escolhas e ações, permitindo que tomemos decisões de forma consciente e responsável. Através do amadurecimento, desenvolvemos a capacidade de ponderar entre diferentes opções, avaliando não apenas nossos desejos imediatos, mas também considerando o impacto de nossas decisões em nós mesmos e nos outros. Somente quando alcançamos esse nível de maturidade somos verdadeiramente livres para fazer escolhas autênticas e alinhar nossas ações com nossos valores e objetivos mais profundos. Assim, o amadurecimento é não apenas uma condição prévia para o exercício da liberdade, mas também seu guardião, garantindo que nossa liberdade seja usada de maneira construtiva e benéfica para nós mesmos e para a sociedade como um todo.
Donald Winnicott (1896-1971), um renomado psicanalista britânico do século XX, desenvolveu uma teoria sobre o amadurecimento humano, destacando a importância da interação entre o indivíduo e seu ambiente. Em sua abordagem, três conceitos fundamentais emergem como pilares de sua compreensão: a tendência inata ao amadurecimento, o ambiente suficientemente bom e a importância da falha ambiental para o amadurecimento.
Em primeiro lugar, Winnicott postulou que todo ser humano possui uma tendência inata ao amadurecimento. Essa tendência é uma força interna que impulsiona o desenvolvimento psicológico e emocional ao longo da vida. Para Winnicott, o amadurecimento não é apenas uma consequência natural do passar do tempo, mas sim uma força ativa dentro de cada indivíduo, um impulso interno em direção à integração e à realização do indivíduo. Na visão de Winnicott, a integração se refere ao processo pelo qual uma pessoa se torna uma entidade completa e unificada, capaz de funcionar de maneira coesa em vários aspectos da vida. Envolve a harmonização dos diferentes, mas interconectados aspectos da pessoa, incluindo as potências emocionais, cognitivas e físicas. A integração possibilita a pessoa coordenar seus pensamentos, sentimentos e ações de uma maneira que seja consistente e adaptativa. A integração é um processo contínuo ao longo da vida, influenciado pelas experiências vividas e pelas interações com o ambiente. É fundamental para o desenvolvimento saudável da identidade e da capacidade de relacionamento interpessoal.
Winnicott enfatizou que a tendência inata ao amadurecimento é uma potência, uma tendência e não uma determinação. Ou seja, o amadurecimento não ocorre isoladamente e espontaneamente. Para que o amadurecimento e a integração ocorram o bebê precisa contar um “ambiente suficientemente bom”. Na infância, especialmente durante os estágios iniciais do desenvolvimento, a integração é facilitada pelo ambiente facilitador proporcionado pelos pais ou cuidadores. O bebê precisa de um ambiente que ofereça apoio emocional, segurança e aceitação que permita à criança explorar e experimentar sua identidade de forma saudável, promovendo a integração. Esse ambiente não precisa ser (e jamais será) perfeito, mas sim capaz de atender às demandas básicas de segurança e amor. É através da interação com esse ambiente que o indivíduo pode explorar e experimentar o mundo de forma segura, permitindo que a tendência inata ao amadurecimento se manifeste plenamente.
Pode-se traçar um paralelo e aproximar, mutatis mutandis, o conceito de amadurecimento com a concepção de individuação, talhada pelo psiquiatra e fundador da Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung (1875-1961). A individuação, refere-se ao processo pelo qual uma pessoa se torna consciente de si mesma, integrando as diferentes partes da sua psique para alcançar uma maior unidade e plenitude pessoal. Jung em “Um estudo sobre o simbolismo da transformação: o processo de individuação, descreve a individuação como: “um processo de realização individual, cujo objetivo é a realização do próprio ser” (Jung, 1986, p. 275). Jung enfatiza a importância de entrar em contato com os conteúdos inconscientes da mente, afirmando que: “o inconsciente deve ser conscientizado” (Jung, 1985, p. 186) para que ocorra esse processo de integração e desenvolvimento pessoal. A individuação não é apenas um processo interno, mas também envolve a relação com o mundo externo, como Jung destaca em “Memórias Sonhos Reflexões” ao afirmar que “a realização do ser é uma questão de relacionamento” (Jung, 1986, p. 195).
A ausência de um ambiente de apoio emocional na infância pode ter um impacto significativo no desenvolvimento emocional e psicológico de um adulto, afetando seus relacionamentos, autoestima e bem-estar emocional. Um adulto que, durante sua infância, não recebeu um ambiente de apoio emocional, segurança e aceitação dos pais ou cuidadores. Isso pode resultar em várias consequências que afetam o desenvolvimento emocional e psicológico ao longo da vida.
Por exemplo, uma criança que cresce em um ambiente no qual os pais são emocionalmente distantes, excessivamente críticos ou imprevisíveis em suas respostas emocionais, vai aprender que suas necessidades emocionais não serão atendidas de forma consistente ou adequada, o que pode levar a uma sensação de insegurança e ansiedade. Ela pode desenvolver uma máscara social (falso self).[iii] como uma forma de se proteger, escondendo suas verdadeiras emoções e necessidades por medo de rejeição ou abandono. Essa pessoa pode enfrentar dificuldades em estabelecer relacionamentos saudáveis, pois pode ter dificuldade em confiar nos outros e em expressar suas emoções de forma autêntica. Eles podem se sentir desconectados de si mesmos e dos outros, buscando constantemente validação externa para se sentirem dignos ou amados. A falta de apoio emocional na infância pode contribuir para problemas de autoestima, ansiedade, depressão e dificuldades de regulação emocional na vida adulta. A pessoa pode experimentar sentimentos de vazio ou inadequação, mesmo que pareçam bem-sucedidas externamente.
Pode-se relacionar também a teoria do amadurecimento em Winnicott com a jornada do herói. O conceito de amadurecimento em Winnicott e a Jornada do Herói de Carl Gustav Jung compartilham importantes elementos que ressaltam o desenvolvimento pessoal e a busca pela integração psicológica.
Como vimos, para Winnicott, o amadurecimento é visto como um processo gradual de desenvolvimento da identidade e da capacidade de relacionamento com o mundo externo. O amadurecimento envolve a progressiva integração através da diferenciação permitindo ao indivíduo uma relação mais autêntica consigo mesmo e com os outros.
Para Carl Gustav Jung, a jornada do herói é uma metáfora poderosa que descreve o já citado acima, processo de individuação, no qual o indivíduo embarca em uma jornada de autoconhecimento e transformação. Ao longo dessa jornada, o herói enfrenta desafios, confronta seus próprios medos e limitações, e eventualmente alcança uma maior integração psicológica e espiritual. Escreveu Jung em Aion: estudos do simbolismo do si-mesmo (1985, p. 47) a respeito da jornada heroica como metáfora do processo de individuação: “Individuação não significa tornar-se o único, mas tornar-se o único que você já é, desde o início inconscientemente, mas agora conscientemente.”
Ao relacionar esses dois conceitos, percebemos que tanto o amadurecimento em Winnicott quanto a jornada do herói em Jung destacam a importância do enfrentamento de adversidades e desafios como um meio essencial para o crescimento pessoal. Ambos os conceitos enfatizam a necessidade de desenvolver uma relação mais autêntica consigo mesmo e com o mundo ao redor, permitindo assim uma maior integração e realização pessoal.
Tanto Jung como Winnicott reconheceram a importância das falhas e das adversidades para o processo de amadurecimento/individuação.
Winnicott argumentou que o ambiente suficientemente bom não deve ser excessivamente protetor ou perfeito, mas sim capaz de tolerar e reparar as falhas inevitáveis na relação entre o cuidador e o indivíduo. Essas falhas são oportunidades para o crescimento e a aprendizagem, pois permitem que o indivíduo desenvolva habilidades de adaptação, resiliência e autoconfiança. Em Desenvolvimento Emocional Primitivo (p. 93), Winnicott escreve: “A falha ambiental é inevitável e constitui uma parte necessária do desenvolvimento saudável. É através da experiência da falha e da frustração que o indivíduo desenvolve a capacidade de tolerar a realidade externa e de se adaptar a ela de forma criativa.”
Considere uma criança que cresceu em um ambiente no qual os pais estavam constantemente preocupados em protegê-la de qualquer desconforto, desafio ou falha. Os pais podem ter estabelecido expectativas irrealisticamente altas para o desempenho da criança e podem ter sido críticos quando ela não atingia essas expectativas. Este ambiente pode ter sido caracterizado por uma ênfase exagerada na perfeição e no sucesso externo, em vez de valorizar o processo de aprendizado e crescimento pessoal.
Como resultado, a criança pode ter internalizado a mensagem de que seu valor como pessoa está intrinsecamente ligado à sua capacidade de alcançar metas de alta performance e à aprovação dos outros. Ela pode ter desenvolvido uma forte aversão ao fracasso e ao julgamento negativo, buscando constantemente a perfeição como uma forma de evitar críticas ou rejeição.
Como adulto, essa pessoa pode ter dificuldades em enfrentar uma série de desafios. Ela pode se sentir excessivamente ansiosa e auto exigente, sempre se esforçando para atender às expectativas elevadas que foram internalizadas na infância. Isso pode levar a altos níveis de estresse, insatisfação crônica e até mesmo sofrimentos psíquicos, como ansiedade, depressão ou transtornos alimentares.
Além disso, esse adulto que foi superprotegido na infância pode ter dificuldade em lidar com situações adversas ou falhas, pois nunca aprendeu a tolerar a frustração ou a enfrentar desafios de forma saudável. Ela pode evitar riscos ou oportunidades de crescimento pessoal por medo de fracassar ou ser julgada negativamente pelos outros.
Um ambiente excessivamente protetor ou perfeccionista na infância pode deixar um adulto vulnerável a uma série de dificuldades emocionais, sociais e psicológicas. Uma citação de Winnicott sobre a importância da falha ambiental pode ser encontrada em seu trabalho “Realidade e a Realidade Social” (1965): “É um fato aceito da prática analítica que a falha ambiental, isto é, a não-adaptação ambiental suficiente, é o que faz com que a pessoa busque análise ou tratamento.”
Mesmo tendo superprotegido seus filhotes, muitos pais no mundo sentem culpados pois criam uma autorrepresentação de que não foram pais suficientes. É preciso mudar esse imaginário uma vez que, a falha ambiental não é um erro, mas necessária para o amadurecimento. Diz Winnicott em “O ambiente e os processos de maturação” (p. 92): “A falha ambiental não é apenas uma fonte de sofrimento, mas também uma oportunidade para o crescimento e a maturação. É através da resolução das tensões causadas pela falha ambiental que o self é fortalecido e a identidade individual é formada.”
Carl Gustav Jung também acreditava que as dificuldades enfrentadas pelo ser humano desempenham um papel fundamental no processo de individuação, que é o desenvolvimento de uma personalidade integrada e autêntica. Para Jung, os desafios e adversidades não são obstáculos a serem evitados, mas sim oportunidades para o crescimento pessoal e a expansão da consciência. Ele via as dificuldades como catalisadoras para o confronto com os aspectos mais profundos do ser, levando o indivíduo a explorar e integrar os conteúdos do inconsciente. Ao enfrentar e superar esses desafios, o indivíduo fortalece sua psique, desenvolvendo uma maior resiliência, autoconhecimento e capacidade de adaptação. Assim, para Jung, as dificuldades não apenas fortalecem o indivíduo, mas também o orientam em direção ao seu verdadeiro eu, contribuindo para o processo de individuação e a busca pela totalidade psicológica.
Por exemplo, para Jung, uma das dificuldades que a pessoa enfrenta no processo de amadurecimento e individuação é o confronto com a sombra. Em seu livro “Aion: Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo”, Jung discorre sobre a sombra como um aspecto essencial da psique humana, afirmando: “A sombra é um problema básico da vida humana, e todo indivíduo deve reconhecê-la em alguma extensão. Ela constitui a escuridão que sempre acompanha a luz do ego, e é a menos acessível de todas as partes da personalidade” (p. 123). Neste trecho, Jung destaca como a sombra representa os aspectos reprimidos, negados ou desvalorizados da psique, os quais podem incluir impulsos instintivos, desejos inaceitáveis e características consideradas indesejáveis. Ele argumenta que, para alcançar a totalidade psicológica, é essencial que o indivíduo confronte e integre sua sombra, reconhecendo e aceitando esses aspectos menos conscientes de si mesmo.
Uma citação que ilustra a importância do confronto com a sombra para o processo de individuação pode ser encontrada também no livro “Aion: Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo”. No Capítulo 14, na seção intitulada “A Confrontação com a Sombra”, Jung escreve: “Não existe luz sem sombra e não existe totalidade psicológica consciente sem imperfeição. A vida precisa da totalidade da sombra, bem como da luz. O confronto com a sombra é indispensável para o crescimento espiritual do homem. Para ser tornar consciente, ele precisa confrontar-se com a escuridão e a malícia da sua própria natureza, e isso enfrentamento torna-se um ponto crucial do processo de individuação.” (p. 9). Essa citação enfatiza a necessidade de confrontar e integrar a sombra, os aspectos inconscientes e muitas vezes menosprezados da personalidade, como parte essencial do processo de individuação e crescimento espiritual.
Outro aspecto a ser considerado na ótica da Psicologia Analítica é a presença dos complexos que atuam sobre a psique humana. Para Jung, os complexos são agrupamentos de emoções, memórias, percepções e desejos em torno de um tema ou núcleo comum. Eles representam partes da psique que se desenvolvem em resposta a experiências significativas na vida de uma pessoa. Os complexos são formados quando certas experiências emocionalmente carregadas, muitas vezes traumáticas, não são adequadamente integradas à consciência. Em vez disso, essas experiências são reprimidas ou suprimidas para o inconsciente, onde continuam a exercer influência sobre o indivíduo de maneiras sutis e muitas vezes inconscientes.
Uma citação sobre complexos em Carl Gustav Jung pode ser encontrada em sua obra “Psicologia e Religião: Obras Completas de C.G. Jung, volume 11“, na qual ele diz: “Os complexos são autênticos centros de personalidade dentro da personalidade, semelhantes a personalidades independentes, exceto por sua falta de integração” (Jung, 1987, p. 145). Ness excerto, Jung destaca a natureza autônoma e muitas vezes inconsciente dos complexos, que podem influenciar significativamente o comportamento e as experiências de uma pessoa.
Por exemplo, um complexo paterno pode se manifestar em um indivíduo que teve uma relação difícil ou ausente com seu pai durante a infância. Isso pode resultar em sentimentos de inadequação, raiva, ressentimento ou até mesmo idealização em relação à figura paterna. Um indivíduo cujo pai estava frequentemente ausente devido ao trabalho ou outras responsabilidades. Esse indivíduo pode desenvolver um complexo paterno onde ele se sente desprezado, não valorizado ou incapaz de satisfazer as expectativas de seu pai. Isso pode levar a sentimentos de baixa autoestima, uma busca constante por aprovação e reconhecimento, ou até mesmo a dificuldade em estabelecer relacionamentos saudáveis com figuras de autoridade masculina.
Por outro lado, em um cenário oposto, um indivíduo pode ter tido um pai extremamente controlador ou crítico. Nesse caso, o complexo paterno pode se manifestar como uma sensação de inadequação crônica, medo de decepcionar ou até mesmo um desejo inconsciente de superar o pai como uma forma de provar seu próprio valor.
Importante notar que os complexos são altamente individuais e podem variar amplamente de uma pessoa para outra, dependendo de suas experiências de vida únicas.
Crianças e adolescentes com superproteção podem se tornar intolerantes a frustração. O comportamento de adolescentes e adultos intolerantes à frustração pode se manifestar de várias maneiras, refletindo uma dificuldade em lidar com desafios e contratempos de maneira construtiva. Por exemplo, um adolescente intolerante à frustração pode reagir com explosões emocionais, agressividade ou desistência diante de situações que não correspondem às suas expectativas, como um mau desempenho acadêmico ou dificuldades em relacionamentos interpessoais. Eles podem procurar evitar qualquer forma de desconforto ou desafio, optando por fugir de responsabilidades ou buscar gratificação imediata em vez de persistir diante de obstáculos.
Da mesma forma, adultos intolerantes à frustração podem demonstrar comportamentos semelhantes, como irritabilidade, culpa diante de falhas ou contratempos no trabalho, relacionamentos ou outras áreas da vida. Eles podem buscar culpados externos para suas dificuldades, evitando assumir responsabilidade por suas ações ou buscar soluções proativas para resolver problemas. Além disso, podem recorrer a mecanismos de enfrentamento prejudiciais, como o uso excessivo de substâncias ou comportamentos destrutivos, como compulsões ou isolamento social, como forma de lidar com a frustração.
A intolerância à frustração pode afetar negativamente o amadurecimento, o funcionamento adaptativo, o bem-estar emocional e a individuação, dificultando o desenvolvimento de habilidades de enfrentamento saudáveis e a capacidade de superar desafios de forma construtiva.
A escola desempenha um papel crucial no desenvolvimento emocional e na formação de identidade, conforme concebido por Donald Winnicott. Ao fornecer um ambiente seguro e estruturado, a escola oferece uma oportunidade para que as crianças enfrentem desafios e interajam com os outros de maneira significativa. Por meio de interações com colegas e professores, as crianças aprendem a lidar com frustrações, a resolver conflitos e a desenvolver um senso de si mesmas. Além disso, a escola proporciona um espaço onde as crianças podem explorar seus interesses e talentos individuais, promovendo assim uma maior autoconsciência e autoaceitação. Ao enfrentar situações desafiadoras e receber apoio adequado, as crianças têm a oportunidade de fortalecer seu self e desenvolver uma identidade mais coesa e autêntica, preparando-as para uma vida adulta mais madura e realizada.
Pode-se identificar uma convergência entre o pensamento de Winnicott e de Paulo Freire. Embora Donald Winnicott e Paulo Freire sejam figuras de áreas distintas – psicanálise e educação, respectivamente – é possível identificar semelhanças em seus pensamentos, especialmente no que diz respeito ao papel do ambiente e das interações sociais no desenvolvimento humano.
Ambos enfatizam a importância do ambiente social na formação da identidade e no desenvolvimento emocional. Enquanto Winnicott destaca a necessidade de um ambiente facilitador e de relações interpessoais autênticas para o fortalecimento da pessoa, Freire ressalta a importância do diálogo e da interação crítica na construção do conhecimento, da consciência crítica e da autonomia.
Paulo Freire compreende a autonomia como um dos pilares fundamentais da educação libertadora e crítica. Para ele, autonomia não se limita à simples capacidade de agir por conta própria, mas é um processo complexo que envolve consciência, reflexão e ação transformadora.
Para Freire, a autonomia está intrinsecamente ligada à consciência crítica, ou seja, à capacidade de compreender a realidade de forma reflexiva e analítica, questionando as estruturas de poder e as injustiças sociais. Isso implica não apenas entender o mundo, mas também agir sobre ele de forma consciente e engajada na transformação das condições opressivas.
Na perspectiva freiriana, a autonomia é construída através da prática da educação problematizadora, na qual os educadores e educandos dialogam e refletem sobre sua realidade, identificando suas próprias opressões e desenvolvendo estratégias para superá-las. Esse processo não é individual, mas coletivo, uma vez que a autonomia é alcançada em relação com os outros, em um contexto de diálogo e colaboração. A autonomia não é apenas uma conquista individual, mas um projeto coletivo de libertação e transformação social, fundamentado na consciência crítica e na prática educativa libertadora. Uma citação emblemática de Paulo Freire sobre autonomia pode ser encontrada em seu livro “Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa“. Neste livro, Freire aborda extensivamente a importância da autonomia no processo educacional: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.”
Freire e Winnicott reconhecem a importância da experiência pessoal e da práxis – ação reflexiva – no processo de aprendizagem e desenvolvimento. Para Freire, a educação problematizadora e libertadora envolve a reflexão crítica sobre a realidade e a ação transformadora. De maneira similar, Winnicott enfatiza a importância da experiência vivida e da criatividade na formação do indivíduo autêntico, a autenticidade de uma pipoca.
A crônica “Pipoca” de Rubem Alves está presente no livro “Ostra Feliz Não Faz Pérola”, publicado originalmente em 1995 pela Editora Papirus. “Pipoca” é uma crônica na qual o teólogo e psicanalista Rubem Alves usa a metáfora da pipoca estourando na panela para explorar o conceito de imprevisibilidade na vida e a importância de viver plenamente. Ele começa comparando a vida a uma pipoca, pequena e dura, que de repente estoura, revelando sua beleza e imprevisibilidade. Rubem Alves reflete sobre como a vida pode ser cheia de surpresas, assim como a pipoca que estoura de forma imprevista: “Como o milho duro, que vira pipoca macia, só mudamos para melhor quando passamos pelo fogo: as provações da vida. A transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação por que devem passar os homens, para que eles venham a ser o que devem ser.”
Assim como a pipoca precisa ser aquecida para estourar, a vida requer certos estímulos (nem sempre doces ou suaves) ou situações para que possamos nos transformar e alcançar nosso potencial pleno. Rubem Alves aborda a importância de aproveitar os momentos simples da vida e valorizar as pequenas surpresas que ela nos oferece. Ele incentiva seus leitores a viverem plenamente, apreciando cada momento, assim como desfrutamos do estouro repentino de uma pipoca.
Assim como a pipoca, a vida é também um contínuo Estalar de Alma, evocando rupturas e transformações interiores. Há algo dentro de nós se quebra ou se abre, revelando novos insights, emoções ou entendimentos. A alma, em seu âmago, é submetida a uma pressão interna intensa até que finalmente “estala”, liberando uma energia vital ou uma compreensão profunda. Esse “estalo” representa um despertar espiritual, uma epifania, um momento de clareza ou uma mudança de perspectiva significativa. Pode ser associado a momentos de grande dor, perda ou desafio, onde a pessoa é forçada a confrontar suas próprias verdades ou limitações. Uma experiência de prazer intenso, como quando algo ressoa profundamente conosco, despertando uma sensação de admiração, êxtase ou conexão espiritual.
Em Grande Sertão: veredas, o jagunço-filósofo Riobaldo medita: “Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo – um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta…” (2001, p. 33).
A imagem de “Deus espalhando um pingado de pimenta” pode ser a falha ambiental, necessária para o estalo do amadurecimento
Foto de capa por Pixabay de Pexels
[1] Uma conversa entre Riobaldo, Winnicott, Jung, Paulo Freire e Rubem Alves sobre o amadurecimento.
[2] Psicólogo e supervisor clínico na abordagem analítico-integrativa. Bacharel em história, ciências sociais e psicologia. Especialista em psicologia junguiana. Mestrado em ciências da religião e doutorado em comunicação. Docente de psicologia analítica, supervisor clínico, mediador de grupo de estudos no INSTITUTO FREEDOM (SP). Supervisor da Clínica Solidária do Instituto de Imaginário. Professor Convidado do CEJAA – Centro de Estudos Junguianos Analistas Associados (RJ). Membro Associado do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEEP). Habitante da 0CA JUNGUIANA. Autor dos livros: Ciber-Religião: a construção de vínculos religiosos na cibercultura (Ideias e Letras, 2012); Diálogos dos Deuses, Direitos dos Homens (Editora Plêiade, 2013); Cultura e Desenvolvimento Local: Ética e Comunicação Comunitária (Saraiva, 2015); Mediação de Conflitos (Expressa, 2020); Veredas do Sagrado: interfaces entre Imaginário, Ecologia e Religião (Humanitas, 2021), Emergências sistêmicas: civilizações transitórias em diálogos transculturais (Anita Garibaldi, 2022); Espíritos Utópicos: a regeneração do comum (2023) e de vários artigos publicados em periódicos científicos. Pesquisa a interface entre Psicologia Analítica e Complexos Culturais. Suas reflexões abordam questões contemporâneas como: mito, literatura, produção audiovisual, transpolítica, masculinidades, religião, vida digital.
[3] Donald Winnicott, desenvolveu o conceito de “falso self” para descrever uma parte da personalidade que é formada em resposta às expectativas externas, em vez de ser uma expressão autêntica do eu verdadeiro. É como uma máscara ou persona que uma pessoa adota para se adaptar ao ambiente, muitas vezes em detrimento do seu verdadeiro senso de identidade e autenticidade.